“Ler é emancipatório.” O que afirma Éric Meireles de Andrade defendia o educador Paulo Freire, para quem “a leitura da palavra é sempre precedida da leitura do mundo”. Ler, portanto, é ato político. Quando Éric, um bacharel em história e graduando em administração pública, aos 43 anos, volta todas as suas forças para o movimento literário, abandonando cargos políticos, diz de uma militância que também se faz pelas letras. Há cerca de cinco anos vivendo em Juiz de Fora, onde passou a infância, o mineiro de Caratinga é uma das engrenagens de uma instigante batalha de poetas, o Slam Poético da Ágora, que desde fevereiro ocupa a Escola Municipal de Santa Cândida. “Começamos a fazer com que a força centrípeta, de a periferia vir para o Centro, seja substituída pela força centrífuga, de levar o centro da cidade para a periferia. O maior absurdo é a gente acreditar que a literatura é só Belmiro Braga, Murilo Mendes, Pedro Nava ou Affonso Romano de Sant’Anna. Esses são fenômenos que nasceram e viveram um processo quando a periferia também escrevia, mas não sabemos quem foram esses autores das margens. Nosso evento quer mostrar que a arte periférica tem que ter mais espaço nas políticas públicas”, comenta o homem de cabelos e barbas grisalhas, frutos dos anos que juntaram certezas e um tanto de utopias. Aonde quer chegar? “Tenho um sonho, que é transformar Juiz de Fora numa cidade leitora. É para onde oriento minha vida. Profissionalmente, é importante para mim, mas também porque quero transformar a minha Pasárgada numa Pasárgada literária.”
Bandeira
Na quinta série, o pequeno Éric leu cem livros. Na série seguinte, com 11 apenas, leu 120 títulos. “Tinha vontade de conhecer e era muito crítico com o que via. Fui ganho pela sensação e dali fui descobrir minha consciência política. Sempre quis colocar a mão na massa, mudar meu presente”, recorda-se. Em 1988, aos 14, passando pelo Calçadão, resolveu parar. “Minha militância começou ali, onde era o Banco do Brasil e tinha um murinho e o lote de terra. Ali era o centro da democracia de Juiz de Fora. Lembro que quando vi que haveria uma manifestação a favor do voto aos 16 anos, em defesa da redução da jornada de trabalho para os jovens e pelo serviço militar opcional, fui e peguei o microfone. Defendi aquelas ideias”, conta ele, que se tornou integrante do Grêmio Estudantil do Estadual (Sebastião Patrus de Sousa, escola no Santa Terezinha) e, no mesmo ano, mudou-se para João Monlevade – “Fui organizar o movimento do passe livre, nos anos 1980”. Dali foi morar em Santa Luzia, para atuar na direção estadual da União da Juventude Socialista (UJS). Aos 15, voltou para Juiz de Fora, onde veio morar com 1 ano, apenas. Na cidade participou das manifestações locais do “Fora Collor” e, então, transferiu-se para São Bernardo do Campo para ser torneiro mecânico. Em 1995, mudou-se para São Paulo, trabalhou na União Estadual dos Estudantes, foi presidente e diretor nacional da UJS e também atuou na Secretaria Municipal de Esportes da prefeitura da maior cidade do país. Em 2004, foi convidado a integrar o Ministério da Cultura, sob a gestão de Gilberto Gil, na área de políticas públicas para jovens. Dois anos depois, Éric transferiu-se para a Secretaria Nacional da Juventude, e quatro anos mais tarde tornou-se chefe de gabinete da Secretaria de Juventude da Prefeitura de Marília. Há cinco anos retornou às raízes. “Vou trabalhar com os jovens durante minha vida inteira, mas não sou mais jovem. Há uma diferença circunstancial, e é preciso respeitá-la e aceitá-la para dar protagonismo à juventude”, diz. “Sou solteiro, me casei cinco vezes, não tenho filhos e tenho um sonho: viver de poesia. Sei que só trabalhar com isso é complicado, mas tenho pensado nas políticas públicas, com outras ações, minhas ou dos outros, também produzindo cultura. A vida financeira é complicada, passo muitas dificuldades, mas é parte do processo de tentar fincar propostas”, completa. “Olhe para o lado. Não tem ninguém lendo. Então, essa cidade é feita por literatos, mas não tem leitores.”
