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Movimento literário ‘Abre Alas’, que testou ditadura e lançou escritores, faz 40 anos

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Um dia, quando o belo megafone azul e branco que José Santos pegava emprestado numa escola do Bairro Linhares estragou, ele convidou o amigo Fernando Fiorese para irem buscar outro aparelho. Desceram a Rua Halfeld, andaram pela Avenida Getúlio Vargas e chegaram à Avenida Independência (hoje Itamar Franco). Entraram pelos fundos da vila militar. José bateu numa das janelas. Um jovem, filho de militar, abriu e entregou um megafone, que seguiu para o Varal de Poesia no Calçadão. Do instrumento ecoaram versos de contestação impressos no folheto “Abre Alas”. Nas memórias de Fiorese, o gesto insubordinado e um tanto arriscado sintetiza a expressão da publicação que este ano completaria 40 anos. “O varal não era restrito à literatura. Tinha dança, teatro e acabou se conformando como um espaço público de apresentação dos artistas de Juiz de Fora. Acho que o ‘Abre Alas’ é muito importante como uma estratégia dentre muitas outras para medir as fronteiras da abertura política que estava sendo prometida pela ditadura militar. Era preciso verificar esses limites para que a abertura se desse de maneira mais ampla, real e rápida”, avalia o escritor e professor da Faculdade de Letras da UFJF, presente na primeira reunião do “Abre Alas”.

Fotografias históricas: Humberto Nicoline, que começou sua carreira fotográfica no mesmo momento em que iniciava o Abre Alas, registrou o Varal de Poesias na década de 1980. (Foto: Humberto Nicoline)

Era 1980 quando o Diretório Acadêmico do Instituto de Ciências Humanas e Letras da UFJF promoveu uma mostra de poesia na superintendência regional da Fazenda, que ficava no prédio do Fórum Benjamin Colucci, com entrada pela Avenida Rio Branco. “Ali tinha um enorme salão onde anualmente eram feitas exposições de canários. Esse salão era usado para várias finalidades, como saraus e lançamentos de livros”, rememora Fiorese. Para o evento, era possível inscrever no máximo dois poemas, que permaneceriam em exposição, centenas deles, durante algum tempo. No último dia, uma reunião foi convocada para que os participantes indicassem novas ações para a cena que ali se confirmava. Estudante de letras, Suraia Mockdece ofereceu a própria sala, numa galeria do Calçadão, onde dava aulas de redação para vestibulandos. Num fim de semana do início de 1981 encontraram-se, entre outros, Suraia, Fiorese, José Santos, Júlio Polidoro e Mauro Fonseca. Decidiram fazer um folheto. Como o carnaval se aproximava, nomearam “Abre Alas”. A primeira edição saiu em abril daquele ano, com capa de Tadeu Costa, e foi distribuída no Varal de Poesia que armavam ora diante de onde hoje é o Banco do Brasil, ora no largo em frente ao Cine-Theatro Central. José Santos era o mestre de cerimônias com megafone em punho.

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Onde estavam as mulheres?
“Fiz uma opção estética por me jogar na vida”, diz Suraia Mockdece aos 65 anos, mais da metade deles vivendo no Rio de Janeiro, para onde se mudou ainda naqueles anos 1980, a fim de cursar o mestrado em educação. “Foi aquela maratona de estudar, dar aulas e tive uma filha. Isso foi me afastando do grupo de Juiz de Fora, e de certa forma, da escrita também. Teve um momento em que precisei decidir entre escrever e viver a agitação da vida. A vida foi se encaminhando e acabei não publicando meus poemas, embora tivesse um livrinho esboçado. Continuei escrevendo, como faço até hoje”, conta ela, por telefone. Décadas depois da mudança, numa visita a familiares juiz-foranos, Suraia viu uma pessoa acenando em sua direção. Era Jorge Sanglard, um dos integrantes do movimento, que pegou seu telefone e tempos depois a convidou para o lançamento da antologia “Poesia em movimento”, organizada por ele e lançada em 2002. “Foi uma experiência incrível rever todo mundo 20 anos depois”, lembra uma das únicas mulheres do movimento.

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“Realmente, a participação feminina não era expressiva. Havia algumas mulheres e eu era uma das que mais atuava, publicando, participando dos debates. Mesmo a nível nacional, havia poucas mulheres”, observa Suraia, referindo-se à poesia marginal dos anos 1970, que serviu-lhes de inspiração, também com predomínio masculino, salvas exceções como as cariocas Ana Cristina César e Leila Miccolis. Segundo a pesquisadora Anelise Freitas, que em sua dissertação de mestrado resgata os movimentos literários locais até o sarau Eco – Performances Poéticas, nos anos 2000, sobre o qual se atém, ainda que as lutas feministas comecem a ganhar vulto no início do século XX, a realidade do interior do país nos anos 1980 indicava diferentes restrições às mulheres. “Em todas as gerações e ainda hoje esse é um espaço de disputa. Hoje temos uma consciência. Chegamos nos lugares e sabemos que estamos sendo oprimidas e precisamos disputar espaço. O debate feminista custa a chegar. Hoje estamos juntas para pleitear um espaço”, pontua ela, poeta e uma das editoras do Coletivo Capiranhas do Parahybuna.

