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‘Todos juntos reunidos em uma pessoa só’

Arnaldo Baptista 11
“Ele está no auge, essa é a grande real, e as pessoas têm que saber disso. Esse é meu papel no mundo, agora pelo menos”, diz Rodolfo Krieger, que dirigiu o show-homenagem, convidando Lulina, China, Karina Buhr e Hélio Flanders para dividirem as interpretações (Foto: Adriana Aranha/Divulgação)
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São Paulo – “Tome cuidado com os seus desejos, porque se a gente mentaliza uma coisa, ela acaba acontecendo”, disse Rodolfo Krieger na tarde do último domingo, 20, poucas horas antes do show em homenagem a Arnaldo Baptista, que aconteceu na Caixa Cultural em São Paulo. “Todos juntos reunidos em uma pessoa só” tornou-se o mantra daquele momento. A banda formada por Krieger (guitarra e vocal), Pedro Leo (bateria), Eduardo Barreto (baixo) e Charly Coombes (teclado) já tinha tocado no Templo Valvulado para o homenageado na última semana, quando Karina Buhr (ou Bem Hur, como Arnaldo a chama) foi ensaiar suas músicas escolhidas para o concerto. “Eu nem sabia que ele ia ao ensaio. Aí, primeiro, eu chego naquele estúdio absurdo, tudo analógico. Eu já estava nervosa para cantar, na hora de começar, entra Arnaldo pela porta, foi o teste do coração. Mas foi incrível poder apresentar as duas músicas com ele sentadinho olhando para a gente”, contou Karina, que logo subiria ao palco com uma plateia inteira cantando “Parabéns pra você”, inclusive com Arnaldo Baptista batendo palmas, gritando e celebrando junto a todos.

Charly quando ainda estava na Inglaterra, anos atrás, conheceu Os Mutantes. Homenageou Arnaldo Baptista justamente nas teclas, que é seu principal instrumento e o que sobressai em suas composições, ainda mais em se tratando de um repertório muito bem explorado no álbum “Singin’ alone” (1982). “Minha esposa é brasileira, e a gente descobriu coisas juntos, eu mostrei bandas britânicas para ela, e ela me mostrou coisas do Brasil, mas Mutantes foi uma banda com muito impacto para mim por conta desse movimento Tropicália da década de 1960. Eu amo Beatles, Stones, músicas dos anos 1960 na Inglaterra e Estados Unidos, então foi um prazer descobrir esse mundo de cultura brasileira, em que a música é muito forte, e Arnaldo é um homem bem importante neste universo”, diz Charly. Foi como se ele tivesse redescoberto Arnaldo Baptista e sua maneira de compor a partir do teclado. “A música ‘Cowboy’ eu estava aprendendo e mandei uma mensagem para Rodolfo dizendo: ‘Nossa! O que é essa música? É [Frank] Zappa no ácido. Uma coisa bem louca, mas muito especial’. Ainda não sei como ele gravou isso em estúdio, é um outro nível, uma coisa de gênio.”

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“Desculpe o despeito baby, mas o peso se deve à gravidade, e você é bem pesada demais!” – Kriger no vocal canta “Cowboy” com sua SG Gibson de madeira, Pedro Leo em uma bateria muito forte e precisa como a do Patrulha do Espaço, Eduardo Barreto conseguiu na véspera um baixo SG Les Paul e trocou de instrumento para deixar o palco Gibson perfeito para Arnaldo. “Estávamos preocupados tentando loucamente um baixo Gibson e não conseguimos até o dia do ensaio. Mas fizemos questão de encontrar, hoje é um dia especial, e tem que ser tudo lindo”, diz Eduardo. Eu conseguia sentir a adrenalina daqueles primeiros segundos de entrega absurda dos músicos para o show.

Arnaldo e sua “menina” Lucinha estavam sentados na primeira fileira, assim como eu, e pude espiar as reações. De pernas cruzadas, ele atravessava o palco com os olhinhos buscando escanear o modo de cada um tocar suas músicas (algumas, pela primeira vez revisitadas por uma banda). Vez ou outra, ele apontava para um dos músicos e fazia alguma observação no ouvido de Lucinha. “Eu não consigo me lembrar o que ele falava precisamente, mas devia ser algum detalhe sobre as músicas e a maneira deles tocarem”, disse ela após o show, muito feliz no camarim, contando que Arnaldo ficou bastante emocionado. Ela comenta que, em geral, ninguém lembra da música dele, todo mundo só quer falar do tempo dos Mutantes, mas não exploram os discos de Arnaldo em carreira solo, mostrando a importância singular deste projeto existir. Até brincou com um dos músicos que “Sanguinho novo” foi a que faltou por ter total coerência com esse show.