Punho cerrado
Logo que entrou na Escola Estadual Antônio Carlos, no Mariano Procópio, aos 7, Éric descobriu o que era um jogral e começou a declamar poemas. Desde então escreveu. Há 12 anos, preside a Confraria dos Poetas, um grupo nacional que desde 2012 persegue voos mais altos. “Queremos organizar antologias nacionais de poesias, com o objetivo de fazer um diálogo da diversidade estética contemporânea. A poesia contemporânea é variada em idade, região e outras questões. Estudamos em estética que devemos buscar a unidade da beleza, e hoje ela está interligada à diversidade. Temos desde estilos poéticos centenários, como as trovas e os sonetos, como os estilos novos, tais quais o rap e os versos livres. Em nossos 12 anos fizemos quatro antologias. Também queremos dar movimento ao poeta, porque grande parte das vezes quem mexe com criação vive no caos criativo, se doando, sofrendo, por transformar o racional em sensitivo. O movimento modernista tentou dar movimento aos criadores e liberdade às criaturas, e ainda falta muito. Seguimos o princípio do Fernando Brant, de que todo artista tem que ir aonde o povo está. Desenvolvemos o conceito de que temos que ter lado nas lutas sociais. Nosso terceiro objetivo é discutir essa poesia contemporânea”, enumera o escritor, cujo projeto para esse ano é lançar a quinta antologia, com poetas locais. Ao lado do confrário (confrade revolucionário) Antônio Carlos, professor de história da Escola Municipal da Candinha, Éric deu início a um núcleo de intervenções chamado Ágora. Com o Coletivo Vozes da Rua, também do Candinha, o poeta importou um formato de batalha poética iniciado pela atriz e MC Roberta Estrela D’Alva, que criou o Zona Autônoma da Palavra, o primeiro slam do Brasil, hoje já replicado mais de 50 vezes. O slam juiz-forano serve, então, para formatar um critério para a inserção na próxima antologia. “O livro tem tudo a ver com o debate literário da cidade, porque os escritores conhecidos são do Centro, e parece que a produção artística é só central.”
Grito de guerra
Autor de “Fragmentos da poesia marginal” (Editora Libra Três), Éric organizou as quatro antologias da Confraria e um título sobre políticas públicas na área de lazer e recreação, estudando o assunto na cidade de São Paulo com assistidos pelos projetos Bolsa-Trabalho e Começar de Novo. De sua experiência no executivo, ele compreendeu a força revolucionária da cultura. E sua inspiração está nesses artistas que constroem suas revoluções silenciosas, ou ao som dos versos. “Trouxemos o Del Chaves, do Slam Resistência, de São Paulo, para ensinar o processo e as regras das batalhas. Hoje eles juntam 700 pessoas na Praça Roosevelt”, pontua Éric, explicando que cada batalha poética reúne de oito a 20 artistas, que levam até três textos e são avaliados por um júri após declamarem por três minutos, utilizando apenas a voz e o corpo. Dali saem cinco e, em seguida, três finalistas para chegar ao campeão. O Coletivo Vozes da Rua organiza as apresentações de hip-hop que dão o tom do evento, cuja próxima edição ocorre em maio, depois junho, agosto e setembro, com o lançamento do livro. Outra parceira é a academia, com os alunos da Faculdade de Comunicação da UFJF, que contribuem na divulgação e organização do evento. “A academia tem muito a dar para a gente, e nós temos muito a dar para a academia. A batalha é uma comunhão, uma referência, uma troca. Vemos rimas fabulosas, figuras de linguagem maravilhosas. Além disso, é um momento de reflexão sobre a sociedade em que estamos”, comenta. “No ano passado, fizemos um projeto chamado ‘Poesia rima com escola’, para lançar livros nas escolas. Se esses estudantes não vão aos lançamentos, vamos até eles”, conta o poeta, que fez lançamentos em dezenas de escolas públicas da cidade. Verdadeiramente, o que move Éric é a certeza de que sua terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, tem Gonçalves Dias, Murilo Mendes e também Laura Conceição, a voz que venceu a segunda batalha declamando: “Insisto no papo, porque precisa, e é foda pra ‘nóis’ viver na defensiva. Escuta, eu te falo. Porque não me calo. Não pisa no calo.”