Ícone do site Tribuna de Minas

Entrevista: Ariel Ortega, diretor indígena, fala sobre seu filme ‘A transformação de Canuto’

A Transformação de canuto
PUBLICIDADE

Neste ano, o Festival de Cinema de Tiradentes, que aconteceu em janeiro, tinha como tema “As formas do tempo”. Através dos filmes selecionados pelos curadores, as conversas da programação foram guiadas no sentido de perceber como pensar o tempo de cada realização é fundamental para o desenrolar de cada narrativa e para a construção de cada personagem. Sobretudo os documentários, que têm a missão de registrar histórias e, por isso, os tempos em seus mais diversos sentidos. E quando o foco é um povo, principalmente, é preciso se ater aos detalhes do tempo e sua transformação no ambiente. E quando se é do lugar, a missão, de certa forma, é facilitada.

Ariel Kuaray Ortega é cineasta indígena e líder Mbyá-Guarani. Ele realizou filmes como “Duas aldeias, uma caminhada”, de 2008, e “Bicicletas de Nhanderú”, de 2010, junto com outros indígenas de sua aldeia, sobretudo por meio do projeto desenvolvido pelo Vídeo nas Aldeias. Ariel foi a Tiradentes, neste ano, para apresentar seu mais novo filme, “A transformação de Canuto“, co-dirigido por Ernesto de Carvalho. O filme fala sobre Canuto: um homem que vive na comunidade Mbyá-Guarani, entre o Brasil e a Argentina, e que há anos se transformou em uma onça e morreu, logo em seguida, de forma trágica.

PUBLICIDADE

Assista ao trailer de “A transformação de Canuto”:


Trata-se de um documentário híbrido que suscita, entre outras coisas, exatamente o tempo e como sua percepção é diferente dentro de uma aldeia. Além de dirigir, Ariel atua em “A transformação de Canuto”, que busca explicar ainda a história que, por tempos, foi vista como um tabu dentro da aldeia de Ariel. Em entrevista à Tribuna, em Tiradentes, o líder e diretor falou da importância de se ter cada vez mais indígenas contando suas próprias histórias e como perceber esse tempo faz todo a diferença.

PUBLICIDADE
“No Brasil e no geral, ainda existe pouco conhecimento sobre os povos indígenas”, afirma líder indígena e cineasta Ariel Kuaray Ortega (Foto: Divulgação)

Tribuna de Minas: Como aconteceu seu primeiro contato com a produção audiovisual?
Ariel Kuaray Ortega: O cinema mesmo, quando eu entendi o que era, foi em 2007. A aldeia onde moro (Mbyá-Guarani) tinha feito um inventário sobre patrimônio imaterial com o Iphan, que entrou em contato com o projeto Vídeo nas Aldeias para dar oficina na aldeia. E eu fui um dos que fizeram a oficina. Esse inventário era para fazer um livro ou um CD, ou até um filme, e a gente escolheu fazer audiovisual. E o Iphan já conhecia o Vídeo nas Aldeias, que trabalhava muito tempo com os povos indígenas, e chamaram eles. E foi assim que eu tive o acesso ao audiovisual pela primeira vez, de pegar a câmera, filmar. E foi assim que conheci o Ernesto (de Carvalho). A gente acabou virando amigos.

Mas você imaginava que ia se tornar um realizador?
Naquela primeira oficina, eu não imaginava que ia continuar fazendo filme. Mas naquele momento eu senti que era necessário fazer um trabalho que a gente pudesse contar nossa história, a caminhada do povo Guarani, porque eu estava vendo que existia muito desconhecimento da sociedade brasileira (sobre os povos indígenas), principalmente lá no sul. E existia muito preconceito por isso. Então, vi que era necessário contar a nossa história. Isso foi o que eu percebi: que o audiovisual tinha o poder de mudar isso (o preconceito). Mas, ainda assim, eu não sabia que ia continuar fazendo filmes. Mas a ideia sempre foi contar e recontar a nossa história. No Brasil e no geral, ainda existe pouco conhecimento sobre os povos indígenas. Acham que os indígenas são todos iguais, mas não sabem que existem mais de 200 povos e 300 línguas. Ainda tem desconhecimento.