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Ela não sabe se está sonhando ou não

Lulina foi a primeira convidada a subir ao palco. “Vou chamar minha nova amiga”, diz Krieger que dirigiu o concerto e convidou tanto os instrumentistas que já contribuem em seu projeto solo, quanto as quatro vozes para escolherem duas músicas para interpretarem. A cantora e compositora de Recife, radicada em São Paulo, subiu ao palco e disse: “Boa noite”. Arnaldo respondeu com entusiasmo: “Boa noite!”. Ela, surpreendida, prontamente disse: “Boa noite, Arnaldo!”. “Pode isso?”, brinca Krieger. A canção “Hoje de manhã eu acordei”, do disco “Singin’ alone”, foi tocada com notável intensidade. Lulina cantava virada em direção à Arnaldo, transmitindo um sentimento de gratidão, com voz doce, e sorrindo. Charly deslizava os dedos sobre as teclas, e Krieger, ao final, virou sua guitarra para a caixa e tocou até arrebentar a corda de um show ainda na segunda música. Emendaram em “Tacape” com Lulina dizendo que esta é para ela uma das músicas mais lindas que existem no mundo. “A melodia é incrível, a letra remete a uma coisa lúdica e onírica, mas não você não sabe se está sonhando ou não”.

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No show “Sarau o Benedito?”, apresentado por Arnaldo na noite anterior, Lulina estava na plateia e pode ouvi-la na voz do próprio compositor. “Eu achei lindas as interpretações dele das próprias músicas, mudando alguns tons, e também os covers que ele fez, como ‘Rocket man’, do Elton John.” Lulina terminou sua participação agradecendo: “Obrigada Arnaldo por ter vindo a esse planeta nos presentear com músicas como essa”.

Se Rogério Duprat fala que toda a música brasileira pós 1967 foi influenciada pelas composições de Arnaldo Baptista, ali naquele palco, de uma forma ou de outra, ele é uma das razões para todos terem se tornado músicos hoje. “Eu ouvia bastante Mutantes na época da faculdade, e eles foram uma das minhas influências, junto com Velvet Underground, que me incentivou a ter banda”, diz Lulina. “O Arnaldo é culpado por eu existir na vida que eu levo hoje, ter escolhido a profissão de músico, junto com John Lennon e Bob Dylan”, revela Krieger. “A minha origem musical vem do rock principalmente feito pelos Mutantes, foi o que eu mais ouvi, tinha coleção de vinis em casa, a partir dos Mutantes conheci o Arnaldo solo, suas letras e músicas têm uma atmosfera mágica”, disse Eduardo.

Louvado seja Deus Arnaldo

Arnaldo Baptista levantou para aplaudir de pé aquela noite em celebração à sua música. (Foto: Adriana Aranha/Divulgação)

No camarim, ao final do show, China, cantor e compositor pernambucano, além de VJ, despediu-se de Arnaldo: “Obrigada por ter feito as músicas que eu cresci ouvindo”. Sua interpretação no show foi um momento de ápice, não perdeu a oportunidade da vida de poder dividir o microfone com Arnaldo Baptista. Enquanto cantava “Corta Jaca”, do disco “Elo perdido” (1988), viu que a cadeira ao lado de Arnaldo estava vaga, desceu e não hesitou em se juntar a ele para cantarem juntos: “Como será que vai ficar? Cortar jaca na cidade não é mole não”. China dançou e fez uma performance que nos prendia o olhar. A primeira que cantou foi “Ciborg”, de 1982. Arnaldo ia acompanhando o tempo da música batendo os pés, e quando China passou a mão no cabelo cantando a segunda estrofe (“E sinto seu cabelo que me voa contra a mão”), Arnaldo espelhou o movimento fazendo o mesmo. Antes de descer do palco, China leu a frase que acabava de cantar: “Numa cápsula que deflagra todo o medo de explodir. Na espiral da elipse curta do abismo material”, evidenciando o nível da poesia espacial e surrealista de Arnaldo  Baptista.

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“É um cara que me inspirou a vida inteira, é um dos pilares da música brasileira, responsável por trazer toda essa psicodelia que não se tinha no Brasil antes dos Mutantes, e depois deles isso foi incorporado à Tropicália, ao Manguebeat, de certa forma ao Nirvana, porque Kurt Cobain pirava no Arnaldo. Hoje, poder chegar aqui e cantar com o cara olhando para mim significa eu dar uma zerada no jogo da vida”, falou China na euforia do camarim pós show. Trocaram autógrafos uns com os outros em um cartaz que ilustrava o bumbo da bateria roxa de Pedro Leo: “Louvado seja Deus”, e uma foto de Arnaldo com as mãos fechadas como se fosse rezar, ou como se dissesse “Amém”. Este é o nome do single de Rodolfo Krieger feito a partir do sample da música “LSD” de Arnaldo Baptista, que aparece no videoclipe lançado em abril, primeiro single de seu EP que será lançado no segundo semestre. Ao final do show, Krieger profere a frase remetendo ao mestre dos roqueiros brasileiros (e de todo o mundo) que estava ao nosso lado, e canta “Sexy sua”, do “Elo Perdido”, fazendo trejeitos como os de Arnaldo no palco. “Eu sou o Rodolfo Krieger Baptista”, assim se apresentou no início de todo o ritual.

