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‘Poesia pode ser o que quiser’, defende poeta Adelaide Ivánova

adelaide capa
adelaide ivanova
Premiada poeta, Adelaide Ivánova vive na Alemanha, onde trabalha como modelo-vivo, segurança de teatro, baby-sitter e garçonete. (Foto: Pedro Pinho/Divulgação)
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Um nude por um poema. Adelaide Ivánova escrevia, bêbada, de madrugada, no Facebook, poemas de amor e marcava o remetente. Ao escrito dava o nome de recibo, porque esperava, em troca, um nude que nunca recebeu. Ganhava likes, nada mais. E apagava. Contra a efemeridade das redes sociais, os poemas ganham, agora, as páginas de um livro. “13 nudes” (Edições Macondo, 92 páginas) reúne os versos de um amor em tempos de web 2.0, em tempos de consciência feminista, em tempos de outras liberdades sexuais, em tempos de selfies, em tempos de resistências. Dedicados a cinco homens amados – Italo, Ewout, Lukas, Arthur e Jakob – os poemas apontam a amplidão da escritora recifense de 37 anos, vencedora do Prêmio Rio de Literatura em 2018, pelo livro “O martelo”, e considerada uma das mais importantes vozes da poesia contemporânea brasileira. Fala da cama e reflete a estrada. “Não são as dedicatórias que motivam a escrita, é a vida!”, diz.

Entre declarações inquietantes – Hoje eu quero desarticular/ medo, tristeza e regra, afinar com o meu o/ teu desejo, falar putaria na cama naquele//idioma que há muito abandonei” – e tiradas instigantes – “ser feminista e heterossexual não é uma contradição secundária/ é meio síndrome de estocolmo” – “13 nudes” transita pelo afago e pelo bom-humor numa espontaneidade própria das redes sociais. Adelaide, no entanto, não se despe. “Não teve um trabalho de me despir nesses poemas, creio, porque não há trabalho de me despir em nenhum poema. Mesmo sendo a vida o material da escrita, toda escrita é ficção. O que a gente quer despir é outra coisa, uma parte da vida, uma pergunta, uma resposta, uma mentira”, pontua, em entrevista à Tribuna por e-mail.

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Livro reúne poemas escritos durante a madrugada, no Facebook, para os quais Adelaide dava o nome de recibo, já que identificava os remetentes dos versos
(Reprodução)

Num poema que faz as vezes de posfácio da obra, e ao qual chama pós-fax, a poeta Érica Zíngano questiona a existência dos cinco amantes. “Seriam eles seres humanos reais/ ou só pura imaginação falaciosa?”, escreve após afirmar que os poemas “nasceram do cruzamento da vida privada/ com a via pública”. Absolutamente contemporâneos, os escritos retratam o aqui e o agora. Adelaide anda de mãos dadas com seu tempo. E radicada na Alemanha desde 2011, trabalhando como modelo-vivo, segurança de teatro, baby-sitter ou garçonete, a escritora decidiu, portanto, republicar “Polaroides”, lançado pela primeira vez em 2014, há cinco anos, pelo extinto selo Cesárea. Os dois títulos chegam juntos às prateleiras.

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Após cinco anos, “Polaroides” retorna revisado: “Foi escrito por diversas adelaides, algumas que nem existem mais”, explica a autora. (Reprodução)

“O ‘Polaroides’ de 2014 foi escrito por diversas adelaides, algumas que nem existem mais, graças a Jah. Para a edição da Macondo, tiramos alguns poemas que não representam mais minha postura política atual, coisas que hoje em dia vejo como misóginas, ou como liberais… O processo de politização ele não tem fim, ninguém nasce com consciência política pronta, e eu não sou exceção, e não achei necessário republicar esses poemas, não porque eles me deixam mal na fita (a primeira edição continua existindo e circulando on-line em pdf, pra quem quiser ver), mas porque acredito que eles têm potencial despolitizador e são, portanto, desnecessários”, explica Adelaide, que para ambos deu um título relacionado à fotografia, “por ser esse um campo não somente de ação, mas de pensamento”.

