
Quase fim de uma ditadura. A juventude brasileira querendo fazer uma nova era, instaurar um outro momento. O underground, até então escondido, mostrava suas asas nas casas de show e fazia público. O rock ganhava uma cara cada vez mais brasileira, cheio de misturas. No meio das vestes pretas e da rebeldia, no começo dos anos 1980, uma turma tipicamente carioca trocava a areia de Ipanema pelos palcos do Rio de Janeiro. E anunciava: “Vocês ouvirão um som que abalará toda uma geração”. E abalou. Mais de 40 anos depois, a Blitz continua sendo sinônimo de uma revolução musical e, sobretudo, comportamental. Ainda nos palcos, a banda comandada por Evandro Mesquita roda o Brasil com a “Turnê sem fim”: uma mostra do que foi e o que é o grupo. Eles chegam a Juiz de Fora nesta sexta-feira (21), no Cultural, a partir das 20h, e dividem a noite com Madhu, Urbana Legio, Excêntrica e Celsin.
Hoje em dia, além de Evandro, a banda é formada por Billy Forghieri, Juba, Rogério Meanda, Alana Alberg, Andréa Coutinho e Nicole Cyrne. Mas seu embrião foi formado dentro do Asdrúbal Trouxe o Trombone, um grupo teatral do qual Evandro fazia parte. “Quando acabava nossa peça, as pessoas comentavam que tinham adorado o nosso show. Tinha uma energia musical, rock’ n’ roll”, relembra Evandro. Isso justifica, por exemplo, uma das maiores marcas da Blitz: a junção da música com o teatro. Mas ela não se limitou a isso: além de ter feito a cabeça dos jovens brasileiros, rapidamente ganhou os ouvidos atentos das crianças que achavam tudo divertido. “A gente fazia matinês, só não tinham tantos palavrões quanto nos shows. A Blitz sempre teve um algo a mais.”
A banda ultrapassou as marcas do tempo e, ao invés de parar nos clássicos, seguiu produzindo. Agora, por exemplo, trabalha o lançamento de um box com cinco discos: um revistando clássicos, dois só com o lado B, outro com inéditas e, então, um com interpretações de canções de músicos admirados pelo grupo. Foi uma forma de lidar com os impactos da pandemia e, ao mesmo tempo, com as questões tecnológicas da música de hoje. Mas, fato é que ao olhar para trás dá para ver que era tudo diferente. E, mais que isso, para Evandro, foi a Bltiz que contribuiu para essa diferença. “A Blitz é uma história de luta, de virada de jogo do underground. É um marco, uma referência fundamental na cultura contemporânea. É o documento de uma época”, acredita o músico e ator, em entrevista, por telefone, à Tribuna.
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Tribuna: O que você acha que explica o fenômeno que foi a Blitz, logo no começo?
Evandro Mesquita: Eu acho que é um conjunto de coisas. Tinha o humor sempre teve na música popular brasileira. E veio em um época em que o underground estava fervilhando de bandas, de grupos de teatro. A gente vivia uma ditadura horrorosa, com censura, e a Blitz conseguiu enfiar o pé na porta das gravadoras, das rádios e das TVs, e deu a cara, mostrou essa música, que era urbana e falava da nossa vida. Tinha ainda, nas entrelinhas, uma leitura para o pessoal mais de perto da gente que estava vivendo isso e sabia. Foi uma conjunção de fatores que ajudaram a Blitz a ter sucesso. Primeiro, a gente lançou só o compacto, com uma música só. Então, tinha uma música só em uma capa que era um grafismo com o nome da Blitz. Ninguém sabia quem estava cantando aquilo. E já começou a tocar bastante. Quando veio o clipe do Fantástico, as pessoas linkaram aquele som com aquelas caras, aquelas roupas diferentes na época, porque o rock era todo de preto, e a Blitz veio com as cores, o humor, esse vento no coqueiro, essa mistura de ritmos, lá de fora com daqui também, que não parecia nada. A gente sempre pareceu a Blitz. Tem essa locução no meio, de crônicas, baseadas nas de Stanislaw Ponte Preta, Millôr, Fernando Sabino – tudo a gente jogava no nosso liquidificador sonoro e saia uma coisa com personalidade própria. Isso tudo foi uma soma de coisas que ajudou a ter esse carinho do público de várias idades.
E como isso incomodou a ditadura, já no final desse período?
