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Conheça a relação entre enredo de carnaval e literatura

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Campeã no Rio de Janeiro, Viradouro se inspirou em obra literária em seu enredo (Foto: Marco Terranova/ Riotur)
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Pode ser clichê. Mas é um fato. E o carnaval deste ano comprova isso. Os desfiles das escolas de samba na avenida duram algumas horas. Mas tudo que entra em jogo ali, naquele espaço, reverbera de maneiras inalcançáveis tempos depois. Prova disso é que vários livros que foram inspiração para os enredos das agremiações se mantiveram como os mais comprados naquela semana. É, pois, a confirmação de que a avenida é apenas o começo para o que vem a seguir. Aliás, avenida é o meio, porque, antes daquele momento, o trabalho é árduo, inclusive das agremiações como, realmente, escolas que são.

Foram várias as escolas de samba que decidiram contar histórias já escritas em livros na avenida, de forma bem direta. A campeã Unidos da Viradouro teve seu enredo “Arroboboi, Dangbé” baseado no livro “Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário: Mulheres africanas e Inquisição em Minas Gerais”, de Moacir Rodrigo de Castro Maia e Aldair Carlos Rodrigues, para falar sobre a energia do culto ao vodum serpente. A segunda colocada, Imperatriz Leopoldinense, se inspirou em um cordel escrito há mais de 100 anos pelo poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, “O testamento da cigana Esmeralda”. Já a Grande Rio, que ficou em terceiro lugar, contou a história escrita por Alberto Mussa em “Meu destino é ser onça”. A Salgueiro se utilizou de “A queda do céu”, de Bruce Albert e Davi Kopenawa Yanomami, para abordar a luta do povo Yanomami. A, então, quinta colocada, Portela, desfilou enredando “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, que se tornou o livro mais vendido em diversos sites.

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Citando apenas essas cinco escolas, e no Rio de Janeiro, dá para perceber que esse encontro é extenso. E tiveram outras que mergulharam na literatura para desfilar. Mas fato é que carnaval e literatura flertam há anos, e de várias formas. Fernando Valério é, além de coordenador geral do Programa Gente em Primeiro Lugar, em Juiz de Fora, carnavalesco. Neste ano, assinou as escolas Partido Alto e Unidos das Vilas do Retiro. Para explicar o que faz dentro das agremiações, afirma: “Porque o carnaval tem várias frentes, e eu diria que o carnavalesco é essa figura da pessoa que vai fazer a direção artística de todo esse processo que vai ser mostrado na avenida”.

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Aquilo que é visto na avenida é como se fosse o meio de todo o ato, porque o trabalho dentro dos barracões começa meses e meses antes. “Essa antecedência esbarra na pesquisa de enredo, nas fontes teóricas que embasam o argumento que você quer apresentar enquanto desfile, até a fase de desenho de figurino, protótipo, execução de ala, desenho de alegoria, estudo técnico e execução de alegoria. Tem todo o processo que começa seis meses antes, aqui no caso de Juiz de Fora. No Rio, as escolas começam em março: quase um ano pensando em carnaval.” E é exatamente aí, nesses meses antes, que os livros se apresentam como porta de entrada para o que será visto, tempos depois, na avenida.

Escolha de um enredo

O primeiro grande ato é, de fato, a escolha do enredo: aquilo que vai guiar tudo (tudo mesmo) da escola na avenida. E cada carnavalesco tem uma forma de pensar qual será o enredo. “No meu caso, a escolha sempre se dá na investigação que eu tenho de pensar o que essa agremiação gostaria de falar. Eu gosto de ouvir a comunidade. A comunidade, de uma certa forma, me indica e dá pistas de qual é o discurso que ela quer vestir.” Mas não é só isso. Porque, para que essa escuta ativa se transforme em samba, é preciso, sobretudo, se pautar nas formas como essa mesma temática foi abordada em diferentes meios. No livro, inclusive.

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“O enredo não é uma história que está solta no ar. Eu falo que o enredo não é uma livre inspiração. Ele exige um estudo tanto dramatúrgico como teórico. E aí que entra o atrelar a literatura ao enredo. Tem essa parte da oralidade? Tem. Mas para o enredo é preciso ter uma base teórica que o sustente, porque, na verdade, ele vai ser um discurso e, a partir desse discurso escrito – porque talvez o enredo seja uma das únicas coisas escritas de uma escola de samba, e o samba enredo – a gente pensa na visualidade. O enredo é o start para toda a criação visual e estética do carnaval. O enredo precisa ter uma base teórica forte e, também, o toque carnavalesco e artístico para entender qual vai ser o viés dramatúrgico”, afirma Fernando.

“A comunidade, de uma certa forma, me indica e dá pistas de qual é o discurso que ela quer vestir”, afirma Fernando Valério sobre a escolha do enredo das escolas de samba (Foto: Arquivo Pessoal)

‘Ópera popular a céu aberto’

Para sintetizar o que é, então, a construção carnavalesca, Fernando menciona o carnavalesco maranhense Joãosinho Trinta. “Ele fala que o carnaval é uma grande ópera popular a céu aberto. E, assim como uma ópera, nós temos a história que vai ser contada, os personagens da história, a cenografia que envolve essa história, a música que envolve e o figurino. Então, quando eu penso o carnaval dentro da teatralidade que ele carrega, a primeira coisa que eu preciso pensar é no enredo que a gente vai estar contando. E, por isso, o carnaval é uma junção de várias fontes. O carnavalesco bebe de suas fontes, o sambista, cada pessoa dessa grande ópera.”