Karina Buhr, terceira vocalista de Recife da noite, trouxe um sotaque bem marcado para as músicas “Trem” e “Raio de Sol”. Arnaldo comentou sobre sua roupa, achou bonito o vestido de veludo verde que a cantora aniversariante usava. Fez um show bastante teatral, indo ao chão para esperar o trem e pegando uma flor do cenário para seu microfone. “Foi muito massa a história de pode selecionar as músicas. Ele não queria fazer somente hit de Arnaldo, mas pegar um lado que um monte de gente não conhece. ‘Trem’, de cara, eu escolhi porque a primeira música que compus com letra também se chama ‘O trem’. Continuei ouvindo o disco e ‘Raio de Sol’ eu já comecei a cantar junto”. Desceu do palco, passou por Arnaldo, e ajoelhou para lhe dar um abraço pessoalmente.

Hélio Flanders (trompete/voz): “E ele não se leva a sério. E isso só os gênios fazem”, disse Hélio Flanders em entrevista à respeito de Arnaldo Baptista (Foto: Adriana Aranha/Divulgação)

A luz se fechou, uma penumbra mostrou apenas a silhueta de Hélio Flanders tocando o trompete. Ao fundo, um amarelo vivo de um sol desenhado por Arnaldo na vídeo-projeção. Os músicos saíram deixando o palco reduzido ao som do piano de Charly Coombes, e Hélio levou Arnaldo a uma profunda emoção: “I fell in love one day to a lady so cold…”. “São canções que revelam uma fragilidade do compositor que eu acho muito bonita. A gente vive tempos um pouco vaidosos, mas Arnaldo vem de uma época em que era mais importante a composição existir em sua totalidade, revelar o que ele era, mais do que se preocupar em sair bonito no retrato”, diz Hélio, contemplando também a gospel “Come back to Earth”, que chegou a tocar as teclas de Coombes com o cotovelo.

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Arnaldo batia palmas vivenciando uma alegria única, gritava, pronunciava as letras acompanhando as músicas e fazia “air drums” impressionado com a agilidade de Pedro Leo. “Depois do show, ele falou comigo: ‘Cada repique que você fez!'”, contou o baterista. “Estou muito feliz, zerei a vida em poder fazer uma homenagem para ele vivo aqui na frente. E ele está lúcido e bem pra caramba! Quando conheci a carreira solo do Arnaldo, foi um choque e uma autodescoberta.”

Para a música final, Krieger impressionou na forma de cantar e tocar guitarra em “Sunshine”, do “Elo Perdido”. Estava com receio até mesmo de errar a letra da música que mais ouviu na vida e sentia mais nervosismo do que abrir o show dos Rolling Stones. “Quando a Cachorro Grande foi convidada para assistir ao show no Sesc Belenzinho, em 2015, eu estava no auge do ‘Arnaldo baptismo’. Enlouquecido, almoçando, jantando, tomando café da manhã com os discos e escrevendo minhas músicas. Tinha até mesmo mandado uma carta para ele, escrita à mão, uma semana antes. E agora estamos juntos, eu estou respirando o Arnaldo Baptista”, disse Krieger.

Após acompanhar aos shows do “Sarau o Benedito?”, na última semana, Krieger ficou estarrecido em revê-lo no palco. “Eu acho que ele mergulhou na fonte da juventude, está cantando e tocando melhor. Ele está no auge, essa é a grande real, e as pessoas têm que saber disso. Esse é meu papel no mundo, agora pelo menos”, dizendo que tem desejo em fazer algum projeto com o “Disco voador” (1987). “Talvez em um futuro, em uma galáxia não muito distante”.

Após o show e as conversas de camarim, acompanhei Arnaldo na saída. “Eu fiquei celebrando, achando lindo tudo o que eu fiz. Foi um acontecimento em função disso”, disse Arnaldo. Eu perguntei se talvez este tenha sido um dos dias mais felizes de sua vida, já quase chegando à escada para entrar no carro que veio buscá-lo. “Todos os dias são os melhores dias de minha vida, mas esse foi importante”, concluiu com lucidez e sabedoria, enchendo meu peito e coração de vontade de ser feliz e agradecer a vida por momentos como os que eu acabava de vivenciar.

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