Ícone do site Tribuna de Minas

Por que expressões homofóbicas persistem no vocabulário do brasileiro?

homofóbicas
homofóbicas
Alexandre Cadilhe é professor da UFJF e desenvolve pesquisas sobre linguagem de gênero, sexualidade e raça (Foto: Carolina de Paula/UFJF)
PUBLICIDADE

As palavras têm poder, e como têm. O poder de mobilizar multidões, nações, de conquistar, fazer apaixonar, convencer, envaidecer, deixar os outros felizes. Mas as palavras também podem fazer surgir o medo, ofender, magoar, humilhar, incitar a violência, extravasar preconceitos, o ódio, rancores e ressentimentos; enfim, expor o que de pior existe no ser humano.
Apesar de todos os avanços da sociedade, mobilizações de movimentos sociais, políticas públicas, campanhas de conscientização e denúncias, as comunidades e movimentos LGBTQIA+ ainda precisam lidar com a persistência do uso de palavras, frases, termos e expressões homofóbicas, transfóbicas e lesbofóbicas, entre outras. Quem não ouviu, recentemente, coisas como “opção sexual”, “viado”, “não tenho preconceito, mas…”, “bicha”, “sapatão”, “quem é o homem da relação?”, “tenho até amigos e amigas que são”, “traveco” e – talvez o pior de todos – “homossexualismo”, como se a homossexualidade fosse uma doença?
São termos que, ao serem utilizados, ofendem, machucam, diminuem e humilham, e que são o primeiro passo ou aquele que faltava para que a violência verbal se transforme em violência física, que pode ser confirmada através dos números, que apontam o Brasil como o país com o maior número de pessoas LGBTQIA+ assassinadas anualmente em todo o mundo. Segundo dados divulgados pelo relatório “Observatório de mortes e violências contra LGBTI+”, 316 pessoas LGBTI+ foram assassinadas em 2021, contra 237 no ano anterior.

A violência pelo verbo

Como mudar essas estatísticas? O caminho é longo, e passa pela educação, conscientização, denúncia, informação, evolução da sociedade, mudança nos costumes e – tão importante quanto – o fim do uso de palavras, termos, frases e expressões que sejam preconceituosas contra a população LGBTQIA+. É o que acreditam os integrantes de movimentos LGBTQIA+ e acadêmicos com quem a Tribuna conversou durante a semana sobre a persistência do uso em nossa língua de um vocabulário que pode ofender, segregar, humilhar e incitar a violência – e que, como afirmam os entrevistados, não se trata de “mimimi”.
Para o professor das faculdades de Letras e Educação da UFJF Alexandre Cadilhe – que atua em dois cursos de pós-graduação onde desenvolve pesquisas que têm relação com as temáticas de linguagem de gênero, sexualidade e raça -, existe uma crença compartilhada de que a linguagem representa o mundo e que seria um retrato fiel do mundo social. “Se na linguagem tenho uma gramática em que uso palavras no masculino e feminino, isso resulta na crença de que o mundo seria dividido assim, sendo que a linguagem é uma força de ação sobre o mundo. Então, quando utilizamos palavras, expressões e frases estamos agindo no mundo. Quando fazemos algumas escolhas para falar da sexualidade, identidade de gênero, de uma pessoa, às vezes produzimos uma violência com a linguagem”, argumenta.
“Um exemplo disso que podemos citar é a ideia de homossexualismo. Quando reproduzo essa expressão ela é uma interpretação do mundo, então quando acrescento esse sufixo (‘ismo’) a ‘homossexual’, ele é para identificar uma patologia”, prossegue. “Isso quer dizer que cito a homossexualidade como patologia. Acaba por ser uma forma de produzir violência contra uma pessoa. Por isso que tem sido colocado em contestação, pois é uma denúncia (do uso da palavra) como uma forma de violência.”
Uma das questões surgidas com a persistência do uso desses termos homofóbicos é se eles se dão por desconhecimento, falta de informação, preconceito, falta de costume ou birra (preconceito?) da turma que acha que é tudo “mimimi”. Para o professor Cadilhe, depende de cada circunstância. “Todo o tecido social é um entrecruzamento de múltiplas linhas. Temos a linha da história, do fenômeno religioso e tradição, entre outras, e quando esses elementos se entrecruzam causam disputas, sendo que todos têm direito à vida, independente de suas identidades sociais, que não precisam estar ligadas às características mais conhecidas de um binarismo como homem/mulher, heterossexual/ homossexual”, defende. “Quando negamos a existência da outra cultura, aí temos um problema, o que leva o Brasil a ser um dos países que é conhecido por ter uma grande violência contra os homossexuais e outros gêneros que fogem a esse binarismo, e por estarmos num país conhecido por essa violência devemos ligar o sinal vermelho.”