Convidada da Festa Literária de Paraty em 2017 e apontada como uma das grandes revelações recentes da literatura brasileira, Adelaide certamente está a léguas e léguas do retrato generalista e generalizante traçado pela pesquisadora Mariella Augusta Masagão em polêmico artigo publicado no caderno Ilustríssima do dia 14 de abril da “Folha de S. Paulo”, no qual aponta a poesia contemporânea nacional como sisuda e hermética. Adelaide, você identifica alguma sisudez no que escreve? E hermetismo?, pergunto. A poeta, num sarcasmo e numa precisão latentes em seus “13 nudes” responde: “Eu mermo, não!”

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LEIA ADELAIDE

os anos noventa

você não estava lá nas coisas mais decisivas da minha vida
mas é assim mesmo: historiadores e arqueólogos
nunca estiveram presentes pra testemunhar
os levantes coletivos isso fazem os jornalistas e os

videntes você era apenas um menino quando
kurt cobain morreu nem poderia ainda saber o dano
que causaria sua existência de crisálida taurino e
primaveril quando meu destino cruzasse com o seu

e andaríamos de mãos dadas e suando verão afora
como se fosse o primeiro (e era) berlim não era
tão esplendorosa quantos seu cachos jakob mas você
nunca soube o que foi ter 16 anos em recife na década

de noventa FHC presidente desemprego torneiras secas
filariose cólera sem vale do rio doce mas tinha chico science
abril pro rock o pior é agora não tem berlim não tem recife
não tem chico science não tem kurt cobain nem você mas FHC
ainda tem

(em “13 nudes”)

Tribuna – Em “13 nudes” você fala bastante da língua materna. Qual o lugar da língua portuguesa em sua vida e em sua produção?
Adelaide Ivánova – Eu vivo entre duas línguas e elas protagonizam partes bem diferentes da vida. A língua do dia a dia (no caso, a alemã) é uma língua-ferramenta, usada para comprar pão, para ter DR (discussão de relacionamento), para ser humilhada nas instâncias burocráticas. É a língua da encenação, por ser a língua do teatro e dos afetos diários. A língua materna acaba virando uma coisa meio intocada, usada exclusivamente para produzir; não há desperdício dela. Ela fica a salvo das chantagens das paixões e dos tormentos do cotidiano, e pode existir divina e maravilhosa e soberana na escrita, sem afetações, porque é outra a língua que está sendo gasta.

Em alguns dos poemas existe um interesse por investigar como é feito o poema. Essa é uma questão latente em sua escrita? De que é feito um poema?
Não é uma questão latente, eu não escrevo porque quero falar de poesia mas, como escrevo poesia, e isso faz parte da minha vida, e minha vida é o material da minha poesia (como diria Audre Lorde), então vez ou outra isso aparece no poema. Eu não sei de que é feito um poema, assim, de uma maneira definitiva, eu não sei. Acho que ele é feito de algumas coisas, mas essas coisas mudam de pessoa para pessoa, de tempo para tempo, de fase para fase.

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Facebook, nudes e outros termos de um vocabulário nitidamente contemporâneo demonstram sua conexão com o agora. Qual é a sua preocupação com esse tempo presente?
Eu não vivo em outro tempo além deste, 2019, e minha preocupação são as preocupações de 2019: previdência, fascismo, austeridade, Lula, amor, violências, feminismo…

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Quando vi essa cena, fiquei me perguntando o que leva uma andorinha a catar lixo em vez de caçar peixes e, na sua esquizofrenia pública, passar mais tempo com pombos do que com os seus. Depois me lembrei que eu mesma já fiz muito isso.

(em “Polaroides”)

 

Em “Heroínas”, do “Polaroides”, você cita o Allen Ginsberg (poeta norte-americano) dizendo que ele tem razão “quando diz que poemas nascem de/ conversas”. Como nascem seus poemas?
De conversas também, da vontade de responder a uma pergunta, da vontade de mobilizar, da vontade de fazer as pessoas conhecerem e reclamarem por seus direitos…

Há um humor fino e cortante em muitos dos poemas de “Polaroides”. Qual é a intencionalidade desse humor?
Eu me considero uma pessoa até bem engraçada, não é uma estratégia de escrita, é um traço da minha personalidade, que às vezes se manifesta e às vezes não.

