O ator, autor e produtor cultural Adelino Benedito, 46 anos, procurava por um texto. Uma letra, uma poesia, um aforismo. Apenas um texto. Qualquer um que pudesse interpretar para demarcar o que disputa ao menos desde 1888. O material seria divulgado em 13 de maio, data que é rememorada como a da abolição da escravatura. “Uma falsa abolição”, aponta Adelino. O ator então ligou para a diretora de teatro Adriana Ryal em busca de sugestões. Mas Adriana lhe apresentou alguns textos. “Não apenas um. Percebi que tinha muito mais pra falar. Resolvi mostrar todos os textos, fazer um projeto para dar visibilidade a autoras e autores negros”, explica. Um projeto audiovisual para divulgar semanalmente a produção de artistas negros interpretada pelo próprio Adelino. Inclusive, o nome, “Conta de lágrimas – Raiz, origem e tempo”, é inspirado no texto “Da cor da minha cor”, de Adriana. Será justamente este o texto a ser interpretado por Adelino na estreia do projeto nesta sexta-feira (21).
Adelino aponta que a Lei Áurea aboliu apenas o método de escravização em vigência desde o Brasil Colônia, mas não as estruturas de reprodução do racismo. “Da maneira como foi feito, os negros deixaram de ser escravizados de uma forma, mas não lhes foi dada a oportunidade de viver. É como se nos falássemos ‘estão livres, agora se virem’. Mas não há meios de conseguir algo assim.” Muitos escravos, por exemplo, pondera Adelino, mesmo depois de libertos, pediam para voltar, já que não tinham onde comer, tampouco como buscar sustento. “É uma falsa abolição. Nada foi pago pelo trabalho forçado e cruel a que haviam sido submetidos. Não houve indenização. Isso reflete até os dias de hoje. Acabamos tendo os piores empregos. Os trabalhos braçais são feitos em maioria por negros.” O projeto “Conta de lágrimas – Raiz, origem e tempo” quer dar visibilidade a escritores, autores e músicos negros. Conhecidos e desconhecidos.
“Conta de lágrimas” divulgará semanalmente, no YouTube, pílulas audiovisuais com as interpretações de Adelino. As gravações começaram há cerca de quatro semanas, mas não há prazo final – “queremos um texto novo a cada semana”. A direção de fotografia é de Chester Marcone, a edição, de Lucas Sakamoto, e a trilha sonora, de Nico. “Os vídeos estão sendo gravados no Teatro Paschoal Carlos Magno. A Funalfa nos cedeu sem problemas. Mas fizemos um n’OAndarDeBaixo. O projeto é independente. Não é financiado, não tem verba”, ressalta Adelino. “As pessoas que estão cedendo os textos não estão cobrando. Elas cederam porque acreditam no projeto. Todas são generosas. Acreditam que há a necessidade de ter um projeto para dar visibilidade a pessoas negras. É muito difícil publicar. Há pessoas que escrevem muito bem e que estão dentro de casa, mas não têm a oportunidade de mostrar os textos.”
Poetas, slammers, jornalistas, compositores
Adelino não sabia que ele mesmo poderia escrever. “Embora eu seja filho de compositor de samba (José Benedito da Silva, o Biné), não me imaginava escrevendo peças de teatro. E já tenho vários espetáculos escritos”, aponta. A percepção, conta, se deu quando passou a atuar em espetáculos de outros artistas. “Dentro dos textos, acrescentava uma palavra, uma frase. Foi quando percebi que tinha talento para escrever. Quero mostrar que o projeto é capaz de fazer o preto e pobre de periferia escrever, a ser um grande poeta, um grande autor, um grande dramaturgo.” Ou não necessariamente, destaca Adelino. Apenas mostrar que são capazes de produzir uma obra. A incentivar a leitura e a escrita de pessoas negras. “Dar a oportunidade e, ao mesmo tempo, incentivar as pessoas a escrever.” Os interessados em ter os próprios textos divulgados no “Conta de lágrimas – Raiz, origem e tempo” podem encaminhá-las ao e-mail cdelagrimas@gmail.com. “É só mandar o material.”
O projeto mobiliza tanto artistas reconhecidos localmente quanto outros de renome nacional. De Juiz de Fora, por exemplo, além de Adriana Ryal, já estão garantidos a professora e contadora de história Flávia Nascimento; as atrizes Mariana Silva e Raissa Garcia; a cantora e compositora Sil Andrade; a professora e contadora de história Vanda Maria Ferreira, e, por fim, Way Puri. Por outro lado, “Conta de lágrimas” trará o cantor e compositor Altay Veloso; a poetisa, jornalista, escritora, cantora e atriz brasileira Elisa Lucinda; a atriz, diretora e slammer Luiza Loroza; o ator Marcelo Augusto; e a escritora, poeta, slammer e produtora cultural Mel Duarte. “Acredito que é uma forma de incentivar a leitura e o amor pela escrita. Que o projeto seja bem visto e levado para as escolas”, conclui Adelino.
Fragmento de “Da cor da minha cor”, de Adriana Ryal
Do cair da noite,
Do espírito lançador,
Da libertação da senzala,
Do arquétipo do velho que benze o mundo,
Que cura a alma,
Da anciã menina mulher,
Guerreira que grita;
Que gera vida, que homem tira…Do grito do quilombo…
Do sobrevivente da mata,
Pastorinho dos campos…
Desenvolve, cresce…
Desenvolvo…
Cultivo, na terra, saio do tronco,
Planto meu destino;No pranto, no choro, me crio,
Fortaleço e recrio no som do tambor
E no vento dos quatro cantos. (…)