Aluno de violoncelo, Lucas Bracher tinha apenas 10 anos quando viu acontecer o 1º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, do mesmo Pró-Música que o ensinava as primeiras noções da música. Seus pais eram membros do coral da instituição e não perderam os concertos daquele evento de estreia, que de tão pequeno conseguiu distribuir os certificados das oficinas logo em seu último dia. Os professores convidados, recorda-se ele, ficavam hospedados em casas de famílias que se ligavam, de alguma forma, ao centro cultural criado em 1971. “Foi um tempo bem interessante de efervescência da música barroca no Brasil, muita gente importante hoje começou nos festivais. Acho que o que mais me marcou foi a quantidade de amigos pela vida toda que fiz a cada edição e também a qualidade dos concertos de nível internacional que nos deixavam bastante impressionados”, comenta ele.
Ainda que a música tenha sido uma parceira constante, Lucas formou-se em tecnologia da informação e, na 13ª edição do festival, matriculou-se numa oficina de violoncelo barroco. Formava, então, um vínculo que, de tão difícil de se dissolver, acabou por determinar o abandono da ciências exatas. Seria músico! Enquanto o despertar se deu no curso livre, os aprimoramentos foram feitos nos festivais, caminho que o levou ao Conservatório Guido Cantelli de Novara, na Itália, para se aperfeiçoar em violoncelo barroco. De estudante em tantas edições, Lucas passou a atração no 30º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, que começa neste domingo. Testemunha desde o princípio, o violoncelista se apresenta ao lado da norte-americana Rotem Gilbert, especialista em flauta doce e gaitas de foles renascentistas, na próxima terça, 23, no concerto “Da Renascença a Vivaldi”. Lucas, filho de Paulo Bracher e sobrinho-neto de Carlos, também se faz presente no concerto de sexta, 26, da soprano Veruschka Mainhard, holandesa radicada no Brasil, com o alaudista Diego Leveric, croata radicado na Itália. “Tocar neste festival para mim é uma honra muito grande. Fiquei muito feliz de ser lembrado e convidado. Vejo isso como reconhecimento de todo o esforço que fiz para conseguir ser músico. Não foi fácil, e valeu a pena cada tentativa, cada frustração e cada sucesso”, diz ele, atualmente integrante da Orquestra Barroca da Unirio e do grupo carioca de repertório barroco Cibele Camerata.
“O legado do festival é muito expressivo e grande. Ele foi pioneiro na organização de um evento dedicado especialmente à música colonial brasileira e música antiga. Ele formou gerações de músicos, despertou diferentes vocações, não só artísticas como científicas. O encontro de musicologia é bastante importante no cenário acadêmico do país. Esse legado é importante em nível local, nacional e internacional, promovendo Juiz de Fora não só no Brasil como no mundo, pelo despertar de vocações musicais e artísticas. É um legado que precisa ser preservado, e essa data precisa ser celebrada”, destaca Marcus Medeiros, supervisor do Pró-Música/UFJF e diretor do festival. “O festival é um evento pioneiro no Brasil, e um evento tão específico como esse chegar à 30ª edição é um feito raro em nosso país, onde a regra é a descontinuidade dos projetos culturais. Sabemos que a cultura é sempre uma das primeiras a perder recursos nos momentos de crise, e a crise atual já se estende há alguns anos e se acentuou ainda mais em 2019. A UFJF incorporou o Centro Cultural Pró-Música em 2011 e desde 2015 assumiu integralmente a realização do festival. Tem sido imenso o desafio de corresponder às expectativas dos alunos que vêm do Brasil inteiro para as oficinas e do público que o Festival conquistou ao longo de todos esses anos. Temos nos empenhado para preservar a excelência que sempre caracterizou este evento, com apresentações de grupos e músicos de inquestionável qualidade, apesar das restrições orçamentárias que atingem as universidades. Mas não podíamos deixar que um evento dessa magnitude e importância, que tanto já contribuiu para os estudos de musicologia histórica e para a divulgação da música colonial e antiga, perdesse continuidade. O Festival é um projeto de resistência, reconhecido e consolidado”, avalia a pró-reitora de Cultura da UFJF Valéria Faria.
