A poesia, agora, não tem mais a função de deleitar e instruir. A poesia, agora, deve problematizar a sociedade e a si própria. Charles Baudelaire com seu “As flores do mal” está no contrafluxo, à procura de um olhar meticuloso em relação à cidade e desenvolvendo um novo estilo. Isso, em pleno século XIX, mais especificamente em 1857, quando o livro é publicado pela primeira vez, quando os hábitos e costumes estão em permanente metamorfose, quando tudo muda, e muda rápido demais, quando o maior desafio é representar e traduzir esse estado de mudança na literatura. De maneira pioneira, Baudelaire opta por traduzir Paris através de seus tipos, dos catadores de ruas, das damas da sociedade, dos pobres e miseráveis, das prostitutas, personagens de uma capital selvagem. Para o poeta francês, o artista deve estar em convalescença, deve ser uma criança, deve saber lidar com o mundo que a cada dia é outro. Assim, aos 36 anos, Baudelaire inaugura a modernidade nas palavras. E como em toda ruptura, “As flores do mal” torna-se rapidamente alvo de um processo judicial proibindo seis de seus textos, suprimidos na edição de 1861.
Retomando a publicação com os poemas acrescidos numa edição póstuma, de 1868, “As flores do mal” retorna às prateleiras em volume bilíngue, editado pela gigante Companhia das Letras e com tradução do poeta e crítico juiz-forano Júlio Castañon Guimarães, que lança a obra nesta sexta (22), às 19h, na Aliança Francesa de Juiz de Fora. Considerado o seminal livro da modernidade, o título na nova versão, com 648 páginas, reúne apêndices de J. Barbey d’Aurevilly, Guillaume Apollinaire e Paul Valéry, fundamentais para uma leitura mais aprofundada da obra do poeta maldito morto aos 46 anos. “A noção de moderno em Baudelaire é bastante complexa, quando pensamos como ele reagiu, por exemplo, a algumas criações artísticas de sua época, mas a incorporação da vida da grande cidade é sem dúvida um aspecto central de sua produção, onde se pode acompanhar sua abordagem desse homem que se poderia dizer moderno”, pontua o novo tradutor Júlio Castañon Guimarães, que também já transpôs para o português Valéry, Mallarmé, Barthes, Bataille e Sartre, além de ter organizado uma edição crítica de poesia de Drummond e de crônicas inéditas de Manuel Bandeira. Em entrevista por e-mail à Tribuna, Júlio aborda os desafios de seu trabalho, a expectativa da recepção e exalta a grandiosidade de uma obra que não se esgota e, como a sociedade que Baudelaire tomava de visada, a cada dia é outra.
Tribuna – Passados mais de um século e meio de sua publicação, é possível identificar com mais clareza ainda as marcas deixadas por essa publicação. Como “As flores do mal” chega ao ano de 2019? O que há de atual nesta obra?
Júlio Castañon Guimarães – Em primeiro lugar pode se lembrar que poetas fundamentais que se seguiram a Baudelaire – como Rimbaud, Mallarmé e Valéry – começaram sua produção sob forte influência dele. O próprio Valéry chega a dizer que não teria existido não fosse a obra de Baudelaire. E é possível ver isso em outras literaturas – em Cesário Verde, em T. S. Eliot. Baudelaire foi musicado por compositores clássicos, não só na sua época, mas ao longo do século XX, e mesmo por autores de música popular como o francês Leo Ferré. São muitos os campos da literatura que para serem pensados exigem a lembrança de Baudelaire. “As flores do mal” chega ao século XXI como obra permanentemente objeto de estudos críticos, permanentemente objeto de novas traduções, o que já diz muito.
Na sua compreensão, porque “As flores do mal” se inscreve como um fundamental título da modernidade?
Em primeiro lugar, por conta da importância que ganham em sua poesia elementos até então considerados não poéticos. O mais evidente deles é a vida do homem comum nas grandes cidades, tal como aparece naquele determinado momento histórico. E isso sem deixar de lado nem a elaboração poética proveniente da grande tradição da literatura francesa, nem a reflexão sobre temas mais abstratos ou mais amplos. Ao mesmo tempo, sua obra incorpora novas formulações, novo vocabulário.
É muito difícil avaliar não só esse caso específico, como outras possíveis aproximações, porque nem isso se dá com clareza, ou de modo isolado. O fato é que fui lendo aos poucos, desde bem cedo, a obra de Baudelaire – devo ter começado pelas traduções de Guilherme de Almeida, “As flores das flores do mal”, ou pela de Aurélio Buarque de Holanda dos “Pequenos poemas em prosa”. Sempre voltei a essa obra, ampliando as leituras dela e da crítica sobre ela – com certeza tem parcela importantíssima na minha maneira de ver a poesia.
Acredita que, de alguma forma, os poemas inicialmente censurados de “As flores do mal” causem estranheza ou suscitem ideias censoras nos dias de hoje?
Em princípio isso me pareceria absurdo. Isso seria coisa de mais de um século atrás. Mas se a gente lembrar que na mesma época tentaram censurar o “Madame Bovary”, de Flaubert, tempos depois o “Ulisses”, de James Joyce, não me surpreenderia que esses poemas causem estranheza, sobretudo nestes tempos lamentáveis que vivemos.
Quais foram suas preocupações ao iniciar o trabalho de tradução? O que norteou sua tarefa?
A primeira grande preocupação foi evidentemente com o fato de se tratar de uma das grandes obras da história literária de todos os tempos. É um tanto assustador. Mas o trabalho foi sendo feito aos poucos. Inicialmente, pensamos – eu e a editora – em organizar uma seleção de textos, só em seguida é que o projeto se tornou a tradução de todo o livro “As flores do mal”. Havia também a preocupação com o fato de já haver outras traduções tanto em Portugal quanto no Brasil, mas são traduções de épocas distintas, com características bem distintas. E no caso de uma obra desse porte, sempre será possível uma nova leitura, uma nova intepretação, uma nova tradução, que enfim vem a ser isso, leitura e interpretação.
Quais foram os principais desafios da tradução de “As flores do mal”? Havia muitas marcações do francês de difícil transposição para o português?
O desafio é o de tentar apreender textos, os poemas, que são conjuntos complexos – o que se tem de traduzir são imagens, figuras, métrica, rimas; a intenção deve ser a de recompor esse emaranhado na outra língua. Há momentos especialmente difíceis – imagens de difícil compreensão, vocábulos passíveis de interpretações até conflituosas. Na edição, incluí algumas notas que tentam esclarecer os casos mais problemáticos.
Como você lê esse “leitor hipócrita” a que se refere Baudelaire?
Esse leitor hipócrita é uma construção que dá panos para manga, como diriam nossas avós – me pergunto antes de tudo sobre o quanto haveria de projeção do próprio Baudelaire nessa figura.
Qual nova leitura surgiu para você durante seu processo de tradução?
Para mim, na condição de tradutor que passou alguns anos esmiuçando de todas as formas esses textos, ficou sobretudo um conhecimento pelo menos um pouco ampliado da escrita baudelairiana. Isso é o que para mim foi mais enriquecedor. Mas devo também mencionar que não se faz um trabalho desses sozinho – é preciso contar com trabalhos de muitos críticos e intérpretes do autor, o que me levou também a um processo de leitura regular de uma parte da crítica baudelairiana.
LANÇAMENTO
“As flores do mal”, de Charles Baudelaire, com nova tradução, de Júlio Castañon Guimarães, nesta sexta (22), às 19h, na Aliança Francesa de Juiz de Fora (Rua Santo Antônio 595 – Centro)