PUBLICIDADE

Da mesma forma que existem diferentes formas de fazer cinema indígena, né?
Sim. E são formas totalmente diferentes. Na primeira oficina eu não entendi muito ainda, mas, depois, fazendo outros filmes, fui compreendendo que os nossos filmes tinham que ter uma marca nossa como povo, porque cada povo tem sua marca, como a pintura e os cantos. Eu percebi que os filmes também tinham que ter essa marca. Achamos que os nossos documentários tinham que ter nossa essência como povo, o momento da aldeia, porque a linguagem de cinema é universal. Mas, eu queria entender como a gente poderia fazer a nossa própria forma de filmar, o estilo de cinema que a gente poderia criar que fosse único também. Porque eu vejo que existem muitas regras no cinema ocidental, como tem que filmar, duração do plano – essas coisas eu fui aprendendo e adaptando para a nossa cultura. Até a forma de pegar a câmera, por exemplo, como as pessoas mais velhas, que são mais tímidas, podem se sentir à vontade também, para que aquela câmera se transforme em uma pessoa da aldeia, sem ser invasivo. Isso eu fui aprendendo e estou aprendendo até agora, pois não é simples chegar a uma aldeia, por mais que você seja de lá, não é simples chegar e filmar, seja uma mulher mais velha ou um líder espiritual.

Até porque a câmera, de alguma forma, intimida também.
O mais delicado (na produção dos filmes) foi mesmo a intimidação da câmera dentro das aldeias. E, também, saber o momento exato de quando as palavras deles estão sendo inspiradas, porque acontece muito isso e pode durar minutos ou instantes. Isso é muito importante, e eu passava isso para as outras pessoas que estavam filmando, porque tem que saber quando filmar e quando parar de filmar. Isso só foi possível porque a gente já convivia com eles (as pessoas da aldeia).

PUBLICIDADE

Mas como foi, então, desenvolver essa marca da sua produção, nos seus filmes?
O tempo e em que momento filmar são a minha marca, eu acho. Porque, por exemplo, a gente marcava entrevista. Mas podia acontecer de marcar e não dar certo. Ou porque a pessoa não estava inspirada para falar naquele momento ou foi fazer outras coisas. Na aldeia é outro ritmo. As oficinas e as produções têm que se adaptar a esse ritmo. A aldeia não pode mudar de ritmo por causa das oficinas. Então, foi dessa forma também que eu fui aprendendo, percebendo as diferenças e entendendo como funcionaria melhor os filmes e as oficinas.

Como não mudar a rotina de uma aldeia com uma câmera?
Acho que explicar bem o processo. É muito difícil não mudar, mas a gente conseguiu, eu acho, pois falamos, na verdade, que ia acompanhar a aldeia. Não era a aldeia que ia acompanhar a gente. Os realizadores, com a câmera, no dia a dia, que ia acompanhá-los. E perceber, sem perguntar, para os entrevistados, o que ele ia fazer antes mesmo de fazer. Ele (o cineasta) tem que perceber o que está rolando na aldeia, o que a gente vai fazer. Sempre aprendendo dessa forma: usar zoom, chegar em uma distância boa, nem tão perto nem tão longe, dar espaço e, ao mesmo tempo, continuar sendo você, que é aldeia. Chegar, de manhã bem cedo, dar bom dia, e os mais velhos vão entender que você está sendo respeitoso com eles. Acho que é também não mudar quem você é. Não é chegar e pedir para filmar. É ir aos poucos, bem natural. Eu conseguia bem. Mas não é fácil.

Acho interessante que, em “Transformação de Canuto” tem realidade e ficção. Como foi perceber a necessidade das duas coisas?