Folhetos produzidos artesanalmente: capas das edições 10, 14 e 15, de 1982 e 1983. (Reprodução)

Como ler e criticar o outro?
Filho de militar, Júlio Polidoro foi obrigado a servir o exército em 1980, aos 18. Naquele ano, após um atentado no Rio de Janeiro, o trabalho de guarda se intensificou nas áreas militares, e o jovem trabalhava com poucos descansos. Um dia, ele não aguentou e dormiu em serviço. Quando acordou, reparou que estava sem o fuzil. Um tenente que passava, vendo seu descuido, o acordou e questionou sobre a arma que ele mesmo havia escondido para repreender Júlio. “Peguei dez dias de detenção”, recorda-se. “Então, fiquei lendo. Nesse período começou a fluir o livro ‘Pátios e galés'”, conta sobre a obra nunca publicada. “Indeciso”, poema feito para aquela que seria sua segunda publicação (em 1979 estreou com um livreto), saiu naquela primeira edição do folheto “Abre Alas”, que permaneceu sendo distribuído, ainda que em distintas periodicidades, até 1986, encerrando o que se nomeou como “primeira dentição”. A segunda fase, já com alguns novos nomes, se deu entre 1989 e 1990, quando o folheto se tornou um suplemento de quatro páginas no “Diário da Manhã” e, em seguida, um suplemento de duas páginas na Tribuna.

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“Tinha coisa boa, e muita coisa ruim. É um risco muito grande que o escritor corre quando busca muita coloquialidade. Há que ter um certo preparo, pensar na forma, no ritmo. Havia um conselho que votava pela seleção”, pontua Polidoro, resgatando algumas das reuniões na casa de José Santos. “A gente pegava para fazer a seleção dos textos e não nos poupávamos nas críticas e avaliação dos textos. Isso foi muito importante para a gente desenvolver as próprias carreiras. Nunca tive tanta disciplina, publiquei só quatro livros. A construção de uma leitura crítica ajudou para que não fôssemos concessivos”, afirma o poeta. “Na minha vida, olho para essa experiência como um processo de formação fundamental para tudo o que vivi depois, para as escolhas que fiz, para o que li. Num aspecto geral, tenho consciência de que fazíamos parte de um caldo cultural extremamente importante para extrair dele nomes significativos. As pessoas que continuaram escrevendo têm uma contribuição muito importante para a literatura brasileira”, afirma Suraia Mockdece.

Quem veio antes?

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Diagramação arrojada de Knorr: edição de 29 de setembro de 1990 do ‘Abre Alas’ como suplemento na Tribuna. (Reprodução)

O folheto mimeografado precariamente e distribuído de mão em mão tinha suas raízes numa geração que dez anos antes tornou-se reconhecida no país como poetas marginais. Estavam no Centro das cidades, mas à margem de um mercado editorial ainda filiado aos clássicos. Em Juiz de Fora, outras duas publicações antecedem e referenciam o “Abre Alas”: o folheto “Poesia” e a “Revista Bar Brazil”. Gilvan Procópio, que integrou o movimento anterior, escrevia os textos críticos de uma das páginas do suplemento “Abre Alas” encartado na Tribuna aos sábados. Havia um trânsito entre gerações e, pouco tempo depois, entre poetas de outros cantos. “As pessoas enviavam contribuições ou a gente corria atrás. Vinham até umas coisas de fora. A gente usava muito os Correios, que eram a rede social daquela época. Enviávamos 200 exemplares do ‘Abre Alas’ para escritores de tudo o que é canto. As pessoas liam, respondiam, enviavam informações. Datilografávamos todos os endereços numa página sulfite, tirávamos xerox e depois recortávamos para endereçar”, registra José Santos sobre uma precariedade justificada pelo pouco dinheiro e driblada por um sentimento de urgência.

