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‘Tudo que ainda não fiz é o que me falta fazer’

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“‘Qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa’ mesmo. E nada é detalhe. A morte é um grande acontecimento, a obra toda é um grande acontecimento”
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Quando Andréia Assis Horta nasceu, no dia 27 de julho de 1983, completava-se um ano, seis meses e oito dias da morte de Elis Regina Carvalho Costa. A gaúcha, que chegou ao Rio de Janeiro no primeiro ano da década de 1960, em busca do sucesso nacional que sua Porto Alegre natal não poderia lhe proporcionar, nunca saiu da cabeça da mineira que, por sua vez, aos 17 anos deixou sua Juiz de Fora para tornar-se atriz profissional em São Paulo. Para trás, a família, os amigos e o teatro como inspiração. Disse até breve para o Bairro São Judas Tadeu, na Zona Norte, onde nasceu e cresceu, e foi ganhar a cidade grande. Aos 33 anos, oito anos após sua estreia na televisão, protagonizando a série “Alice”, da HBO, Andréia tornou-se igualmente grande, como a cidade que lhe acolheu. Tornou-se a maior, a Pimentinha. Interpretando um ídolo de extremos, que ia da alegria radiante em “Madalena” à tristeza profunda em “Atrás da porta”, Andréia demonstra o virtuosismo de uma atuação já agraciada com o Kikito de melhor atriz no Festival de Gramado deste ano.

Na cinebiografia da cantora, que chega aos cinemas nesta quinta, com direção do estreante Hugo Prata e elenco de peso, formado por atores como Caco Ciocler (no papel de César Camargo Mariano), Lúcio Mauro Filho (como Miéle), Zé Carlos Machado (vivendo o pai de Elis, Romeu), dentre outros, a artista é vista desde o desafio das primeiras audições, da resistência à jovem do Sul, até a fama internacional, passando pela personalidade forte e intempestiva e desaguando numa dolorosa morte aos 36 anos. “A obra (dela) toda é um grande acontecimento”, comenta a fã Andréia, que pouco a pouco tem se mostrado o mesmo grande acontecimento, seja na pele da contemporânea Maria Clara, de “Império”, novela das 21h de 2014, seja como Joaquina da Silva Xavier, a filha de Tiradentes, em “Liberdade, liberdade”, minissérie transmitida este ano. Em entrevista por telefone à Tribuna, Andréia afirma que em tudo está Juiz de Fora. “É o que me funda”, pontua a atriz, que, ao viver Elis, demonstra saber que “o show de todo artista tem que continuar”, como diz a letra de “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc.

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TM – Qual a sua relação com Juiz de Fora?

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Andréia Horta – Sou nascida e criada em Juiz de Fora. Minha família toda mora aí, meu sangue todo mora aí, minhas memórias mais primitivas são dessa cidade. É a minha primeira casa na vida.

O que a cidade lhe traz?

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Minhas memórias de infância, as brincadeiras com meu irmão, os primeiros cheiros do teatro. O cheiro do palco do Teatro Pró-Música, as memórias do Teatro Solar. Minhas lembranças de Juiz de Fora estão muito ligadas à minha família, à minha infância, minhas primeiras sensações e descobertas. A infância e a adolescência inteiras passei aí, e fica difícil destacar algo.

A cidade está na atriz que é hoje?

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É o que me funda. As primeiras noções de espaço, ritmo, tempo, palavra vêm da minha infância, de quando estava aí. Depois, quando fui trabalhar profissionalmente, entrei numa faculdade, elaborei com mais qualidade e mais apuro aquela atuação amadora, mas as primeiras experiências são fundamentais.

Recorda-se do primeiro espetáculo?

Acho que foi no Pró-Música e chamava-se “Perdidos no espaço” (risos). Eu tinha 9 anos. Depois fiz parte de um grupo de teatro espírita do Guaraci Lima da Silveira, no colégio Antônio Carlos, ali no Mariano (Procópio) e fiquei com eles um tempão, viajando para fora e apresentando durante os finais de semana. Foi bem importante para mim.

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Quando surgiu a atriz?

É tão antigo que já está misturado no que sou. Faço teatro desde criança, sempre quis, sempre fiz, na escola e durante a graduação. Não sei nem de onde surgiu, já vim assim.

