
Fernanda Abreu é como o Rio de Janeiro: uma metamorfose, mas, ao mesmo tempo, carrega um tanto de história. É uma artista de artistas misturadas e mutantes. Prova disso é seu último lançamento, o álbum “30 anos de baile”, em comemoração aos seus 30 anos de carreira solo e, também, aos 60 de vida. Fernanda e DJ Memê, seu fiel companheiro desde o “SLA Radical Dance Disco Club” (primeiro trabalho solo), convidaram 15 DJs e produtores musicais para remixarem as músicas que fizeram sucesso desde sua saída da banda Blitz, no final dos anos 1980. Eles mesclaram artistas dessa geração e outros já clássicos, assim como gêneros e ritmos. Ouve-se do eletrônico ao funk carioca, do trap ao reggaeton: uma mistura que, como ela mesma declara, pretende ser o retorno das pistas de baile. Por isso, inclusive, ela escolheu lançar neste momento, com o avanço da vacinação e a reabertura, ainda que gradual e lenta, dos espaços culturais, principalmente das boates. O álbum, que tem 13 faixas, ainda ganhou um desdobramento, com oito versões estendidas, o “30 anos de baile – Extended versions”, ou seja, com maior duração para, realmente, ocupar a playlist dos DJs. “Nossa ideia era fomentar o desejo de dançar, mesmo em casa, de fazer mover o corpo”, declara a carioca em entrevista coletiva virtual.
Fernanda conta que cada convidado ficou à vontade para escolher qual música queria remixar. Ela acreditava que, dessa forma, os artistas se sentiriam mais à vontade para recriar clássicos, do jeito que imaginavam, e, com isso, fazer com que a música “mudasse de dono”. A curadoria começou em um jantar em 2019, rabiscada em um guardanapo – ainda guardado – do restaurante, em que ela e Memê anotaram os nomes que tinham que participar, por causa da história que ajudaram a construir junto deles.
Dentre eles, estavam Corello DJ, que ficou com “Saber chegar”, junto de Douglas Marques, Zé Pedro (responsável pelo primeiro single da história de Fernanda, “A noite”, que também leva a assinatura de Memê) e Marlboro – que, na verdade, não pôde participar do disco e é um de seus principais parceiros, principalmente no funk. Fernanda Abreu sempre foi próxima dos DJs. Esses 30 anos consolidaram um movimento pop-dançante tipicamente brasileiro, carioca e urbano, e a presença deles foi indispensável.
Posteriormente, a dupla pesquisou novos nomes para diversificar. Nesse sentido, convocou Vintage Culture, para “Bidolibido”; Gui Boratto, com a clássica “Jorge da Capadócia”; Bruno Be, em “Kátia Flávia, a Godiva do Irajá”; Tropkillaz, com o funk “Veneno da lata”; e Fancy Inc, pela otimista “Torcer pela pista”, além de Projota e Emicida, que participam de “Você pra mim”, remixada por Dennis DJ, e “Outro sim”, com remix de Ruxell, respectivamente. “Hoje a pista tem muitas sonoridades, e foi isso que eu quis colocar no disco”, diz.
‘Todo mundo ama o Rio’ (e a Fernanda)
No final da seleção, sobrou o tratado carioca “Rio 40 graus”. Fernanda Abreu conta que ninguém queria essa por ser quase um hino e, por isso, uma missão de muita responsabilidade. Memê encontrou a solução fora do Brasil. Apresentou a ela o DJ Ani Phearce. Ele transformou o hit dos anos 90 em um reggaeton moderno. Se antes a música resgatava “Aquele abraço”, de Gilberto Gil, agora começa declarando: “Everybody loves Rio” (“Todo mundo ama o Rio”). Em um vídeo divulgado pela produção, o DJ ainda completa: “and everybody loves Fernanda” (“e todo mundo ama a Fernanda”). A cantora afirma que ter um artista de fora intervindo na música foi bom porque, como ele não conhecia, conseguiu inserir legitimidade e, por isso, dar “uma cara nova”. Ainda assim, ela continua simultaneamente exaltando e criticando a realidade do Rio de Janeiro – nesse tempo, pouca coisa mudou.
Convidar músicos para parcerias em discos é constante no trabalho de Fernanda Abreu. “Na minha história, sempre trabalhei com muita gente. Eu gosto de fazer música trazendo pessoas. Quando vejo alguém com talento, já fico querendo convidar. É muito orgânico”, comenta ela, e completa: “Não existe movimento artístico sem artistas”. Sua carreira foi baseada nessa frase. Assim como queria, ela, realmente, inaugurou um movimento: foi a precursora da moderna música pop dançante, de baile, brasileira, indo na contramão do rock em alta na época. Orgulhosamente, ela assume a sua importância para o sucesso de hoje de nomes como Anitta, Iza, Alice Caymmi, entre outras, dentro do pop que já alcança outros países, e, como Abreu pontua, tem sido dominado pelas mulheres. “Quando comecei, sabia que queria fazer música dançante, e foi um caminho longo.” Para ela o motivo do sucesso foi ter “verdade” e, por isso, “consegui criar uma assinatura”, completa.
Música-crônica
A inspiração da garota sangue bom continua sendo o Rio, para o qual tem os olhos atentos e nada alienados, com atenção, desde aquela época, para os submundos que circulam a Cidade Maravilhosa. Em suas letras, ela diz que transpõe esse olhar. “Minhas músicas são como crônicas: eu olho para a cidade com o olhar carioca, e, também, fazendo uma ponte entre o morro e o asfalto”. É por isso que ela acompanha as transformações do Rio, que, assim como ela, é musical: uma conexão natural. A marca registrada vai além do sotaque. Ao mesmo tempo, é possível escutar muitas de suas músicas, até hoje, tocando em rádios de outros estados – e até ao redor do mundo. A explicação para isso Memê deu no início da coletiva: “A música dela é universal e eterna, porque é viva, e quanto mais viva, mais repercute”.
Nesse movimento inesgotável de vitalidade e intensidade, sabendo da importância do ouvido atento aos novos músicos, Fernanda Abreu conta que já está preparando seu próximo trabalho, com a mesma ideia do recém-lançado, mas, dessa vez, apenas com mulheres. “O ambiente musical, como um todo, é muito masculino. O meu papel, o papel das mulheres, é trazer outras mulheres para a área.” O “30 anos de baile por elas” (nome provisório) terá a direção artística assinada por Claudia Assef que, por enquanto, tem apresentado as possíveis convidadas.
Seja para o Rio ou para a forma como analisa a vida, Fernanda Abreu é otimista. Ela lança o álbum com visões positivas, como uma luz no final do túnel. “Torcer pela pista” foi sucesso em 2004. Agora, já com um ano e meio de pandemia, tem um novo significado: mais que nunca “eu vou torcer pela pista cheia”. Como um déjà vu, “Tambor”, que no disco foi mixada por Danny Dee 808ies, também cumpre esse papel: “quando toca o tambor, acende a esperança”. Apesar do otimismo, ela acredita realmente ser difícil ter essa visão hoje em dia, “essa parte lúdica, criativa, misteriosa… O lance é ainda ter um sonho a ser realizado”. Por fim, ela pede: “cuidem-se, e dancem!”.