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Essa forma de fazer o carnaval, que é também beber de outras fontes para além do que se propõe o carnavalesco, diz muito do que é a cultura popular brasileira, como aponta Cristiane Brasileiro, formada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e atual professora adjunta de Literatura Brasileira na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “A cultura brasileira tem a característica de uma sinergia muito especial entre a cultura popular e a considerada mais erudita. Mas é verdade que os nossos cientistas sociais, artistas e poetas, literatos e romancistas mergulham muito na cultura popular.”

Demonstrando a forma como o carnaval é, também, um impacto àqueles considerados mais letrados, Cristiane rememora a vez em que o modernista Mario de Andrade teve contato com a festa no Rio de Janeiro, pela primeira vez, em 1923, e escreveu um poema sobre isso. “Ele ficou deslumbrado. E não ficou pensando o quanto o carnaval precisa aprender com os meus livros. Ele pensa o quanto o carnaval foi capaz de mostrar tanta coisa que os livros não tinham sido capazes de mostrar. O carnaval não precisa do aval da cultura letrada. Se a gente for falar em rigor, é mais fácil hoje em dia que a cultura letrada precise do aval do carnaval. O livro da Ana Maria Gonçalves que passa a ser mais lido a partir da Portela. Não é a Portela que precisa do prestígio desse livro.”

Voz da comunidade

“Em termos de circulação cultural, é o carnaval que chancela a obra literária, e não a obra literária que chancela o carnaval”, acredita Cristiane Brasileiro (Foto: Arquivo Pessoal)

Essa sinergia de que Cristiane aponta é muito presente no carnaval, principalmente levando em consideração o que Fernando fala sobre a escolha do enredo, que, muitas vezes, se baseia naquilo que a comunidade quer falar na avenida. “Sobretudo neste ano, muitos livros que inspiraram os enredos são baseados na história popular. Os jogos são misturados. Essas pessoas, essas histórias, estão misturando essas áreas da cultura mais estabelecida, acadêmica, formal, oficial, que não só inspira a cultura popular, mas se inspira na cultura popular. É uma coisa de mão dupla. A cultura popular é completamente capaz de se inspirar em enredos que não são inspirados em romances, e os romances que elas escolhem geralmente têm uma ligação com a cultura popular muito grande”, aponta a professora.

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E, sobre isso, Fernando completa: “A escola de samba funciona como uma tecnologia que foi criada para que esses grupos minorizados pudessem estar protagonistas da própria ação que são eles que produzem. Porque o carnaval, mesmo quando ele está imbricado com o livro e grandes teorias, ainda assim é um discurso que é produzido pelo chão da sociedade”. E isso afeta tanto quem assiste porque o carnaval tem a potência de, com o seu enredo, conversar diretamente com o público.

“Em termos de circulação cultural, é o carnaval que chancela a obra literária, e não a obra literária que chancela o carnaval, se fosse para colocar em termos hierárquicos. Mas eu falaria que é uma questão de sinergia mesmo, entre a cultura popular e essas esferas da cultura mais erudita. Uma escola de samba é vista e engaja imediatamente muito mais gente. E o pré-requisito é quase nenhum para você ver. E para dar conta de um romance de 500 páginas, você precisa ter percorrido uma certa escolaridade, ter tido acesso aquilo, não só àquele livro, mas acesso a uma educação literária, que passa pela escola, inclusive. Então, é com certeza mais acessível saber desse romance pela Portela do que exatamente nas livrarias”, comenta Cristiane.

Fernando concorda, e completa: “O carnaval tem essa função de popularizar aquilo que está preso em alguns lugares. Quando a gente tem enredos baseados em livros, que ficam de fácil leitura para aquele público que nem sempre tem acesso a obra original, nós estamos falando da função do carnaval de descentralizar e popularizar o que é produzido no Brasil. E é isso que o reporta como maior manifestação brasileira. Porque o Brasil é essa junção de manifestações. Quando o carnaval se apropria da literatura, quando ele pega esse livro e coloca na rua para desfilar entre os populares, ele está falando: ‘isso é acessível, isso pode ser afetado’. Está aí o grande fascínio da arte popular brasileira, que é trazer para a rua, para a boca do popular, aquilo que até então só os eruditos diziam nos livros”.

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‘Com cores, brilho e magia’

Muitas dessas histórias contadas no carnaval, essas histórias que, como dito, são populares, falam sobre a dor. A Portela colocou em cima de um carro alegórico várias mães negras que perderam seus filhos pela violência, que é também pautada no preconceito. “O carnaval nunca foge da dor e do horror. E não é só a dor individual: é a dor histórica, coletiva, mas isso é incorporado. O carnaval é, não só um item cultural unificador de identidade, mas é uma experiência, de fato, dessa energia antropofágica, que o Oswald Andrade falava, que é capaz de devorar o outro, o inimigo para o seu próprio fortalecimento. O carnaval é capaz de devorar, inclusive, a dor. Não no sentido de eliminar, mas de incorporar para transformar em outra coisa. A gente usar a dor só para morrer sozinho, é pouco. O carnaval transforma a dor em uma usina de alguma outra força, de uma atração coletiva, que salte da dor para algum lugar, sem ignorar a dor. É o contrário de um movimento alienante. Ele é desalienante, e revigorante, sim.”

É exatamente por isso que Fernando afirma: “O carnaval é um ato político. A escola de samba é esse lugar que é nosso. Eu costumo dizer que o desfile da escola de samba é o retrato da população brasileira, com cores, brilho e magia. É o único momento em que a gente consegue falar das nossas mazelas, de forma feliz, mas dando o recado para quem é de responsabilidade”, finaliza.

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