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“Polaroides” revela poesia no que haveria de ser banal, como em “Meu Deus, nada acontece.” Onde não existe poesia para você?
Poesia existe em todo canto, acho que tudo pode ser poetizado. Não penso muito nessas coisas. Poesia não é a única coisa que me interessa na vida.

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Stadt sapatão

eu tenho uma namorada
e ela se chama a cidade
a gente se vê todo dia
ela nunca me ignora
ela está sempre disposta
ela sempre sai comigo
e gosta de andar de mãos dadas

eu tenho uma namorada
e ela está tão triste.

(em “Polaroides”)

 

Em 2018 você venceu o Prêmio Rio de Literatura, com “O martelo”, e foi apontada pela professora e pesquisadora Heloísa Buarque de Holanda como uma das promessas da poesia para 2019. De que maneira esse reconhecimento atua em sua escrita? Há alguma cobrança sua?
Ele não atua na minha escrita, não. Óbvio que fico feliz e muito agradecida, e mostro para minha mãe, para minha vó. Eu sou uma trabalhadora autônoma e gosto de ter meu trabalho reconhecido por instâncias de legitimação, principalmente porque, costumeiramente, essas instâncias só reconhecem o trabalho de autores brancos do Sudeste. Para uma autora como eu, que vem de uma família de agricultores do agreste de Pernambuco, que não tem curso superior completo, que emigrou pra virar babá na Alemanha, que publica por uma editora pequena, não é pouca coisa. Mas a cobrança que há em mim é uma cobrança de ordem ética. Não me cobro em responder às expectativas liberais de sucesso individual – ainda que eu saiba que, sob o capital, o sucesso individual da minha escrita pode, talvez, significar meu sustento material. Mas preciso acreditar que o sustento material de uma pessoa não está atrelado ao seu talento individual, e sim a seu direito como ser humano. A cobrança que há em mim é a de escrever uma poesia que esteja emparelhada com isso, que é o que eu quero para minha vida, para vida da minha comunidade, para todes. Uma poesia que não somente analise o mundo, mas que talvez ajude a transformá-lo.

É frequente o debate acerca do que é arte, do que é literatura, do que é poesia. Quem deve definir o que é ou não poesia?
Qualquer um deve. Minha vó odeia poesia, acha uma besteira melosa. E está errada? Tem poesia que é assim. E tem poesia que não é. Tem gente que acha que repente não é poesia, que cordel não é livro, e eu tenho que conviver com essa opinião imbecil, fazer o quê?! Poesia pode ser o que a pessoa quiser, é um texto que a pessoa aperta enter na hora que lhe der vontade, nada mais. É um jeito de se fazer as coisas, inclusive a coisa-texto.

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LEIA ADELAIDE

para Italo, no seu aniversário, um poema cheio de rimas pobres

não sei o quanto pesa o destino
mas prefiro acreditar que tu aparecesse
para me apresentar à coragem

para me aproximar de coisas que eu devia
há tanto ter começado finalizado
ou dito

te usar não como desculpa
e sim como gatilho
para silêncios melhores
e mais incômodos
para mais fogos, mais artifícios

te celebrar
hoje
já que és o último terrorista
com tua capacidade infinita
de encantamento e tédio

celebro hoje todos teus abismos
teu nome dito no umbral
pois não tendo ‘empleo fijo’ podemos

virar mil noites juntos
e o que me interessa é te olhar
te ouvir e me sentar nos parques
para te ‘leer’ ou ‘leer’
contigo te dizer “feliz aniversário, italo”
mas em vez de oferecer-te um
fazer de ti ‘el regalito’
tornando-me eu mesma
‘en contrario’
um igual
ser
teu menino
teu amigo

(em “13 nudes”)

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