No início tudo era feito artesanalmente, até que o DCE passou a apoiar oferecendo sua gráfica. Adilson Zappa, professor e dono de uma papelaria, fornecia os papéis. O poetas passavam horas e horas dobrando. “A primeira tentativa de institucionalização foi feita com a universidade”, conta Fernando Fiorese, recordando-se de uma experiência frustrante. Já no segundo número, um poema de Helder Teixeira, chamado “Com quem dorme o papa”, foi censurado. Já no “Diário da Manhã” o trabalho tinha uma independência que se seguiu na Tribuna, onde o poeta e designer Knorr trabalhava. “O que era interessante para nós é que a coisa de ir para a rua era muito desgastante. Todos nós, àquela altura (em 1989), já estávamos formados, precisávamos trabalhar e já tínhamos família”, explica Fiorese, pontuando também a relevância de ver o alcance da publicação se ampliar no maior veículo impresso da cidade. A rua, contudo, potente para o movimento, perdia seu lugar. Como suplemento, a iniciativa durou um ano.

O que queriam os poetas?
“Aquele momento tinha circunstâncias políticas muito singulares. Acho que o ‘Abre Alas’ tem muito mais importância pela ação política do que pelas questões literárias. Quando vejo a antologia ‘Poesia em movimento’ e leio o ‘Abre Alas’ encadernado, meu julgamento é muito crítico”, destaca Fernando Fiorese. “Mas o importante para aquela geração foi estabelecer relações dentro e fora de Juiz de Fora e que permanecem até hoje. Essas relações proporcionaram instâncias de divulgação das obras que produzimos. E esse contato foi positivo do ponto de vista crítico. Isso permitiu um aprendizado muito grande. Do ponto de vista literário, o que se produziu ali era muito fraco, mas possibilitou outros campos de atuação a essas pessoas. Há pessoas que foram para a ensaística, para a literatura infantil ou pararam de escrever, mas têm a literatura como um guia da existência. É uma pena que alguns tenham parado de escrever”, lamenta o escritor e professor, dizendo ainda manter contato com o que chama de “núcleo duro” do “Abre Alas”, formado por Polidoro, Santos e também pelos poetas Iacyr Anderson Freitas e Edimilson de Almeida Pereira. Luiz Guilherme Piva, Luiz Ruffato e dezenas de outros escritores também constam em algumas edições da publicação que, em 1983, deu fôlego para a criação de outra, a prestigiada “Revista D’Lira”, que durou exatas duas edições.

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Quando o presente é cheio de passado?

Última edição do ‘Abre Alas’ foi publicada em 10 de novembro de 1990. (Reprodução)

“Um movimento, quando surge, às vezes, é para negar o que já tinha ou para continuar”, observa Anelise Freitas. “O ‘Abre Alas’ inspira outros movimentos, que mostram que desde os anos 1950 tinha uma turma se movimentando na cidade. Os grupos surgem em Juiz de Fora para dar um fôlego, porque das artes me parece que a literatura é a menos prestigiada e, por isso, quem produz precisa se unir. A vontade que o ‘Abre Alas’ tinha inspirou muito o Eco (nos anos 2000). Os fundadores do Eco tinham uma relação mais direta com aquela geração. Esse diálogo com muitas cabeças do ‘Abre Alas’ continua ainda hoje. Essa troca inspira. A gente se toca”, destaca a poeta e pesquisadora. “Em Juiz de Fora hoje temos vários movimentos acontecendo no campo da poesia. Acho que os poetas mais ligados à universidade talvez tenham uma relação mais forte com o movimento dos anos 1980, até porque dois dos professores desse momento dão aula hoje na UFJF (Fernando Fiorese e Edimilson de Almeida Pereira). O círculo universitário dialoga mais”, avalia.

Para Anelise, o “Abre Alas”, em toda a sua extensão, não permitiu uma unidade estética. “Como outros grupos, ele tem a intenção de produzir junto, para só assim publicar, divulgar, ter crítica. É uma construção coletiva, não é uma escola. Vemos poéticas muito diversas. A unidade está na parte da produção”, analisa, apontando para a potência da ação política. José Santos resgata um Varal em 1984 quando fizeram a Chuva de Poesia, com poesias em papéis lançados do alto de um edifício no Calçadão e nas quais de um lado havia um texto e, do outro, uma cédula para ser preenchida com uma sugestão de nome para a presidência. “Quando está fazendo, não tem a noção, pode ter a pretensão. Um movimento precisa de aderência, que não se impõe, mas se constrói junto, coletivamente, de maneira orgânica. Não acho que eles tinham a noção do que estavam fazendo. Falar da importância daquele movimento só é possível com o olhar de hoje”, pontua Anelise, certa de que o movimento iniciado há 40 anos abriu alas para outras e novas ocupações das ruas. “Hoje temos encontros de MCs, vários slams nas ruas. Toda geração leva para a rua de alguma forma. A gente, atualmente, vê a poesia na rua pelos slams e pelos eventos de MCs. As rodas que se formam nas praças são bem interessantes, democráticas e emulam essa ideia do ‘Abre Alas’.”

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