Passado como desafio futuro
Patrimônio imaterial de Juiz de Fora e um dos mais grandiosos projetos gestados no Centro Cultural Pró-Música, o festival tornou-se um dos grandes desafios para a UFJF, que em 2011 incorporou a entidade sem fins lucrativos e, desde 2015, é a organizadora do evento. O passado se impõe ao presente cobrando um futuro melhor. “Continuamos na luta para voltar e até ultrapassar aquilo que o festival já ofereceu no passado”, garante o supervisor do Pró-Música/UFJF Marcus Medeiros, sustentando que os ruídos expressos nas primeiras edições em que a universidade tomou as rédeas do projeto ficaram para trás. “Mantivemos a qualidade das apresentações artísticas e, ao longo desses anos, vamos aprendendo como gerenciar e organizar uma atividade dessa natureza, e vamos, pouco a pouco, conseguindo ampliar, sempre com a meta de retomar a proposta original do festival”, compromete-se, reconhecendo a redução expressa no tamanho do festival e também em seu impacto. “É uma redução principalmente de tempo e de duração. Além disso, existe uma redução da participação de alunos do festival. São reduções compreensíveis pela mudança de administração que aconteceram. Quando o festival passou a ser administrado integralmente pela UFJF, foram muitos os procedimentos que vinham sendo rotineiros e que precisaram ser mudados, porque passaram para uma administração pública. Dependemos de pareceres de procuradoria, para ver se está tudo de acordo com a lei. Isso já gera uma diferença grande. Para além, temos uma sensível diminuição de verbas. Quando o festival veio para a universidade, fatalmente acabamos perdendo muitos dos patrocinadores por uma crença de que a universidade, por ser do governo, vai dar conta de todo o volume necessário”, comenta Medeiros.
Creditando o atual cenário à crise econômica nacional e às reduções de repasses para as universidades, o supervisor do Pró-Música/UFJF destaca o interesse em retomar, principalmente, a amplitude das oficinas. “O festival tem uma forte vocação para o ensino. Por conta dele, a prática da música colonial e antiga cresceu muito no país, pelas vocações e pelo interesse que despertou, pelos músicos que trouxe e pela formação que propiciou”, pontua. “Há uma consciência da importância desse evento e da promoção da cultura na universidade. Isso já é uma grande vitória”, ressalta Medeiros, que na atual edição privilegiou o pensamento da música antiga em diferentes perspectivas. “Na programação deste ano, temos um contraste entre os concertos de abertura e de encerramento: temos uma orquestra moderna tocando o repertório barroco na abertura e, ao final, um conjunto com instrumentos históricos que mostram outras formas de tocar esse repertório de uma maneira informada. Temos buscado, como antes, mesclar a música antiga e colonial brasileira com outras possibilidades de repertório”, observa o diretor do festival, que, como em anos anteriores, traz coincidências com o aclamado Festival de Inverno de Campos do Jordão, que este ano apresenta um orçamento mais de 16 vezes maior do que o do festival juiz-forano, avaliado em R$ 430 mil. Alguns dos músicos do Harmoniemuzik (atração de sábado) e do Conjunto de Música Antiga da USP (que encerra no próximo domingo) se apresentam, também, na cidade paulista. “O mundo da música antiga, embora bastante expressivo e forte, é reduzido. É inevitável que as pessoas circulem pelos diferentes meios”, explica Medeiros, pontuando, ainda, a versatilidade de uma programação que se estende a locais públicos, como praças e shopping, com apresentação que vai da dança ao teatro, passando pelos corais e pelas renomadas formações dos concertos noturnos, todos precedidos por palestras no mesmo local, às 19h, ministradas pelo professor da UFJF Rodolfo Valverde.
Presente executando o passado
Jean-Philippe Rameau, compositor francês, é fundamental para o pensamento da música barroca francesa e também para a fase rococó do país europeu. Um dos maiores expoentes do classicismo na música, Rameau é a prova de que os tempos se entrecruzam. E não existe presente sem passado. Autor de “Les indes galantes”, suíte de 1735, Rameau dá o ponto de partida para a apresentação da Orquestra Sinfônica da UFRJ, que abre o 30º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga. “Procuramos organizar dando uma espécie de panorama da fase final do barroco, abordando o barroco francês, com essa obra do Rameau, uma suíte extraída de uma ópera, e o concerto de Brandemburgo, de Bach, um dos mais importantes conjuntos do barroco alemão. Vamos terminar com a suíte ‘Música aquática’, de Händel, que é um contemporâneo de Bach, mas mais eclético. Ele morou na Itália e foi influenciado, especialmente, pela música operística, se estabeleceu em Londres, uma cidade mais cosmopolita, e isso também marcou a produção dele”, explica André Cardoso, diretor artístico da orquestra. “Vamos abordar o final do período barroco, estilo que começa no início do século XVII, com Monteverdi. Esse conjunto de obras é de grande importância dentro desse repertório orquestral produzido no período. Dentre as obras desses compositores, vamos executar umas das mais relevantes.”
