As restrições sanitárias impostas pela pandemia de Covid-19 levaram os organizadores a adaptarem o Rainbow Fest e o Miss Brasil Gay ao ambiente virtual após o hiato em 2020. O título de “edição especial” denuncia as circunstâncias extraordinárias que permeiam a organização dos eventos LGBTQIA+ neste ano. Forjados em esquinas, encontros e arrebatamentos, o Rainbow Fest e o Miss Brasil Gay enfrentaram as distâncias para viabilizar uma programação fiel à essência dos eventos. Mas, sobretudo, para dar sobrevida à mobilização em busca de reafirmar a identidade e a cultura LGBTQIA+. A programação do Especial Miss Brasil Gay Rainbow Fest será encerrada, neste domingo (22), a partir das 18h, com a Parada Gay Virtual.
O diretor do Movimento Gay de Minas (MGM) Oswaldo Braga conta que o Rainbow Fest, por exemplo, sempre foi marcado por reencontros. “Era muito gostoso o contato ali na Praça (Antônio Carlos), quando nos encontrávamos e falávamos ‘ô, fulano, quanto tempo!’”, relembra. “Gente que morou em Juiz de Fora vinha (depois de um tempo) para a cidade por causa do evento, gente que nunca tinha vindo a Juiz de Fora também vinha, e esse encontro se tornava uma coisa muito saudável, bacana, gostosa.” Reencontros que, em certa medida, o ambiente virtual manteve, acrescenta Oswaldo. “A Parada Gay de São Paulo teve um aspecto virtual muito bacana. A Parada Gay de Belo Horizonte, da mesma forma. O Rainbow Fest vem com o seu poder de trazer os grandes nomes do movimento LGBTQIA+, trazer novas ideias e buscar soluções para que a gente não perca a mobilização que viemos conquistando há tantos anos.”
Dos fundadores do Rainbow Fest, Oswaldo crê que o caráter on-line extraordinário rouba do evento, na verdade, visibilidade. “O que estamos perdendo é o apoio do contato. É o refúgio para ter a quem recorrer na hora em que a homofobia surge. Os canais virtuais estão disponíveis, mas a defesa presencial faz uma diferença muito grande. Não apenas no sentido de construção de identidade. Também, claro.” Mas em termos de construção de identidade, complementa, “a gente é o que é e a gente luta para que cada um seja aquilo que é verdadeiramente”. “Com ou sem pandemia, com ou sem a presença, essas pessoas não vão deixar de ser quem são.”
O possível
O coordenador do Miss Brasil Gay, Michel Brucce, acredita que, após o esforço em busca de manter o isolamento social, o reencontro será uma grande festa. “Uma grande explosão de saudade, de comemoração, de respeito e comemoração à vida”, afirma. O diretor artístico do Miss Brasil Gay, André Pavam, faz coro. “É muito triste não podermos nos encontrar, nos abraçar. Não podermos trocar ideia, energia. Mas é um momento em que temos que aprender, de alguma forma, a manter estes sentimentos de outra forma.” As transmissões virtuais não são o ideal, pondera Pavam, mas é o possível para que o reencontro aconteça em 2022. “De qualquer forma, as pessoas vão se reunir em suas casas e em pequenos núcleos. O fervo é impossível. A importância é manter esses sentimentos acesos.”
Inevitavelmente os artistas sentem falta do calor humano, afirma o apresentador e diretor artístico do Rainbow Fest, Tiago Capuzzo. “A gente gosta de ter a plateia, os aplausos. A maior dificuldade nem foi roteirizar, fazer a direção artística. Acho que foi de cada atração que está no palco, porque estamos fazendo apenas para as câmeras e para pouquíssimas pessoas atrás delas.” Mas a Parada Gay Virtual, por exemplo, será uma forma de manter os encontros característicos do evento. O público poderá entrar em uma sala virtual e, consequentemente, aparecer em um telão de LED a partir de um QR Code. “Foi o jeito que a gente encontrou para incluir as pessoas que querem estar conosco. De não deixar passar em branco. Não deixar passar mais um ano devido à pandemia é algo muito bacana.”
‘Tudo é emoção, tudo é saudade’
A mesma pandemia que roubou do Rainbow Fest e do Miss Brasil Gay os encontros, também tirou a vida de uma das lideranças das atividades do movimento LGBTQIA+, Marco Trajano. Trajano morreu, há cerca de um mês, aos 57 anos, vítima de complicações da Covid-19. Inclusive, o Especial Miss Brasil Gay Rainbow Fest foi realizado em sua memória. Ele recebeu, por exemplo, uma série de homenagens através de depoimentos durante a programação entre a última sexta-feira e o sábado (21). Além de ser um dos fundadores do MGM, Trajano foi um dos idealizadores, ao lado de Oswaldo, do Rainbow Fest.
