Carlos Bracher está fazendo a montagem da sua mais nova série de pinturas, desta vez com foco em Belo Horizonte, e preparando um painel de 17 metros. Aos 81 anos, o menino que começou sua trajetória em Juiz de Fora é hoje um dos artistas plásticos mais prestigiados e premiados do Brasil. No dia seguinte a esta entrevista, ele iria a Brasília pintar o embaixador da Itália, e nos próximos meses irá ao berço do Renascimento justamente para pintar cidades como Roma, Florença e Veneza. Por isso, anda a passos rápidos e conversa enquanto resolve as coisas do dia, tirando inspiração também do que vê pelo caminho. Conta que não para de ter ideias e de se fascinar com coisas novas, e que presta atenção a tudo que pode: “Pra quê viver? Pra ser um idiota? É preciso fazer algo extraordinário”. Apesar de se inspirar nas pessoas e nas cidades, coisas tão concretas, ele mesmo admite ser um tanto esotérico. Quer que seu trabalho acesse algo além da própria capacidade. “A gente tem que sair da Terra. A Terra é uma coisa muito pequena”, diz.
O trabalho de uma vida inteira começou em algo que, para ele, parecia inevitável: ser artista. Filho de um pianista e de uma maestrina, com irmãos também pintores, estava sempre cercado de gente e de amor, duas coisas que considera os pilares de sua formação. “Ainda muito criança, eu fazia desenhos e trocava ideias com outros artistas juiz-foranos, mas não sabia o que aquilo poderia virar.” Mais tarde, resolveu ser escultor. “Quando vi o trabalho de Rodin, pensei: ‘Tô dentro!'”, relembra e ri. Sua irmã, Nívea, também na época fazia esculturas, e aquilo o influenciou. Mas a “sedução da cor” foi inevitável. “A gente abre os olhos e é tudo colorido mesmo, então foi algo que me avassalou decisivamente. É um negócio terrível de lindo, Deus não presta, ele massacra a gente”, ri. E continua: “Eu tô nisso até hoje. Não consigo tirar os olhos das cores”.
Em 1967, ainda na casa dos 20 anos, Carlos Bracher ganhou uma viagem ao exterior como prêmio do Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, considerado então o maior prêmio brasileiro. Com ele, foi para Paris, onde se instalou em um ateliê próximo da Catedral de Notre Dame e se dedicou de forma ainda mais intensa à pintura. Sua obra, desde então, tem um forte traço internacional, apesar de ser, fundamentalmente, vinda de Minas Gerais. No centenário de Van Gogh, por exemplo, ele fez uma homenagem ao pintor que chegou a circular em exposições no Brasil, vários países da Europa e no Japão. A influência desse artista é uma presença contínua. “Van Gogh impregnou muito meu ser, meu instinto, minha voracidade, minha tragédia, minha loucura e minha bênção, ao mesmo tempo. É uma espécie de busca por uma grande luz permanente”, diz. Quando precisou voltar para o Brasil, após o período fora, Bracher foi para Ouro Preto e encontrou lá um espaço para si.
Ele revela que sempre se lembra da primeira vez que foi a Ouro Preto e sentiu o encanto que a cidade tinha. É por isso que, apesar de ter ido para ficar em uma temporada de três anos, acabou resolvendo ficar por mais de meio século, e está feliz da vida por isso. “A graça da vida é que a gente não sabe de nada, né?”, pensa. Lá, a arte barroca o influenciou ainda mais com Aleijadinho e Ataíde, mas nunca deixou de lado o que Juiz de Fora trouxe para a sua vida, naqueles primeiros anos, quando pintar era só uma brincadeira. “Nós que somos mineiros e meio cariocas, em Juiz de Fora, sentimos forças profundas e oníricas que alteram a nossa percepção. A gente caminha o mundo inteiro, mas Juiz de Fora fica na gente”, diz.
Para Bracher, falar de arte é falar do Castelinho, casa da sua família na Rua Antônio Dias Tostes, entre o Poço Rico e o Granbery, onde ele foi criado, sempre junto com outros artistas. “O Castelinho era um lugar de produzir gente, afetos, sensibilidade. Tinha 20, 30 pessoas lá todos os dias. Sem palco, sem nada. Era sempre e sempre mais gente, todo dia, casa sempre cheia, filósofos, cientistas, loucos, gente da melhor qualidade. Foi um negócio inacreditável”, conta. Foi lá que ele conheceu nomes como Dnar Rocha e Wandyr Ramos, também artistas que marcaram a cidade, e teve seu trabalho ainda jovem afetado por eles, assim como pelo arquiteto Rafael Arcuri, que projetou o espaço do qual tanto se lembra.
Para Bracher, esse local foi a maior herança cultural deixada por seu pai, um professor universitário que bancava o espaço como podia. “O que me orienta ainda é o Castelinho. Minha alma nasceu ali, vem dali, daqueles tijolinhos coloridos, daquela torre linda”, relembra. Foi também lá que conheceu sua mulher, Fani, que também é uma artista plástica prestigiada no país. As duas filhas que teve com ela, Blima e Larissa, são responsáveis por organizar as suas produções no Atelier Casa Bracher, que funciona de forma on-line, com um grande acervo do casal de artistas. “O amor das minhas filhas e da minha mulher é algo que é fundamental na minha vida. São eclosões e explosões desses atos todos, fico muito feliz com o talento delas. Nós somos produtos dos nossos filhos. São eles que nos norteiam”, diz.
Com uma carreira já tão duradoura e diferentes séries feitas, Bracher nota mudanças ao longo da vida na sua pintura, mas nota ainda mais permanências. Para ele, a idade afetou essas transformações, ao mesmo tempo que também não afetou. “A vida muda a gente e a gente muda a vida. É uma dicotomia”, diz. Um processo que sempre se repete, ao longo de sua vida, são as pinturas feitas “in loco”, como foi feito no Cine-Theatro Central em 2022. “Pintar ao vivo traz uma emoção violenta. Tem um encanto que é inexcedível, você tem contato com a natureza, com os pássaros, com as pessoas. E pessoa é a melhor coisa do mundo, né? Interagem muito, e nós fazemos parte desse universo também. Todas as intervenções externas embelezam a obra”, diz.
A pintura de Carlos Bracher, também por isso, é dramática e tem contrastes fortes. Há ainda muitas coisas que quer fazer, e por isso a caminhada é sempre rápida, em meio a um monte de afazeres. “A vida é um acontecimento de aleluias”, reflete. Continuar em frente é o que pode fazer, e por enquanto não se imagina tendo medo de continuar ou mesmo vontade de parar. “Essas incidências e conclamações dão pra gente o desejo de continuar. Isso é uma esperança, sem parar, sem parar, sem parar. É um ciclo.”