A “Estrela da manhã”, do prestigiado escritor norueguês Karl Ove Knausgård, chega ao Brasil neste mês, pela Companhia das Letras, logo após a série “Minha luta” ter fim. Enquanto os seis volumes que fizeram com que o autor fosse mundialmente conhecido eram autobiográficos, tratando basicamente da morte do seu pai, o nascimento de um escritor e da presença da vida eclodindo nos momentos mais emblemáticos, este novo livro, que dá início a uma nova série de escritos do autor, parte da perspectiva de nove personagens diferentes após uma gigantesca estrela aparecer no céu sem motivo aparente. Cada um desses personagens, com perspectivas bastante diferentes um do outro, estão diante de um fenômeno que os fascina, mas que aparece com naturalidade diante dos outros desafios que também enfrentam. Nessas histórias, há a presença de um elemento sinistro, que faz com que tensões nasçam nas experiências mais cotidianas, e que colaboram para a atmosfera que flerta com o fantástico do livro. Enquanto a voz narrativa varia, são diversas histórias que nos mostram rastros de uma trama impactante e que reflete sobre a vida e a morte.
A estrela que nasce no céu, por isso mesmo, surge num rompante, sem que se possa explicar porque ela surgiu ou que fenômenos ela poderia desencadear. Enquanto os personagens vivem suas vidas, se preocupam com o trabalho, com os filhos e com seus próprios interesses, ela surge e altera parte dessa mecanicidade do dia a dia. Os pontos de vista que emergem na narrativa não se preocupam em explicá-la, mas em mostrar como a vida normal continua enquanto ela está lá, e as maneiras discretas através das quais o ritmo da vida vai se redesenhando por isso. Um dos pontos altos da narrativa, por isso mesmo, é a presença de perspectivas que destoam tanto e que vão permitindo que o leitor mergulhe totalmente no universo apresentado. As personagens femininas criadas pelo autor, com destaque para a pastora Kathrine e pela enfermeira de um hospital psiquiátrico chamada Turid, são muito bem desenvolvidas e mostram o domínio que ele tem em assumir perspectivas diferentes da sua, sem no entanto perder o tom que o consagrou.
O leitor vai percebendo, aos poucos, que não é apenas a estrela que parece estar fora do lugar, ou sinalizar uma mudança nos tempos – são diversos elementos que aparecem nessa vida cotidiana de “Estrela da manhã” como absolutamente normais, mas que diante da presença perturbadora da estrela tomam novos significados. Uma mulher com problemas de saúde mental mata um gato durante um surto, jovens integrantes de uma mesma banda são encontrados com sinais de que foram sacrificados em uma espécie de ritual, um pai que está cuidando do filho se surpreende com barulhos vindos da janela, caranguejos rodeiam um carro de um bêbado no volante, um homem invade uma casa e desaparece e até uma pastora desconfia que interagiu com um homem morto. Para tudo, pelo menos até onde o livro chega, parece haver uma explicação racional. A presença da estrela, no entanto, instaura uma dúvida persistente. E cria um clima limítrofe entre esses dois mundos que conhecemos, sem fazer com que deixem de coexistir.
Reflexão sobre o tempo
Assim como na série ‘Minha luta’, em “Estrela da manhã” há uma clara preocupação em se refletir sobre o tempo. Essa reflexão aparece não só na temática e através dos personagens, mas na própria forma dos livros. Enquanto nos livros autobiográficos o autor é capaz de passar centenas de páginas se debruçando sobre o ato de limpar a casa do pai depois de sua morte, e pode avançar anos de sua vida em poucos parágrafos, no lançamento que chegou ao Brasil este mês, cada perspectiva se encontra alocada em uma noção de tempo muito diferente, que é contada a partir do que os personagens precisam fazer, dos dilemas que têm e do que evitam enfrentar.
O domínio que o autor possui, em ambas as obras, em misturar o presente com memórias e reflexões, de modo que cada história ganhe várias camadas e vá aos poucos se revelando, é um dos pontos altos em sua narrativa. Por exemplo, em um dos trechos relativos ao personagem Emil, que dá início às narrativas do livro, é possível ver toda uma reflexão sobre a sua história com sua mulher enquanto, no tempo da narrativa, ele se encontra tentando descobrir o que vai fazer com ela, levando em conta que está em uma espécie de surto. Karl Ove consegue fazer essa condução com muita originalidade, levando o leitor para lugares inimagináveis, e de tal maneira que, ao decidir voltar para momento inicial, esse não sinta um solavanco marcando os anos que se passaram. No caso de ‘Estrela da manhã’, isso faz com que o mistério envolvendo a narrativa fique ainda mais intrigante.
Existência em xeque
Explorar as relações familiares e colocar o sentido da existência em xeque, então, se tornam grandes objetivos deste livro, para além de entender os fenômenos sinistros que estão acontecendo ou a existência de um mundo sobrenatural. O mesmo tanto importa saber o que é esta estrela e o que um pai pode fazer para se reconectar com o filho. Partindo de vivências diversas, esses dilemas tão humanos são encarados por cada personagem de uma maneira, e dão vazão para questões que parecem também ser do próprio escritor (levando em conta sua obra até o momento) em diferentes peles imaginárias. “Estrela da manhã” dá início a essa nova série de Karl Ove deixando então questões abertas e vontade de desvendar mais sobre cada história. E, ainda que possa representar através de sua estrela algo mais próximo do fim do mundo, também nos mostra a força da existência de universos inteiros contidos dentro de cada relação, casa e palavra.