Quando os amigos se reencontraram para o evento, conta Oswaldo, inevitavelmente se lembraram das histórias com Trajano nas edições anteriores, o que torna a edição especial ainda mais emotiva. “Não temos muitas alternativas neste sentido, porque a dor ainda está doendo. Ainda está muito recente, então tudo é emoção, tudo é saudade”, se emociona. Cada um tem uma história com Trajano independentemente do Rainbow Fest, pontua Oswaldo, mas muitos têm lembranças com ambos por causa do próprio evento. “O Rainbow Fest significou para muitos jovens da cidade a saída do armário, o encontro de apoio, o momento de ver que ele não está sozinho no mundo, que tem muita gente igual a ele. Muita gente hoje nos revela: ‘puxa, foi no Rainbow Fest de 2005 que saí do armário’, ‘o meu primeiro namorado foi no Rainbow Fest de 2003’ etc.”
À frente do MGM, Trajano foi um dos mentores intelectuais da Lei Rosa – 9791/2000. O dispositivo instituiu a punição “a toda e qualquer manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra qualquer cidadão homossexual, bissexual ou transgênero”. “A gente fala que Trajano e Oswaldo foram pioneiros em uma legislação voltada à comunidade LGBT nacional”, afirma Brucce. “A importância de Trajano não é apenas para Juiz de Fora, mas para o Brasil. Todas as possibilidades de luta que a comunidade LGBT conquistou na forma de lei vieram através da Lei Rosa.” Trajano dedicou a própria vida à mudança da sociedade, segundo Brucce. “Fico impressionado com quantas vidas apenas uma vida pode salvar. O Marco Trajano foi uma pessoa que conseguiu mudar muitas vidas. Ele deu a possibilidade de muitas pessoas serem felizes da maneira como são. Sem medo, sem receio, sem a dor.”
Embora não esteja presente em vida, o esboço da programação do Rainbow Fest ao menos foi feito por Trajano, admite Oswaldo. “Já tínhamos amarrado a programação quando ele começou a ter problemas e acabou falecendo. Quer dizer, tem a marca registrada do Trajano. Não tem a presença física, mas as ideias, as opções de convidados, os temas etc. foram aproveitados.” A opção por selecionar performances históricas de artistas no Rainbow Fest para a Parada Gay deste domingo, por exemplo, foi de Trajano, acrescenta Tiago. “Foi o Trajano que me convidou para ser rei/rainha do Orgulho Gay de Juiz de Fora. Não fosse ele, nada disso teria acontecido. Ele fez acontecer para a minha carreira, para a minha trajetória, o que, com certeza, vai abrir muitas portas para a minha arte.”
R$ 10 milhões nos próximos anos
Ceifado dos encontros, o Especial Miss Brasil Gay Rainbow Fest não trouxe milhares de turistas para Juiz de Fora como nas edições anteriores. No entanto, as perspectivas para as edições a partir de 2022 são positivas. A aproximação das marcas é mais um passo de um planejamento estratégico de médio a longo prazo traçado pelos organizadores. Conforme Brucce, a estimativa é investir, nos próximos anos, na economia local, R$ 10 milhões. Em 2018, por exemplo, foram injetados R$ 4 milhões. O plano vai desde o rejuvenescimento do Miss Brasil Gay até uma parceria mais estreita com a Semana Rainbow da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – a quinta edição da Semana Rainbow começou nesse sábado (21), aliás.
O coordenador do Miss Brasil Gay explica que a intenção é fortalecer o Rainbow Fest e o Miss Brasil Gay como um instrumento de militância da comunidade LGBTQIA+, mas, ao mesmo tempo, como um produto turístico de Juiz de Fora. “Como a gente faz com que o turista venha para Juiz de Fora, fique na nossa cidade e faça todos os investimentos necessários para a economia girar? É um evento que já circulou em Juiz de Fora cifras milionárias em apenas três dias. Juiz de Fora é uma cidade muito acolhedora. E esse é um dinheiro que circula muito rápido, porque entra na padaria, entra no hotel, entra na base da economia e ajuda a movimentá-la, ainda mais neste momento que estamos vivendo, no qual precisamos do dinheiro circulando na cidade.”
Madrinha Xuxa
A parceria entre Rainbow Fest e Miss Brasil Gay acontece há alguns anos, pontua Oswaldo. “Quando era presencial, não ficava tão evidente, mas, agora, no especial virtual, fica mais clara. As marcas estão lado a lado. Já estiveram em 2019. Por que acontece isso? O Miss Brasil Gay e o Rainbow Fest sempre tiveram uma parceria muito gostosa, muito respeitosa, muito colaborativa.” O estreitamento das relações, complementa, se deu a partir da gestão de Michel Brucce. “Brucce faz parte da diretoria do MGM também.” O anúncio de Xuxa neste sábado como a madrinha do Miss Brasil Gay, bem como a apresentação já confirmada da rapper e drag queen Gloria Groove no próximo ano são indícios dos planos dos organizadores.