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‘Tom na fazenda’ chega pela segunda vez a JF

Armando Babaioff e Gustavo Rodrigues5 foto Victor Pollak
Tom na fazenda
Para Babaioff, viajar com o espetáculo que já tem seis anos de estrada e fazer 276 apresentações é o maior gesto político que se pode fazer (Foto: Victor Pollak/ Divulgação)
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Armando Babaioff deve sua carreira à escola pública, em Jacarepaguá, onde estudou. Lá, no currículo, tinha teatro. Coisa tão rara. Foi nessa escola onde ele assistiu, pela primeira vez, ao teatro. Onde ele brincou de teatro pela primeira vez. “A humanidade está aí, no teatro. E isso faz uma diferença e tanta na vida”, defende o ator. Anos depois, entre o teatro e a televisão, Babaioff, que se apresenta como um curioso, foi descobrindo outras possibilidades que esse mundo teatral poderia oferecer a ele. Descobrir adulto, como quando menino fez com a atuação, a novidade para além disso. Quando teve acesso ao texto de Michel Marc Bouchard, o “Tom na fazenda”, começou uma tradução intuitiva, mostrando-se ali, nesse processo, mais como um ator que como um tradutor legítimo. Mas assim fez, por ofício. Traduziu o texto que, anos depois, teria sua versão em português rodando o mundo, com sua tradução e atuação, e a direção de Rodrigo Portella. “Tom na fazenda”, o teatro brasileiro contemporâneo, ganhou o mundo. Pela segunda vez, a peça chega a Juiz de Fora, mas, agora, com bagagem maior, muitos prêmios, novos atores e, no fundo, a mesma história. As duas apresentações vão acontecer nesta quarta-feira (26) e quinta-feira (27), no Teatro Paschoal Carlos Magno, a partir das 20h30.

Além de Babaioff, que é Tom no espetáculo, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary dividem o palco enlameado de “Tom na fazenda”. A peça conta a história de Tom: o publicitário que viaja rumo a uma fazenda para o enterro de seu companheiro. Além dessa dor que tem que lidar com a perda, lá, ele descobre que a família do companheiro agora morto não sabia que ele era gay, muito menos desse namoro, e quem era aquele homem instalado na fazenda. O ambiente rural vira cenário de uma trama que envolve mentira, confusão e perigo. Tudo cheio de contradições que chegam em cheio ao público.

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Enquanto roda Natal rumo a próxima praia para um descanso depois de um batidão de entrevistas, Babaioff divide com a Tribuna a experiência que é fazer teatro, hoje, no Brasil e, apesar das dificuldades, conseguir ir além-mar com “Tom na fazenda”.

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Tribuna: O teatro é ainda muito desvalorizado no Brasil. Insistir no teatro representa o quê?
Armando Babaioff: O país em que a gente não tem contato com a nossa própria cultura é um país em que é cada um por si. A gente esquece do coletivo e fica refém das políticas. E isso é independente de quem esteja no poder, porque a cultura é algo que está assegurado na constituição. E, independente do partido, aquilo tem que ser garantido. O que a gente viu acontecendo na história do nosso país é triste demais. Perdemos espaço, perdemos investimentos e viramos inimigo do povo. A gente ainda está em um lugar de ter que ensinar a real função da arte, da cultura e do teatro. Viajar com “Tom na fazenda”, fazer 276 apresentações é o maior gesto político que a gente pode fazer. Estar em cartaz, nesses seis anos, é o nosso maior ato político.

