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Outras ideias com Cecile kapinga

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O que te faz recomeçar? Desde que conheci Cecile Kapinga e até me debruçar sobre as teclas do computador, me atormenta a mesma questão. Se o tempo é tão curto, se tudo pode ser extremamente difícil, o risco do recomeço pode parecer por demais incompreensível. Mas não. Inexplicável, mesmo, é a ausência da liberdade, motivo que fez com que Cecile, seu marido Patrick Kasonga e o filho Jonathan Kasonga partissem da Kinshasa natal, na República Democrática do Congo, antigo Zaire, rumo ao novo começo. Na bagagem, a língua e a fé. Nas memórias, a família, o trabalho, a rotina, os lugares, os sabores e tudo mais. Quando ela e a pequena família desembarcaram em São Paulo, em 2006, traziam as marcas do 155º país, em uma lista de 167 (segundo levantamento da revista “The Economist”), com o menor índice de democracia do mundo. Nação que pouco a pouco se despede dos traumas de uma guerra civil recente, mas ainda vive sobre os imperativos da opressão e do autoritarismo.

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“Em 2006, aconteceu eleições no Congo, e foi a primeira vez que havia mais de um candidato. Quase o mundo inteiro estava lá para ver o que iria acontecer. Na África, não é como aqui. Eram cédulas enormes, porque havia 32 candidatos. No mesmo dia, também seria a votação para deputados. Em cada zona eleitoral, observadores internacionais passavam perguntando. Falei que estava sendo uma bagunça. Uma semana depois, as pessoas que manifestaram indignação começaram a receber ligações de ameaça, como a ditadura, em que não se pode falar alto. Assim, saímos de lá”, conta. “Eu era membro de um partido político da oposição, ia a manifestações. Meu marido também, meu pai, minha mãe. Nós gostamos disso”, diz a militante da União pela Democracia e Progresso Social (UDPS).

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Formada em pedagogia, Cecile, hoje com 45 anos, trabalhava como relações públicas de uma empresa de transporte aéreo de cargas e tinha uma vida confortável na capital congolesa. “Venho de uma grande família, com mais dez irmãos, meu pai e minha mãe são vivos, meus avós, também, e tenho muitos sobrinhos”, orgulha-se. Nesse momento, pergunto sobre a saudade. O Skype e o telefone tentam contornar o que há oito anos tornou-se distância. “Acho que o trabalho – e eu gosto de dar aula – ajuda a não ficar sozinho. Somos só três pessoas, e, às vezes, no aniversário do meu filho, somos apenas eu, meu marido e ele”, exemplifica ela, que não espera um retorno. “Vontade de voltar, hoje não tenho. No Congo, a pobreza ainda está lá, mas dá para se virar. Não é o que vemos na televisão, de crianças só em pele e osso. Porém, é preciso batalhar muito para conseguir. Acho também que meu filho não vai se adaptar”, pontua a mãe de um adolescente de 14 anos.

Um ano após sua chegada, Cecile conseguiu asilo político no Brasil e hoje alcançou a permanência. “A vida não é tão fácil para imigrantes que não são da área do comércio, para pessoas que vêm para viver”, conta. O marido, formado em informática, resolveu cursar uma universidade para refazer sua vida profissional. Escolheu Juiz de Fora, para onde a esposa se mudou em 2011, dois anos depois dele, e hoje leciona francês em um curso particular. “Quando cheguei, a primeira reação foi: ‘Nossa! tão pequena!'”, ri alto. Cecile tem um riso desses que contagia. “Em São Paulo, eu trabalhava, mas foi em Juiz de Fora que vi as portas se abrindo”, emociona-se.

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Vocês fizeram amigos aqui?, pergunto. “Não muitos, porque o juiz-forano não é dessas pessoas que abraçam num primeiro encontro”, diz. Tenho a impressão de que o distanciamento que essa congolesa guarda consigo nos revela o que não enxergamos, cegados pela imersão de uma vida toda passada nas bandas de cá. “Às vezes, os brasileiros criticam muito o país, mas digo que ninguém sabe o que é um país desorganizado. No Congo, ninguém vai a um hospital sem dinheiro. Quem não tem como pagar morre. Aqui, se você for até mesmo num posto de saúde, encontra Aspirina. Lá, os estudos, desde a creche até a universidade, são pagos”, pontua ela, confirmando a clareza com que vê os muitos lados.

Um dos dilemas que Cecile encontrou ao chegar ao Brasil é o que mais chama sua atenção: as roupas. “Algumas eu trouxe. Quando amigos vão ao Congo, eles…”, engasga. Resolvo ajudar: “Trazem”, sugiro. “É um verbo difícil esse verbo trazer!”, ri, para logo retomar: “Quando amigos vão ao Congo, eles trazem e vendem o pano”. “Na África, eu não usava muito calças, usava saias e vestidos, mas aqui as mulheres usam muito mais calça. Na minha cultura, na minha convicção de cristã crente, não costumo usar roupas mini e sem manga. Então, fica ainda mais difícil. E como sou cheinha, percebo que roupas com tamanho maior são feias, e as lindas são muito caras”, afirma.

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“Decidi aprender a costurar. Matriculei-me numa escola há um ano e meio, e meu marido comprou uma máquina para mim. Pesquiso na internet ‘vídeo de como fazer saia’ e me viro assim.” Os cabelos trançados são feitos por uma estudante da Guiné-Bissau. E o francês é língua oficial em casa.

“Crente, de uma família de crentes”, Cecile também demorou a encontrar um templo. “Vou à Igreja Batista. No Congo, eu era evangélica, mas quando cheguei aqui, não gostei muito, porque falavam menos do Espírito Santo e mais de dinheiro”, conta, para logo acrescentar: “Quero que meu filho seja educado nessa linha da religião, não como conceito, mas como uma relação vertical com Deus”. Quando pergunto-lhe do sonho mais urgente, ela me diz do desejo em ter uma casa própria, o que selaria sua decisão por Juiz de Fora. “Essa certeza meu marido e meu filho já têm. Eles não pensam em voltar. Só eu que ainda me balanço”, diz.

Seu país de origem mantém-se na memória, nos hábitos cotidianos e no contato virtual com a família. O que fez Cecile recomeçar foi estar em um país que sai às ruas, que leva multidões em manifestações. “No Congo, quando acontece, pode ter certeza de que terão muitos mortos. Já assisti a duas vezes manifestações na rua e vi a polícia atirando bala real na multidão. Então, foi lindo ver as pessoas na rua em junho de 2013”, comenta. Sim, a liberdade merece recomeços.

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