Qualquer coisa incomodava os militares na ditadura: a liberdade, a alegria que a gente trazia. E acho que foi isso. Em um primeiro momento, ser censurado foi motivo de orgulho. Porque primeiro a gente pensou: “Caramba, os censurões escutaram nosso disco, se preocuparam em escutá-lo”. E isso só acontecia com Chico, Caetano e Gil. A gente estava em boa companhia. E o tiro saiu pela culatra. Porque a gente riscou com prego as matrizes do disco e foi uma coisa super comentada, até hoje as pessoas lembram disso. Foi uma devolução da agressão que a gente estava sentindo para o público todo saber que tinham mais coisas ali, e a gente estava dividindo isso com eles. A Odeon ganhou uma carta da Gradiente agradecendo porque eles nunca venderam tanta agulha de vitrola, porque as pessoas botavam moedas em cima para ouvir o que estava ali e a agulha não pular e ouvir o que tinha.
E o interessante é que isso não ficou no passado. A Blitz ultrapassa as gerações. O que você associa a essa longevidade?
Música boa não tem prazo de validade. Eu falo isso. Eu gosto de Frank Sinatra, de Beatles, de Caetano, Gil, e a gente tem muito carinho por essas músicas que marcaram épocas e são referências de um tempo legal. É isso. É aquela coisa: a gente conseguiu resistir ao teste mais difícil que é o teste do tempo. Hoje, é muito fácil fazer um disco de qualidade, qualquer computador tem um programinha que dá para fazer uma coisa bem legal, sei lá, em um quartinho. Antes era aquele monstro de um estúdio. Hoje, a gente é meio dinossauro e apanha muito também com essa coisa da distribuição, achar o nicho certo. Mas, na verdade, eu nunca quis um nicho certo. Eu queria falar para todo mundo. Já estava cansado de falar para os meus amigos da praia e minha família. Eu queria entrar como a gente entrou: nos bailes de subúrbio, nas boates chiques. A gente quis viajar o Brasil todo. E a gente fez. A gente viajava com dois caminhões: um com aparelhagem de som, porque só tinha no Rio e em São Paulo, e outro com cenários, figurinos, adereços, a gente gastava tudo na produção. Tanto que a gente não ganhou muita grana no começo, porque a gente queria que o show fosse aquela porrada para qualquer pessoa que visse.
E vocês continuam produzindo, não se limitaram aos clássicos.
A gente não virou cover da gente mesmo. Em 2017 a gente fez esse disco “Aventuras II” e foi indicado ao Grammy Latino. Isso está muito maneiro, porque no show a gente mostra o que a gente fez e o que a gente anda fazendo, sabe? Isso é fundamental para manter o lado artístico ainda sadio. E tem a alegria de fazer uma música nova, vê-la crescer, os arranjos, e você tocar no show, mostrar como ela está, o que a gente pensa hoje. A nossa visão crítica do mundo, da sociedade, está presente ali hoje, não é uma coisa saudosista. A gente sempre fez essa crônica do nosso cotidiano. Inspira no que está incomodando e tenta botar isso na música. A gente tenta falar disso tudo, mas dentro da nossa poesia, com uma crítica de humor, às vezes. E isso é a inspiração do cotidiano que a gente está sempre correndo atrás e vem de alguma maneira na nossa música.
Tinha como saber qual música ia estourar, na época?
A gente nunca fazia ideia de qual música ia estourar. Só a “Você não soube me amar” que a gente fazia ideia, porque nos shows, no Circo Voador, era muito forte, acabava e o público continuava cantando as músicas, e no mesmo tom que a gente tocava. Já era um sinal de que era um hit, porque era mais diferente, pelos diálogos e pela porrada sonora. Então a gente sentia. Mas é sempre um grande mistério isso. Não tem fórmula. No segundo disco, a “Dois passos para o paraíso”, a gente achou que essa música fosse de meio de disco, ia cumprir o papel de uma boa balada no disco, mas ela veio atropelando e é uma das músicas mais fortes até hoje.
A Blitz já passou por algumas formações. Como é entender o momento de parar, trocar, voltar?
A banda é como um casamento. Um casamento a sete. É mais difícil que um a dois. Tem horas de confronto. Mas é preciso muito amadurecimento, muita paciência, muita sensibilidade artística para equilibrar tanta personalidade e diferença juntas. A gente acabou em 1985, voltou em 1994, foi gravar lá fora e ficou 40 dias em Miami, e brigou de novo. E essa formação de agora é a mais longeva. Tem uns 15 ou 16 anos, menos a baixista que é nova. Agora, é uma formação bem equilibrada, todo mundo pensando na banda, sem ciúmes, invejas e intrigas. A gente está fluindo bem e está com prazer de estar com esse show na estrada com a turnê “Sem fim”.