E vocês ainda conseguiram ir para a França com a peça, representando o Brasil, apesar disso, né?! E como foi essa experiência?
É muito curioso conseguir sair do Brasil com teatro. Eu já tinha vivido isso uma vez, em Portugal. Mas levar isso para França era experimentar uma outra escuta, um outro entendimento da cena e da receptividade do público. A curiosidade maior que eu percebi era dos franceses querendo saber de que maneira nós, artistas brasileiros, estamos traduzindo o nosso tempo. De que maneira nós estamos abordando determinadas questões que são caras para o Brasil e que talvez não sejam questões tão pungentes na França, por exemplo. As discussões sobre homofobia na França estão em outro lugar em comparação ao Brasil. Quando chegamos lá, somos um retrato, cronistas do nosso tempo. O que apresentamos lá é a nossa visão sobre aquilo. E isso chama atenção. A encenação do Rodrigo Portella potencializa ainda mais isso. Tem esse lugar da curiosidade e da representatividade mesmo do teatro brasileiro. Eu falo isso com muita humildade, mas “Tom na fazenda” talvez seja uma das peças mais importantes do cenário teatral neste momento. E o que a gente faz, levando a peça para fora do Brasil, é também esse movimento de internacionalizar o espetáculo de teatro brasileiro, mas também é um movimento de enaltecimento do teatro brasileiro. O que a gente faz é ler o momento, ver que a peça tem potencial, não só comercial, mas artístico e que, realmente, comunica onde quer que a gente vá. E isso é a olhos vistos. Eu estou falando isso por experimentar isso no palco.

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Desde sempre, você como idealizar da peça, tinha essa pretensão da internacionalização de “Tom na fazenda”?
Quando a gente estreou a peça, a sensação que a gente tinha era de que a gente estava abrindo o palco, a sala de teatro para mostrar uma coisa que a gente ensaiou ali: essa era a nossa pretensão. O entendimento da peça, a leitura que a gente foi fazendo da peça foi ganhando corpo ao longo do tempo. Até hoje, o que acontece no Brasil e no mundo a gente consegue fazer links com o texto e com a encenação. A gente percebe como a encenação é uma esponja que absorve as mudanças das discussões do mundo. Isso é a função da arte. A gente percebe que a gente tem um espetáculo que é um espetáculo que fala para além da história que está sendo contada. Ela é uma história muito concreta, muito bem escrita, diálogos muito bem amarrados, é uma marchetaria o que o Michel Marc Bouchard faz. Mas, ao mesmo tempo, a encenação, o tema, a história, são uma esponja que absorve os dias atuais. Cada vez que o espetáculo sobe ao palco, ele vai ganhando significados diferentes. A gente percebe que a peça está em movimento, ela não está parada. É um espetáculo que ainda está em processo.

A equipe escolhida contribui para esse movimento da peça?
Isso tem tudo a ver com a equipe. E esse lugar é curioso, porque quando a gente olha para o projeto a gente percebe que a contribuição individual de cada um transformou essa peça nesse coletivo, nesse lugar de pensamento, nesse lugar de troca, nesse lugar de crescimento, nesse lugar de continuidade do trabalho que o próprio Rodrigo diz: ‘Às vezes eu acho que a função do diretor nessa peça é reunir as ideias que cada um traz da melhor maneira possível. Às vezes eu não me vejo como diretor, eu me vejo como um organizador de ideias’.

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Além da idealização e de atuar no espetáculo, você assina a tradução do texto. Como ator, principalmente, como foi esse processo?
O processo de tradução foi muito divertido. Traduzindo, eu descobri um grande jeito de poder brincar com as palavras. Eu não traduzi como um tradutor, nem como um estudioso de letras. Eu traduzi como um ator. Então, todos os textos eu colocava na minha boca para ouvir como aquilo soava. Eu brincava muito com isso. E também aproveitei para colocar as minhas impressões naquilo: tirar algumas referências geográficas, algumas referências culturais que identificariam a peça como estrangeira sendo montada no Brasil, porque isso não me interessa. Poderia virar um documento histórico sobre uma vila no Canadá, mas quando a gente resolve trazer para o interior de algum lugar do Brasil, eu invisto nesse lugar do não-lugar. A minha fonte de inspiração é a minha vida. Eu coloquei muita coisa minha ali, minha família, minha mãe, essas coisas. Eu trouxe muito para uma realidade que é muito próxima da minha e, de alguma maneira, das pessoas que cercam esse projeto.

