Desde outubro de 2012, o jornalista Ramon Vitral escreve no seu blog, o ‘Vitralizado’, sobre quadrinhos produzidos no mundo inteiro. Além deste portal, ele também colabora com portais como Uol, Folha, Globo e Rolling Stone, mantendo uma produção sobre o mesmo tema. Em cada um dos canais, se adapta e tenta trazer para aqueles que não costumam ler quadrinhos uma apresentação sobre o universo, assim como para os já familiarizados com os HQs algo singular sobre as obras que estão sendo comentadas. Neste sábado (24), a reunião de mais de uma década de reportagens, entrevistas, críticas e análises toma forma de coletânea em “Vitralizado – HQs e o mundo”, livro que vai ser lançado no Café Meiuca, a partir das 14h.
O próprio interesse do jornalista pela profissão vem do caminho que trilhou como leitor de quadrinhos. “As memórias mais antigas que tenho, antes até de Maurício de Souza ou ‘Menino Maluquinho’, que estiveram muito presentes na minha infância, eram dos jornais que meus pais sempre liam. Eu comecei a ler jornal pegando o caderno de cultura e indo pra página de quadrinhos. Daquela última página, ia descobrindo as outras coisas”, conta. A relação se manteve e, com o tempo, também se intensificou. Em 2014, ele chegou a passar uma temporada em Londres escrevendo sobre produções para veículos brasileiros, e prestando atenção justamente naquilo que parecia estar mais distante do foco do jornalismo cultural do momento. Ao se voltar para o que estava sendo produzido nos quadrinhos, também percebeu que a linguagem estava sendo feita de diferentes formas e que ele poderia ter um acesso mais fácil as autores.
O livro já estava sendo pensado desde que o portal havia feito cinco anos, mas foi concretizado com a ajuda da editora MMarte, que também ajudou na reunião dos textos. Ramon conta que foram escolhidos textos emblemáticos para a produção de quadrinhos mais recente no país, que é também a que ele mais gosta. A escolha pelas publicações levou em conta os dois públicos diferentes que tenta alcançar em sua profissão. “Fui escolhendo com base nos textos e entrevistas que foram além dos quadrinhos, porque eu adoro experimentação e analisar o uso da linguagem, mas em termos de acesso de público e dialogar com os leitores acho que esse debate às vezes se torna restrito. Quando escrevo, preciso conciliar as diferentes realidades”, diz.
Entre os textos escolhidos, ele conta que selecionou entrevistas com Chris Ware, Emil Ferris, Joe Sacco, Rutu Modan, Marcelo D’salete e Naoki Urasawa. Muitos desses quadrinistas são difíceis de entrevistar, e foi preciso que o jornalista tivesse profundo conhecimento sobre suas obras para conseguir o contato. Um dos diferenciais da publicação é que esses textos estão na íntegra, como saíram no blog e também como saíram nos veículos que pagaram o jornalista, muitas vezes em formatos reduzidos. Um dos destaques do livro, em sua visão, é o olhar sobre a obra de Marcello Quintanilha, hoje um dos quadrinistas brasileiros mais celebrados no mundo, e que “fala sobre a condição humana e reflete sobre o que é ser brasileiro”. Da mesma forma, quando começou a preparar a seleção, também sabia que queria incluir textos sobre a Laerte, que considera uma grande referência na área, e sobre seu filho, o Rafael Coutinho. “Com o Rafael, fiz um dos trabalhos profissionais mais interessantes da minha vida. Foi quando ele publicou ‘Mensur’, em 2017, e ele tinha passado 7 anos escrevendo. Era uma entrevista que falava mais do que apenas sobre o lançamento, mas da vida do autor naqueles anos se dedicando à obra”, conta.
Conteúdo autoral
Apesar de perceber que há um interesse maior em falar sobre HQs nos veículos tradicionais nos últimos anos, enxerga que o viés que aborda em seu blog se diferencia dos espaços que foram criados. “Acho que principalmente pelo tipo de quadrinho que eu escrevo, porque até se fala sobre quadrinho, mas sobre quadrinho de super-herói. E às vezes nem sobre o quadrinho, só sobre o super-herói mesmo, por causa de todos os filmes e como essa indústria norte-americana foi sugada por Hollywood e se tornou uma grande fonte de inspirações para as produções de lá. Isso domina os debates”, diz. O foco de Vitral, portanto, tem sido centrado em publicações autorais, que fogem desse mainstream. “Escrevo sobre coisas grandes e sobre autores premiados, claro, mas acho que eles tendem a fugir desse ambiente geek, nerd, consumista e colecionista dos últimos anos, que acabou acoplando esse mundo dos quadrinhos”, ressalta.
Reunir esse material, em sua visão, também permite perceber o quanto acompanhou os caminhos que os autores dos quadrinhos que admira seguiram nos últimos anos. É uma reflexão sobre o que mudou em suas produções e que caminhos também pretendem desbravar. Para conseguir esse resultado, o autor conta que também precisou rever os seus próprios processos, e se comprometeu a não editar os textos, por mais que, no momento, notasse mudanças no próprio estilo e no que tinha vontade de abordar com os autores. “Acho que em todos os textos, até o mais recente, se eu fosse escrever hoje, faria de outra forma. Por ser uma obra autoral, que também diz muito sobre quem eu sou, fala sobre quem eu fui. Eu respeito muito isso. Hoje faria várias coisas diferentes, mas entendo os motivos que levaram o Ramon de antes a fazer essas escolhas”, diz.
Por meio dos quadrinhos, sobre o mundo
Da mesma forma, na visão de Ramon, o livro tem o potencial de expor “como a linguagem dos quadrinhos é eficaz para falar sobre qualquer coisa”. Com o tempo de experiência na área, essa foi uma percepção que ele também passou a ter: os quadrinhos serviam para entender a vida ao seu redor. “A forma que eu escrevo mudou, o foco das minhas entrevistas mudou bastante também, principalmente pela forma como hoje encaro uma obra. Quero cada vez mais relacionar as obras com a nossa realidade, pensar as pontes entre o trabalho publicado e o que está acontecendo no mundo”, conta.
É por isso que, apesar do livro já ser pensado há anos, ele quis que fosse feito para chegar até pessoas que não estão restritas aos conhecedores de quadrinhos. Seu editor, Marcio Paixão Júnior, também ajudou nessa visão do potencial que aquelas páginas tinham. “Ele me mostrou: ‘cara, você não tá falando sobre quadrinhos, tá falando sobre o mundo todo’. E foi aí que pensamos no título. Há um diálogo do livro com o mundo, com algo maior, que é a nossa própria realidade, o mundo contemporâneo, nossos dramas e dilemas”, conta. Assim como, ainda menino, começava a ler o jornal pelos quadrinhos, é a partir deles que pensa sobre o mundo: “Acho que é isso que torna interessante qualquer obra de arte. A gente quer ler livros que falam sobre o que estamos vivendo, e obras que traduzam de alguma forma o mundo pra gente”.
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