
Durante o carnaval de São João Nepomuceno, no maior bloco da cidade, o Bloco do Barril, uma música chama a atenção dos foliões. É aquela que começa com “Franele josué/ cataguais marmito/ pompeu combutá maroida/ Franele josué/ Fúba prá pompeu! Pompeu muqué mutum!”. Apesar das pessoas cantarem e acompanharem a letra, a marchinha não é entendida por todo mundo – e menos ainda por quem é de fora. Isso porque Flávio Ferraz, são-joanense que compôs a música, usou do dialeto “Pompeu e godê” para criar a letra. Apesar de não ter todas as características para ser definida oficialmente como língua, quem é da cidade entende que é o idioma informal de São João Nempomuceno, que foi criado durante os anos 1960 e passado para as gerações seguintes por familiares e amigos fluentes. A brincadeira servia para tudo: desde falar segredos até comentar sobre outras pessoas na rua.
A história da origem do “Pompeu e godê” varia. Alguns acreditam que começou durante o período da Ditadura Militar, para que as pessoas pudessem se comunicar sem problemas com o regime. Outros acham que começou dentro de uma fábrica, para que os funcionários pudessem reclamar e passar recados durante a rotina. Mas, em São João Nepomuceno, a hipótese que parece ser mais aceita é que começou entre os engraxates da cidade, em um local conhecido como Beco da União, perto da Praça Carlos Alves, no Centro. Eles teriam começado com essa brincadeira para falar dos clientes e comentar apenas entre eles os valores que iriam cobrar. Seja qual for a origem, no entanto, fato é que a coisa se espalhou. Tanto que, décadas depois, ainda é possível ver a população entoando música nesse idioma, bares nomeados pela língua e até escolas de samba aproveitando o dialeto em pedaços de suas letras.
No bom e velho português, “Pompeu e godê” significa “eu e você”. Flávio, o artista plástico que criou a música e que atualmente tem 78 anos, se lembra que aprendeu com amigos. “É uma língua que brinca com as semelhanças dos sons das palavras. Não sei exatamente a lógica.” Ele não é tão fluente no dialeto, mas foi aprendendo algumas palavras, e achou que seria uma boa continuação dessa brincadeira transformar em música. Assim, ele podia até falar “sacanagem”, sem que ninguém soubesse. Sobre a tradução da letra, ele diz: “Quer saber ou quer continuar no mistério?”. Para não estragar a brincadeira, a Tribuna só vai te contar que é um flerte, bem para frente, entre uma mulher e um homem. “Maroida de morais”, o nome da marchinha, significa “doida demais”.
A língua era mesmo muito usada para falar das mulheres sem que elas soubessem. Por isso, muitas delas não aprenderam, de primeira, a falar o dialeto – algo que a corretora Lilian Itaborahy, de 38 anos, acha que pode estar mudando, porque há mais gente se interessando por entender a língua. Em 2008, ela, que também é de São João Nepomuceno, participou de um curta documental em que atuava como uma personagem que ia passar o carnaval na cidade, como se fosse turista, e escutava as pessoas falando de um jeito que ela não entendia em muitos lugares. “A prática de falar, eu não tenho. Mas tenho muito interesse, porque acho muito curioso ter continuado até hoje.” Para ela, a ideia de fazer esse curta foi uma ótima forma de ajudar nesse registro, ainda mais contando com pessoas que de fato já falavam o “Pompeu e godê”. “Eles falam em uma naturalidade impressionante, é difícil demais de entender.”
Identidade são-joanense
São cerca de 25 mil habitantes em São João Nepomuceno. Ainda que não seja possível estimar quantas pessoas são falantes do “Pompeu e godê” na cidade, a brincadeira criada décadas atrás virou um aspecto importante da cultura para muitas pessoas. E, talvez, pelo próprio jeito são-joanense de ser, tenha se espalhado tão facilmente. É exatamente isso que conta o jornalista Márcio Sabones, de 47 anos, que aprendeu algumas palavras em casa. “Quando falam em língua do ‘Pompeu’, a primeira coisa que vem na minha mente é o churrasco que meu pai fazia com os amigos e aquele clima de brincadeira.” Para ele, a união da cidade fez toda a diferença para que o dialeto se popularizasse, coisa rara de se ver acontecendo em outros municípios. “Todo mundo se fala, todo mundo se vê. Virou uma brincadeira da garotada, que passou para todo mundo. É uma brincadeira desses garotos, que agora são avós”, brinca.
A possibilidade de usar o “idioma” já provocou situações inusitadas em sua vida, e que mostram a força que essa linguagem em comum pode ter. “Uma vez, eu estava morando no interior de São Paulo, e comecei a escutar gente falando em ‘Pompeu’. Quando virei, era gente de São João. Se não fosse pela língua, eu não ia saber. Começamos a conversar. As pessoas olhavam ao redor sem entender nada”, lembra.
Sem dicionário
Muita gente fala em montar um dicionário do “Pompeu”. É a vontade, por exemplo, de Lilian Itaborahy e de Márcio Sabones, que enxergam essa alternativa como uma forma de preservar a língua – já que, atualmente, muitos dos primeiros falantes já morreram, e fica difícil passar para as próximas gerações sem um conhecimento registrado para além da oralidade. Da mesma maneira, Flávio acredita que, se não tiver um trabalho mais profundo de documentação, o “Pompeu e godê” pode ser esquecido.
“A minha filha, por exemplo, já tem pouca ligação com a língua, porque eu não uso muito, só em um momento ou outro. Temos que fazer esse trabalho para essa herança cultural não se perder”, comenta Márcio. Esse registro, então, é uma vontade dos falantes para mudar o cenário. Até existem alguns sites com a tradução de algumas palavras. No entanto, ainda incompleto. A importância dessa língua está, como destaca Márcio, justamente em ser algo que mostra essa particularidade de São João para o mundo, além de promover uma brincadeira que já deixou várias gerações curiosas.