O texto parece jogar luz sobre muitos assuntos. Isso é proposital?
Eu acho que essa peça é uma maneira inteligente de falar sobre vários temas. Independente do tema principal do espetáculo. Ainda mais esse espetáculo que pede a contribuição do público de maneira ativa e não passiva. Ele faz com que o público complete as lacunas que a peça propõe o tempo inteiro com a própria vivência. Existem diversas camadas de leitura desse espetáculo. Você pode não se identificar com absolutamente nada do que é o tema central da peça, mas você se identifica com as relações humanas, porque fala da gente, fala da humanidade, fala da falta de humanidade. É um lugar do humano em que a gente conta com a contribuição do público para completar a história. Meu personagem entra em cena e descreve um cenário. Logo de cara ele está pedindo ajuda do público para imaginar aquele lugar. Então, a partir desse momento, o público já é convidado a entrar em um lugar de reflexão, porque o texto não é entregue de mão beijada. O público é obrigado, de alguma maneira, a mastigar, engolir e talvez até regurgitar para engolir de novo.

Acha que esse é o motivo de a peça continuar sendo tão assistida, mesmo com tanto tempo de circulação?
A peça chega nas pessoas. Ela consegue isso, logo nos primeiros minutos de espetáculo, e eu, como ator, em cima do palco, percebo. E não é de hoje. São 276 apresentações, então a gente já tem um termômetro. Já existe quantidade suficiente de apresentações para entender que a minha maior preocupação hoje em dia quando eu entro em cena, e do elenco também, é simplesmente viver aquilo naquele dia. O que a gente entrega naquele dia, eu costumo brincar, o prato do dia, o jogo do dia. A gente entra em cena para viver aquela coisa pela primeira vez, como se nada tivesse acontecido antes. Porque não existe mais a preocupação de entrar em cena para tentar reproduzir alguma apresentação boa ou uma cena boa. A gente sabe que a peça chega ao público. A gente sabe que a estrutura da peça, tanto a encenação quanto o texto e a interpretação contribui, esse somatório de coisas, e eu falo das outras artes também, a cenografia, a trilha sonora, a iluminação – tudo converge para um grande acerto na contação dessa história. Ela chega para o público de uma maneira muito redonda. Então a gente sabe que o público está sendo atingido. Não é mais um lugar de preocupação do tipo gosto ou não gosto, não. Nós entramos ali para contar uma história. Então, vem com a gente. Entra. E a gente percebe que o público sempre entra nesse lugar do jogo. E é a parte mais necessária, que é essa relação que existe entre o que é mais básico do teatro: elenco e público.

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O elenco, inclusive, já mudou algumas vezes. Como manter a relação público e elenco apesar das mudanças?
Essa mudança de elenco é um frescor. Acontece que muda muito, só que a história continua a mesma, mas com a contribuição de cada um. Cada um vai inserindo um pouco na peça: sua personalidade, sua leitura, sua interpretação, seu entendimento daquilo, e aquilo vai mudando, seu temperamento, a maneira como você pensa a cena, a sua energia, ela muda toda a leitura de uma peça. E aí a peça se mantém em sua integridade, mas vai ganhando outros contornos, e isso também é interessante.

Seis anos de peça, e um livro já até foi lançado. Qual o futuro de “Tom na fazenda”?
A gente ainda está no meio do caminho, tem muita coisa para fazer. E muita coisa que eu não faço ideia ainda do que vai acontecer de fato. Mas é o meio. A gente está no meio de uma história. E o que eu acho mais importante de ser dito é que o que está acontecendo com esse espetáculo, e que vai para além de nossa vaidade, é o teatro brasileiro que está sendo falado. A gente está defendendo o melhor do teatro brasileiro. Viajar com essa peça, levar essa peça para além-mar, é defender o que a gente faz de melhor no nosso país. E que bom que aconteceu com a gente, porque eu estou adorando essa aventura. Mas é um marco histórico do teatro brasileiro. Isso é um fato.

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