PUBLICIDADE

Uma língua de todes e para todes

Alexandre Cadilhe destaca que geralmente se usa o argumento de “liberdade de expressão” para continuar com comportamentos que resultam na negação da “cultura do outro”, tendo base a cultura e costumes já enraizados, sendo que é preciso – de acordo com ele – refletir o que devemos fazer para manter esse pensamento ético de respeito à diversidade. Nesse ponto, a conversa chega à questão do uso dos gêneros neutros (“todes”, “elu”, “minhe” e “irmane”, entre tantos outros), que entram na esfera de debates da sociedade e vêm sendo incentivado ou combatidos por grupos antagônicos.
“É claro que existe um misto de preconceito e crença de que a língua deve corresponder a uma determinada regra exclusiva, sendo que toda linguagem é fruto de acordos, de convenções sociais, que são atualizadas a cada mudança social”, observa. “Hoje temos filmes e séries com legendas que referenciam essa ideia de identidade de gênero; ou seja, elas já estão no mundo social, não são convenções de um grupo que quer impor uma variação linguística.”
Em sua argumentação, o professor da UFJF utiliza dois pontos: a capacidade de compreensão do ser humano e a própria flexibilidade da língua com o passar dos tempos e mudanças sociais. “Se vejo que o recurso de uma linguagem não-binária não impede a compreensão, isso significa que é uma convenção inteligível. Então quando alguém acusa de ser incompreensível é uma incompreensão sobre a identidade, e não sobre a linguagem. A linguagem é aprendida através do uso, e não por imposição; ninguém aprende a usar a língua decorando dicionário, a gramática, e sim no cotidiano. Penso que essa linguagem não-binária está se intensificando no cotidiano e é um aprendizado coletivo, e não de cima para baixo.”
No caso de Juiz de Fora, ele cita a tentativa de se imputar algum tipo de perseguição a professores que usarem uma linguagem não-binária em salas de aula. “Sendo que, às vezes, quem leva isso são os estudantes que veem isso em novelas, séries. É uma forma saudável, ética, de refletir sobre a linguagem no mundo social, pois o preconceito linguístico mascara um preconceito social.”

PUBLICIDADE

Mudança linguística acompanha a mudança social

Em relação a pelo menos duas ou três décadas atrás, Alexandre acredita que tem acontecido um exercício de aumento de denúncias de termos homofóbicos e lesbofóbicos que seria resultado, principalmente, dos movimentos sociais que fazem a denúncia de termos preconceituosos não somente por terem o preconceito em sua origem, mas também porque produzem uma violência verbal contra outras pessoas.
“Quando denunciamos um termo homofóbico, denunciamos essa violência. Quando diminui o uso dessas expressões, você diminui pelo menos a violência verbal. Tivemos avanços, sobretudo, graças aos movimentos sociais, feministas, LGBTQIA+, que têm trazido ao debate e cumprido, principalmente, esse papel pedagógico de denunciar e ensinar que existem outras formas de usar a linguagem para referenciar uma identidade social.”
Quanto ao tempo que levaria para nossa linguagem se tornar menos preconceituosa, Alexandre Cadilhe diz compartilhar a premissa de que a mudança linguística acontece junto com a mudança social; logo, não é possível especular um prazo, até porque novas formas de preconceito verbal podem surgir. “Nós temos essa mudança linguística intensificada com as mudanças sociais, que estão muito vinculadas às políticas públicas de visibilidade, equidade e justiça social, e não somente para a população LGBTQIA+, mas também a população negra, quilombola, refugiada etc. Temos resultados de pesquisas que apontam retrocessos nas políticas públicas de educação, ciência e direitos humanos, com menos investimentos, e isso implica no tempo que levaremos para ter esses avanços. Acredito que com mais recursos teremos mais avanços na sociedade, e isso também implica na linguagem.”

Desinformação ou insistência homofóbica?

Para Márcia Oliveira, dizer que o uso de palavras e frases homofóbicas é questão de desinformação “é inaceitável” (Foto: Arquivo pessoal)

