Dos instrumentos saem notas musicais e também informações históricas. Música e memória caminham juntas no Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, que chega à sua 30ª edição neste ano, mais precisamente na noite deste domingo (21), quando a Orquestra Sinfônica da UFRJ sobe ao palco do Cine-Theatro Central para o concerto de abertura. Em cena estará não apenas uma das formações mais antigas do Brasil, com 95 anos de existência, mas um repertório que ajuda a compreender a expansão do barroco pela Europa e a transformação do estilo em outras formas.
Para traçar panoramas e aprofundar a complexidade histórica dos repertórios apresentados pelo festival, Rodolfo Valverde faz palestras diárias, sempre marcada para 19h, antecedendo os concertos noturnos do evento. Colunista e crítico de música do Jornal do Brasil entre 2008 e 2010 e comentarista das óperas do Metropolitan Opera e dos balés do Teatro Bolshoi nas duas primeiras temporadas da recente década, Valverde expõe um conhecimento também expresso nos livros “Intertextualidades: fronteiras entre o sacro e o profano na música do Brasil colonial e imperial – Anais do IX Encontro de Musicologia Histórica” (Editora MAMM/UFJF 2014) e “Teoria e práxis: uma antiga dicotomia revisitada – Anais do X Encontro de Musicologia Histórica” (edição digital 2016).
Professor da UFJF desde 1995, Valverde ingressou na universidade para atuar num universo bastante distinto do das notas musicais. Foi aprovado como substituto na Faculdade de Medicina. “Sou originalmente médico. Fui professor da Faculdade de Medicina de 1995 a 2007, quando então migrei para o IAD (Instituto de Artes e Design) e criamos o curso de Música em 2009, onde sou professor desde então”, conta ele, hoje professor em disciplinas como “História e apreciação musicais”, “Ópera: arte total”, “Música moderna”, “História da música erudita brasileira” e “Evolução da linguagem musical”. Conhecedor profundo do festival, Rodolfo comenta, em entrevista à Tribuna, a programação da atual edição e aponta para a potência de um festival que apresenta música contando a história.
Tribuna – Qual é a sua leitura da programação do festival este ano? Identifica uma linha comum a ligar as apresentações?
Rodolfo Valverde – Sim, a linha comum é a ênfase na música antiga (especialmente a música barroca) em interpretações historicamente informadas, ou seja, usando as características estilísticas e técnicas interpretativas do período e, na medida do possível, instrumentos construídos segundo os padrões da época. Desta forma, os concertos noturnos enfatizarão compositores dos séculos XVII e XVIII, como Scarlatti, Bach, Händel, Rameau, Vivaldi e Telemann, mas contemplando também a música renascentista e de outros períodos, como a clássica, romântica e moderna (ouviremos de Mozart a Shostakovich, passando por Beethoven e Brahms).
O concerto de abertura traz obras do barroco francês e alemão. Qual o lugar desses barrocos na história da música?
São fundamentais! As características principais da música barroca surgiram e se consolidaram na Itália, atingindo posteriormente as demais regiões da Europa. Apesar de a música barroca italiana ser a base de todo o período, os franceses desenvolveram um estilo muito particular, e com diferenças consideráveis em relação ao italiano, que atinge a sua plenitude nas obras de Lully e Rameau. Os alemães, que durante essa época eram periféricos em relação aos principais desdobramentos musicais, sintetizaram em suas composições as características italianas, francesas e alemãs criando uma música de riqueza e profundidade únicas, especialmente no período chamado de Barroco Tardio (primeira metade do século XVIII), o que pode ser atestado pela magnitude das obras de Johann Sebastian Bach e Georg F. Händel.
Poderia comentar as peças do concerto de abertura?
No concerto de abertura poderemos conferir as particularidades do barroco francês, que enfatiza a música de dança, ritmos pontuados, a pompa e a elegância, perfeitamente expressas na suíte extraída de “Les Indes galantes” (“As Índias galantes”), opéra-ballet composta por Rameau e estreada em 1735. A seguir, ouviremos a síntese dos elementos franceses, italianos e alemães (a presença de um contraponto rico em texturas cheias) através de um concerto (gênero de origem italiana) de J. S. Bach (seu “Concerto de Brandemburgo no.1”) e de uma suíte (gênero tipicamente francês) de Händel (sua “Suíte no.1” da célebre “Música Aquática”, composta para o passeio do rei inglês George I pelo rio Tâmisa).
O que você ressalta na programação deste ano? Algum repertório pouco executado no Brasil?
Sim, de maneira geral, todo o repertório do Festival é pouco executado no Brasil, mas destaco o repertório dos séculos XVI e XVII, e também o do século XX, que são ainda bem menos interpretados, se comparados com a música do período clássico e romântico.
O concerto de encerramento trará instrumentos que executaram as peças quando elas foram criadas. Qual é a singularidade disso?
É uma das principais características do Festival, a performance historicamente informada com instrumentos de época, ou seja, com instrumentos similares aos que o compositor pensou a sua música. Apesar desta abordagem ser a tônica em relação à música barroca e anterior, em nosso país ainda não é recorrente quanto à música dos períodos clássico (segunda metade do século XVIII) e romântico (século XIX). O Conjunto de Música Antiga da USP nos trará obras de Haydn, Mozart e Beethoven (os três principais compositores do período clássico – a chamada primeira escola vienense) que certamente serão ouvidas em Juiz de Fora pela primeira vez com instrumentos de época e marcam uma tendência que já é prática comum na Europa.
Como está o pensamento da música colonial brasileira no país hoje? E da música antiga?
O trabalho musicológico de resgate da música colonial brasileira, que tem em nosso Festival um marco de importância excepcional, continua forte, apesar do momento difícil em que vivemos quanto à obtenção de financiamentos para pesquisas na área cultural e artística. Os nossos encontros de musicologia histórica, que acontecem a cada dois anos durante o Festival e reúnem alguns dos principais pesquisadores da área, confirmam a vitalidade e relevo destas pesquisas.
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