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Guilherme Kramer traz ‘cartografias faciais’ a Juiz de Fora

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(Foto: Fernando Priamo)

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Guilherme Kramer já realizou exposições individuais e coletivas em cidades como Barcelona, Lisboa, Roma, Bogotá, Berna, Paris e Xangai, assim como no arquipélago português de Açores (Foto: Fernando Priamo)
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Agrada ao artista urbano Guilherme Kramer, 43 anos, como o tempo borra a memória. O percurso pelas ruas lhe é a principal fonte de informação. Como o que faz de casa para o ateliê, no Centro de São Paulo, no metrô. “Não sou um pintor flaneur, que fica vendo o morro e pinta o morro como é”, afirma. Kramer carrega as informações de dezenas, centenas de rostos e territórios para descarregar nas telas, quando o borro se transforma em outra coisa. “É como se a realidade decantasse do meu subconsciente”, completa. Um traço contínuo, nervoso. Um traço que retrata as cores que as pessoas levam dentro delas. Como se portam no “organismo vivo” das cidades. A inspiração culminou na série de murais “Multidões”, que o levou a Hong Kong e ao Canadá. E o trouxe à Zona Norte de Juiz de Fora, onde está desde a última segunda-feira (19).

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Kramer é formado em comunicação social, mas estudou artes aplicadas ao muro na Escola Massana, em Barcelona, Espanha. A formação o levou a se dedicar a técnicas de pintura, desenho, cerâmica, vitral e performance. Sempre busca a potência cromática de cores gritantes para retratar as cidades por onde passa. A observação até lhe rende borrões, esboços. Mas a arte tem como protagonista o próprio subconsciente. “Às vezes, vejo uma pessoa em uma padaria de bairro e penso que a conheço. Mas não é que eu conheço. É porque tenho uma memória da feição das pessoas. Essas coisas ficam rendendo no nosso consciente. Dá uma energia, uma potência criativa. Quando me proponho a fazer pintura, descarrego justamente isso.” Uma pessoa pode estar mais agitada, nervosa ou calma. “Tudo reflete nas cores”, explica Kramer.

O artista urbano fez um mural na Penitenciária Feminina de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão, em setembro de 2020. Uma das internas lhe pediu que a pintasse. Kramer então propôs à coordenadora um exercício de retratos. No entanto, as mulheres não se viam nas imagens. As amigas até diziam que os desenhos retratavam as companheiras, que, mesmo assim, não se enxergavam. A coordenadora por fim lhe explicou que, como não havia espelho na penitenciária, as internas não se viam há muitos anos. “Busquei criar uma memória coletiva, com os registros que as detentas tinham das próprias vidas. Foi uma experiência bem intensa”, recorda. Mas não somente os rostos, pondera.

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O paulistano define o próprio trabalho como “cartografias faciais”. “Cada rosto pode ser um mapa”, define. As faces carregam os bairros, as cidades, os países. As pessoas expressam a história de suas vidas. “O gênero, a raça. Não é apenas uma pessoa. É a ancestralidade daquele indivíduo que está sendo retratado. E também pode ser uma mistura da ancestralidade com todo o restante. Por isso uma variedade de cores”, explica. Kramer costuma adjetivar as multidões de “os vívidos”, o que, acrescenta, é autoexplicativo. “Uso cores superfortes, contrastantes e gritantes. Mas o vívido que digo vai além da cor, porque pega no cerne da grande expressividade que tem o povo brasileiro.”

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"A Zona Norte é uma região muito intensa, tem muita vida. As pessoas são generosas. O juiz-forano é super carinhoso e generoso na relação humana. São Paulo é embrutecida", brinca Kramer (Foto: Fernando Priamo)

‘Entrei pela Zona Norte’

Questionado sobre a técnica, Kramer brinca ser “spray sobre muro”. “Primeiro, uso um bambu, que é a minha base, a minha guia dos tamanhos dos rostos, para ser proporcional. Vou fazendo as medidas dos olhos, das cabeças etc”, explica. “Depois, esboço as formas com um grande lápis de grafite, e, então, pinto com o spray. Cada rosto é feito com o calor do momento.” O artista urbano terá em Juiz de Fora um mural de 96 metros quadrados de concreto no estacionamento do Moinho Zona Norte mais algumas dezenas de lata de spray para construir um mural que expresse aquela região. O paulistano tem poucos dias para captar a vivacidade do ambiente. “Cheguei há poucos dias, mas, como entrei pela Zona Norte, já fui impactado pelo grande número de morros que a região tem, pelo grande número de casas.”

O desenho tomará um mural de 24 metros de largura por quatro de altura no antigo Moinho Vera Cruz (Foto: Fernando Priamo)

Kramer busca entre um descanso e outro dar uma circulada pelas ruas da região “em uma circunferência de mais ou menos um quilômetro e meio”. E não é apenas a primeira visita a Juiz de Fora que lhe impõe obstáculos para o trabalho. A pandemia é outro. “Andei pelas ruas do Centro ontem à noite. Só que as ruas estão vazias como se houvesse um toque de recolher mesmo. As cidades não estão sendo ocupadas pelas pessoas na pandemia. Viramos andarilhos solitários.” Ao menos há um ponto de ônibus em frente ao Moinho, destaca o artista. E os microdiálogos. “Na arte urbana tem muito disso. Uma pessoa que te aborda e então você tem ali dois, três minutos de conversa. Puxo assunto, pergunto se está indo trabalhar, se está com o filho, com a filha. Sempre há a troca de ideias.”

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Outro dia, conta, um senhor ficou parado em frente ao mural onde Kramer trabalha por duas horas. “Fazia uns vídeos, ficava em um canto, em outro. De repente me chamou e comentou que estava há bastante tempo ali. O cara estava simplesmente curtindo o processo da pintura. E olha o momento que estamos vivendo… muito seco, árido”, diz. Para o artista, a performance ao ar livre não deixa de ser um evento cultural em meio às restrições para entrar em um teatro ou cinema. “Estamos ao ar livre e existe um mínimo de convivência. Pelo menos floresce.” A intenção de Kramer no fim das contas com o mural é surpreender e provocar as pessoas à reflexão. “É uma apologia aos encontros. Aqui, a escala humana é bem ampla. Cada indivíduo é parte importantíssima do coletivo. As ações do dia a dia reverberam muito na comunidade em geral. E, com a pandemia, a responsabilidade individual se tornou mais latente.”

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