Vivendo há alguns anos em Belo Horizonte, Márcia Oliveira foi integrante do Movimento Gay de Minas (MGM) quando morava em Juiz de Fora. Foi, inclusive, Rainha da Rainbow Fest em 2007. Até hoje, ela diz que segue a ouvir e a ler palavras e frases homofóbicas no cotidiano. “As pessoas vêm falar com a gente e usam esses termos e frases como uma coisa normal. Acho que isso é uma falha na educação; deveria ser passado desde a escola que não se deve tratar as pessoas de forma diferente e pejorativa, e sim ter respeito ao próximo, pois isso (usar termos homofóbicos) é uma forma de homofobia também.”
Sobre o motivo das pessoas persistirem no uso desses termos e expressões, Márcia acredita que algumas falam de propósito, enquanto outras simplesmente não se importam se é ou não desrespeitoso. “As pessoas podem procurar saber como se expressar da forma correta. Na minha visão, isso já começa da base da sociedade: a criança, por exemplo, não nasce homofóbica, ela se torna homofóbica. Quando a gente vê pessoas falando essas atrocidades, são crianças que não foram ensinadas a respeitar os outros. Acho que o problema ainda é de base, de educação”, diz.
“É uma coisa que me traz tanta indignação, pois temos acesso a tanta informação”, continua. “Dizer que comete esse erro por desinformação é inaceitável, mas infelizmente estamos retrocedendo muito. Hoje mesmo a gente vê nos veículos de comunicação a quantidade de ataques, de palavras de ódio (contra a população LGBTQIA+), com termos usados errados de propósito para ofender, te tirar do sério de alguma forma. Pode acontecer de a pessoa não ser tão bem informada, e nesse caso eu tento orientar a pessoa sobre os termos corretos.”
Em relação a tempos idos, Márcia Oliveira acredita que houve melhora quanto ao uso desses termos, porém o preconceito ainda segue muito evidente. “Estamos na contramão quando o assunto é respeito ao próximo, que ser diferente não é errado, pois com esse Governo (federal) tivemos um retrocesso. Vejo isso com pessoas que conhecia há anos. Recentemente descobri que uma pessoa que conhecia há pelo menos 20 anos, que nunca tinha dado indícios, era homofóbica, e me surpreendeu que essa pessoa tinha esse ódio guardado. E hoje se sente respaldada.”

PUBLICIDADE

O poder da palavra

Fernando Valério, integrante do MGM, é pedagogo e vê a persistência dos termos homofóbicos como reflexo da sociedade (Foto: Arquivo pessoal)

Integrante do MGM, Fernando Valério trabalhou como produtor artístico da Rainbow Fest e aponta que a persistência do uso de palavras e frases homofóbicas é sintomático de um país que mata homossexuais, travestis e pessoas trans, entre outras do espectro LGBTQIA+. “A transfobia, a lesbofobia e homofobia são justificadas pela língua, pois a linguagem tem lugar de poder. Vemos frases e palavras como ‘homossexualismo’, ‘boiola’, ‘viadinho’, ‘bichinha’ sendo usadas para justificar esse poder sobre os corpos, as corpas, apesar de todas as tentativas de educação e conscientização. A linguagem caminha para um exercício de poder tão grande que justificam essas violências, principalmente quando falamos de um país em que historicamente a linguagem tem exercido poder de domínio, pois o português não é nossa língua original, ele se impôs sobre as línguas das populações originais.”
Sobre o uso dessas expressões em pleno 2022, ele é taxativo. “É LGBTQIA+ fobia, não existe outra justificativa. Inclusive vivemos um período em que as causas das minorias têm sido consideradas como ‘mimimi’, o próprio abusador e preconceituoso utiliza a história do ‘mimimi’ para justificar seu preconceito”, afirma. “É muito importante que a gente entenda que o ‘mimimi’ não é feito por quem sente a dor, precisamos entender que a linguagem tem poder e pode acabar com a empatia em relação ao outro.”
Fernando pontua que vivemos numa era tecnológica, em que a informação – mesmo não sendo sinônimo de formação – está acessível a quase todos. Apesar disso, busca a orientação e o ensino quando confrontado com o uso de palavras e frases homofóbicas. “Como sou pedagogo, tenho o exercício da didática diária. Por mais que acredite que ninguém seja desinformado quando ouço essas frases, falas, piadas, tento ensinar a respeito. Sei que existe esse passado comum, essa linguagem que é carregada de coisas que se sobrepõem e permanecem, mas hoje temos esse pensamento contemporâneo moderno. Então tento ir pelo caminho da didática em situações informais com pessoas com quem posso ter essa abertura. Em outros casos, é preciso buscar os meios legais e jurídicos.”
Questionado se a situação melhorou em relação a décadas passadas, Fernando Valério acredita que temos vivido tempos sombrios. “Antigamente tínhamos o desconhecimento, mas as questões foram sendo levantadas, hoje elas estão de pé, e mesmo assim vemos a predominância de fazer a piada com a dor dos outros. Fazer piada com o que causa a morte do outro é macabro, maquiavélico, é uma psicopatia você ainda conseguir fazer rir com piada a respeito da dor do outro”, critica. “Existem avanços, movimentos, questões colocadas em pauta, mas ainda temos um contra-avanço. Temos que passar por muitos lugares, incluindo a educação, para largamos esse passado preconceituoso.”

Sair da versão mobile