Programa com o qual a formação abriu a temporada deste ano, em fevereiro, numa lotada Sala Cecília Meireles, no Centro do Rio de Janeiro, o concerto e as suítes mostram a potência de uma orquestra moderna em relação às obras que irá executar. “O próprio violino é o mesmo de sempre, apesar de ter passado por pequenas modificações. Evidentemente, tivemos alterações nos instrumentos que mudaram um pouco o timbre, o volume e a capacidade de executar as notas, mas, mais importante do que isso, importa o meio de expressão. Como expressar contemporaneamente esse repertório? A interpretação do Felipe Prazeres, que vai reger esse concerto, respeita o estilo de época, apesar de ser executado por instrumento dessa ‘moderna ‘ orquestra sinfônica”, destaca Cardoso, narrando a trajetória de uma formação cuja vocação em muito se assemelha com a da instituição que ajudou a erguer o festival. “A Orquestra Sinfônica da UFRJ passou por diferentes fases. Começou como uma orquestra de alunos, em 1924. Ao longo do século XX, ela se tornou uma orquestra profissional. E no final dos anos 1960, início dos anos 1970, voltou a receber alunos. Hoje a orquestra tem um modelo híbrido”, aponta o diretor artístico, referindo-se aos 47 músicos profissionais, concursados da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao grupo se agregam, ano a ano, de 50 a 60 jovens músicos, graduandos da instituição, transformando, assim, a orquestra numa grande sinfônica. “Ela tem não só um objetivo artístico, mas um viés pedagógico, que visa a formação de novos músicos. Temos uma temporada regular de 12 a 14 concertos por ano e uma ou duas produções de ópera que circula por diferentes cidades. É uma orquestra muito ativa, que se dedica à música brasileira antiga e à música contemporânea”, conclui André Cardoso, explicando que em Juiz de Fora se apresentarão apenas os músicos profissionais, cerca de 30, já que a universidade encontra-se em período de férias.
PROGRAMAÇÃO
30º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga
Dia 21 (domingo)
16h – Orquestra Sinfônica Pró-Música, na Galeria Renato de Almeida do Centro Cultural Pró-Música/UFJF
20h – Concerto de Abertura, com Orquestra Sinfônica da UFRJ, no Cine-Theatro CentralDia 22 (segunda)
16h – Dance in Concert, no Cine-Theatro Central
20h – Trio Villani e convidados, no Teatro Paschoal Carlos MagnoDia 23 (terça)
18h – Coral UFJF, no Forum da Cultura
20h – “Da renascença a Vivaldi”: música para flauta doce e gaita de foles, no auditório do Museu de Arte Murilo MendesDia 24 (quarta)
18h – Coral Cesama, na escadaria do Cine-Theatro Central
20h – Recital de Piano, Viola e Clarineta, no auditório do Museu de Arte Murilo MendesDia 25 (quinta)
16h – Espetáculo “O carnaval dos animais”, com Grupo Giramundo: Teatro de Marionetes, no Cine-Theatro Central
20h – Quarteto 5ª Essentia, no Teatro Paschoal Carlos MagnoDia 26 (sexta)
18h – Coral Pró-Música, na escadaria do Cine-Theatro Central
20h – Canto, Cravo e Alaúde, no Teatro Paschoal Carlos MagnoDia 27 (sábado)
14h30 – Orquestra Sinfônica Pró-Música, no Shopping Jardim Norte
20h – Harmoniemuzik, no Teatro Paschoal Carlos MagnoDia 28 (domingo)
20h – Concerto de Encerramento, com Conjunto de Música Antiga da USP, no Cine-Theatro Central
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