E sua relação com Elis?

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É uma relação de fã. No final de minha adolescência, já escutava muito, lia tudo o que podia sobre ela. Acho que, realmente, é uma das maiores artistas que o Brasil já teve, uma das maiores cantoras do mundo, pela qual tenho uma admiração profunda.

A última biografia sobre Elis, “Nada será como antes”, do jornalista Júlio Maria, traz detalhes muito fortes da vida da Elis. Como foi interpretar tendo à mão dados tão marcantes como a própria morte dela?

O documento do Júlio Maria é muito completo, mas o roteiro não é baseado nesta biografia. O roteiro tem outras coisas que não tem no livro. ‘Qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa’ mesmo. E nada é detalhe. A morte é um grande acontecimento, a obra toda é um grande acontecimento. Nada é mínimo. Tudo tem uma dimensão muito grande, de muita responsabilidade e beleza.

Esse é o seu grande trabalho?

Não direi nunca qual foi o mais importante. Todos têm uma dimensão muito grande dentro de mim. Sobre o mais marcante, é algo que as pessoas irão dizer. Para mim, todos são fundamentais.

E o que tem como singular em seu processo?

Esse é o grande mistério que deve reinar até o dia de minha morte. Mas é claro que o trabalho de um intérprete é dar a sua própria leitura sobre cada coisa que faz. Isso é único, intransferível, ímpar, singular e todas esses adjetivos. Só vale a pena se for assim, se fizer algo que ninguém mais pode fazer. Cada pessoa é uma pessoa, e aí está o trabalho do artista, a natureza do artista. Ninguém vai pintar um quadro igual ao outro ou interpretar como o outro se tiver uma consciência do próprio trabalho.

Quais as “armas” que utilizou para dar vida a Elis?

Não tenho armas (risos), fui desarmada. E esse é o grande lance. Tudo nasceu em sala de ensaio, tudo foi construído de um jeito novo para ela. Já era meu desejo de muitos anos fazer Elis.

Sua carreira começou no teatro, você ganhou reconhecimento na TV e, agora, outra visibilidade fazendo cinema. Há um lugar preferido?

Não existe, porque cada plataforma é um lugar completamente diferente, com um jeito absolutamente distinto de trabalhar, ao mesmo tempo em que todos eles só funcionam se tiverem a sua alma. Sem a alma nada acontece, em lugar nenhum. Passei da minha infância até os 21 anos, principalmente os primeiros 15, dedicada ao teatro. Tem 11 anos que estou fazendo televisão, e, no meio disso, tiveram três filmes. Não tem onde prefira estar. Onde tem trabalho e eu me interesso pelo que se apresenta é onde estou e vou. Cada um tem uma beleza diferente, um jeito distinto de se conectar com o público. No teatro você recebe o calor do público imediatamente, enquanto está fazendo. Na televisão você fica dez meses em cartaz e na hora em que está fazendo, está sozinho no estúdio, e já na semana seguinte tem um país inteiro vendo. No cinema você entrega um ou dois anos depois, e não há o que fazer pelo trabalho, está pronto. Todo público me marca de alguma forma. Cada pessoa da plateia é muito importante, porque com cada um é uma ponte emocional que você faz, é algo íntimo, como a relação que temos com um escritor quando lemos um livro em silêncio e o que está escrito causa algo em você. A relação do artista com cada espectador é sempre única. Não fica preso a território.

Como aconteceu com Elis, há outro personagem que deseja fazer?

Todos os que ainda não fiz (risos). Tem muita coisa e nem ouso dizer para não virar cartaz. É a verdade e é a resposta mais completa que posso dar: tudo o que ainda não fiz é o que me falta fazer.

Enquanto fala, mostra uma entrega muito grande ao seu ofício. Elis também costumava dizer dessa maneira passional como lidava com sua arte. Para além da física, percebe semelhanças de personalidade entre você e ela?

Percebo, sobretudo, uma semelhança na importância que nosso ofício tem em nossa vida. Como ela tinha é como tenho. O quanto achamos sério o que fazemos. O que seria de uma sociedade sem artistas?

 

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