Eliardo França está em seu ateliê, cercado do que parecem milhares de tintas, telas de diferentes épocas e livros. Há trabalhos a serem começados na prancheta. Já são 82 anos de vida e cerca de 45 anos ilustrando livros infantis junto com sua esposa, Mary França. A paixão que fica clara inclusive no colorido das paredes que o envolvem começou também em casa, assistindo a matinês, principalmente de Tom & Jerry e Mickey. “Eu ficava alucinado para fazer igual, e ficava até revoltado quando não conseguia. Eu sempre gostei disso, sempre”, conta ele. A primeira ilustração que fez, como relembra, foi a partir de uma fábula que sua professora contou, no segundo ano escolar do primário. Os alunos deveriam fazer em casa uma reprodução de uma ilustração do livro, e ali ele já se destacou absolutamente. Desde então, foram muitos caminhos – conheceu editoras, agências de publicidade, fez amigos nesse meio, viajou o mundo e amadureceu suas técnicas. Não por acaso, uma das suas principais séries se chama “Gato e rato”, destinada ao público infantil, que recupera algo que estava lá desde o início, mas a partir de uma criação completamente nova e que já gerou 36 títulos.
Apesar dos desejos de seu pai, Eliardo nunca quis uma profissão que cumprisse o “cartucho” esperado pela época, ou seja, que ganhasse um diploma e um trabalho mais convencional. Ele até tentou cursar arquitetura, por muita insistência, mas conta que não deu certo. “Quando eu estava noivo e precisava de grana para casar, decidi ir à Editora Brasil América, a Ebal, que editava grandes séries, como Super-Homem e Batman, para mostrar meus desenhos”, conta. Na ocasião, por volta de 1966, ele conseguiu conversar com o dono da editora, o jornalista e editor russo Adolfo Aizen, que afirmou que ele tinha jeito mesmo pra coisa, e deu dois textos para que ilustrasse quando voltasse para Juiz de Fora. “Fui embora e fiz os desenhos em tempo recorde. Ele disse que gostou muito, e falou para a secretária me pagar. Foi a primeira grana que recebi com isso.” Em seguida, ilustrou seis livros de Malba Tahan (escritor e pedagogo, autor do best-seller “O homem que calculava”). Depois, foi à Standard, uma agência de publicidade do Rio, e lá conheceu um desenhista chamado Sérgio Barroso. “Ele disse que gostava do meu desenho e que ia falar com um editor que conhecia sobre mim. Um dia, ele me passou o melhor telegrama que recebi na minha vida: ‘Venha ao Rio, assunto de trabalho'”.
Eliardo foi trabalhar na editora Conquista e ficou por volta de 13 anos. “Foi o princípio de tudo. Fiz o livro “O rei de quase tudo” no início da década de 70. Com os vários prêmios que o livro recebeu, comecei a trabalhar direto na editora, fui fazendo ilustrações e trabalhando também com livros didáticos. A coisa deslanchou”, conta. Primeiro grande sucesso de Eliardo como autor e ilustrador, “O rei de quase tudo” ganhou até mesmo o prêmio da Unesco de “Livro para um mundo melhor”. Para Mary, que fez parte de todo esse processo, fica claro que estavam fazendo algo diferente: “Era uma época em que o Brasil não tinha autores de literatura infantil e juvenil como hoje. Nessa época, começou um movimento de incentivo, pela Fundação Nacional do Livro, e nós participamos de forma muito próxima disso. Nós e a Fundação queríamos fazer livros do cenário brasileiro, do Brasil, do nosso contexto, com as nossas histórias tradicionais. Nós até brincávamos: ‘Chega de casinha de neve’. Nossa missão era fazer livros brasileiros por escritores e ilustradores brasileiros”, diz.
A trajetória de Mary, ainda que ligada à de Eliardo, segue um caminho próprio, já que ela se dedica principalmente à escrita e foi também professora. Seu primeiro livro foi publicado em 1969 e tratava do folclore brasileiro. “Um dia desses, a Biblioteca Nacional nos telefonou quando estavam contabilizando esses títulos, para nos parabenizar. É muito emocionante ter essa trajetória toda”, diz. Para ela, um período muito interessante para entender mais sobre a importância da literatura dedicada à criança ocorreu quando os dois, entre 1989 e 1990, foram para a Dinamarca se dedicar a uma adaptação dos contos de Hans Christian Andersen, prestigiado escritor local. “Foi um período muito bom. Conviver com outra cultura é algo muito bom, inclusive para a gente entender nossos erros, do nosso país e da nossa cultura, e também os nossos acertos, valorizar aquilo que a gente vê no nosso dia a dia”, diz Mary. Algo que a surpreendeu nessa experiência foi ver que “as pessoas em geral, de qualquer profissão e idade, tinham conhecimento e admiração pelo Andersen”.
Sendo assim, ela e Eliardo também passaram a se dedicar a valorizar esse amor de diferentes gerações pela literatura infantil, o que fazem até hoje, recebendo crianças na sua casa para conhecerem o ateliê e também ouvir Mary contando as histórias. “De vez em quando, uma criança para e fala: ‘Eu também sei desenhar’. E aí eu chamo e a gente faz junto”, conta Eliardo. Eles recebem principalmente alunos de escolas da região, mas também fazem viagens por todo o país levando o próprio trabalho. Na década de 1980, Eliardo também se dedicou de forma mais intensa às pinturas e fez exposições em galerias brasileiras e da Europa. Outra publicação que marcou os dois, que nasceram em Santos Dumont e lá se conheceram, foi justamente uma história que fala sobre a vida do criador do avião.
A relação com o editor da Ebal, que foi o primeiro a conhecer o trabalho de Eliardo, foi se estreitando. Anos depois, quando já estava com outros trabalhos, o artista fez uma pergunta a ele: “Você me pagou para fazer aqueles desenhos, quase cinco anos atrás, e ainda não foram publicados. Por quê?’. Ele me disse: ‘Não publiquei porque não estavam bons para serem publicados. Mas se eu te falasse isso na época, você ia ficar desincentivado, e eu não queria isso’. Ele era um cara muito generoso”, disse. Também no início, Eliardo recebeu um conselho de Ziraldo, de quem se tornou amigo: “Você vai encontrar seu próprio caminho”. Foi o que fez, desde então, experimentando várias técnicas – com particular interesse pela aquarela, que é considerada uma técnica bastante complexa, mas que tem uma luminosidade que “o encanta”.
Para Eliardo França, é impossível pensar em parar: “Não tem como. Parar por quê? Vou tombar em cima da prancheta”, brinca. Hoje, ele e Mary conseguem controlar melhor a produção, já que possuem dois selos próprios, e quase a família toda se envolveu no processo de editoração, que se tornou bem mais independente. “Na gaveta já temos 3 ou 4 livros esperando para serem publicados”, diz Mary. “Eu acho que isso está na gente já, e não conseguimos fazer de outro jeito.” Para ela, apesar das mudanças no trabalho, algo sempre permanece. “Eu vejo que há diferenças, mas que tem muita coisa em comum. A gente acabou de fazer uma reforma em casa, e arrumando uma caixa de riscos, eu achei um ratinho que o Eliardo fez e que já era o mesmo ratinho de hoje, só que era bem no princípio. Foram mudanças que fazem parte desse caminho, desse amadurecimento, mas algo fica.”