Na verdade, esse filme foi construído durante muitos anos e com pouco recurso. Rodamos em 2016. E só foi finalizado em 2023. As entrevistas eram bem documentais, eram de pessoas que assistiram a história real, que viram o caso, os próprios parentes. E a gente queria que elas fossem o mais natural possível. A gente tinha um roteiro, mas coisas novas iam acontecendo. Tinha que ter alguma encenação para que as pessoas tivessem mais ideia do que foi realmente. Só o documentário, que ia ser mais a fala, o depoimento das pessoas que viveram ali e contaram, não ia dar conta. A história é complexa e, dessa forma, não ia ser tão compreensível. Foi por isso que a gente misturou as duas coisas.

PUBLICIDADE

Eu vi que a história da transformação de Canuto era um certo tabu na aldeia, né? Por quê?
Porque os Guarani têm umas coisas de menção ao mistério que têm que ser respeitado. E essa história era um tabu, ninguém queria contar porque foi uma situação triste e trágica. E eu sempre escutei essa história, eu perguntava para minha mãe e ela contava um pouco de noite para eu dormir cedo, para eu ficar com medo. E eu fui crescendo e essa história me fascinava mais: o que será que aconteceu, por que ele se transformou? Quando eu tive acesso às câmeras, eu pensei que podia contar essa história no filme. E em 2009 eu falei sobre ela com o Ernesto, sugeri de fazer um filme no futuro, e ele também ficou fascinado. E começamos a escrever o roteiro. Ele estava morando em Pernambuco, eu no Sul, então foi à distância. E começamos a mandar para alguns editais para aprovar o filme, mas não estava ainda tudo pronto. E não sabíamos muito bem como ia fazer, porque era um filme complexo. Em 2014, foi aprovado o edital em Pernambuco e em 2016 rodamos o filme. Porque primeiro tinha que amadurecer também a aldeia. Era uma história que ninguém queria contar. E eu fui várias vezes falar que a gente queria entender melhor a história, como foi, e o motivo da transformação, como era Canuto, como foi a infância dele. E minha mãe contava mais detalhadamente, outras pessoas também.

E as pessoas aceitaram contar mesmo?
Então, parecia que estava tudo bem. Mas a gente foi com uma equipe grande. E ficou tenso de novo (ri). Era uma equipe grande, as pessoas achavam que a gente estava investigando a morte, não que estava contando. Então, a gente explicou que era um filme como qualquer outro filme. E aconteceu de aceitaram, depois de horas explicando à comunidade.

O tempo é determinante na história, né?
O tempo e as coisas que aconteceram, porque o personagem principal ia ser o meu avô. A gente queria entrevistá-lo, porque ele foi o protagonista, que tentou curar a pessoa que estava se transformando, para reverter a situação. Só que, durante a filmagem, ele ficou doente e faleceu. E foi um choque para a aldeia e para mim, pois a gente nem sabia se ia continuar o filme e como continuar. Depois, nos decidimos pela continuação e pelo término. Por mais que a gente não tinha conseguido filmar o meu avô, a gente já alguns tinha materiais, arquivos de 2009 e 2010, e a gente usou esse material. O filme não fala somente da transformação da pessoa que vira onça, é da transformação da aldeia mesmo, de nós como diretores, do espaço também. E acho que isso também levou tempo, tem a transformação também do próprio filme. Então, foi necessário o amadurecimento, da montagem mesmo, teve toda essa transformação, que passou por várias mãos que colaboraram. A gente meditou um pouco também. O filme talvez poderia ter ficado pronto antes, mas talvez não seria o mesmo filme. Tem que respeitar o tempo mesmo, de sentir. O tempo guarani. O filme tem um tempo Guarani. Existe também uma certa obrigação de lançar, depois de seis anos de produção do filme, mas isso foi importante, ter todo esse tempo para mim e para o Ernesto.

PUBLICIDADE

Muitos filmes, sobretudo os que falam sobre povos indígenas mas que não foram pensados por eles, romantizam os povos e mostram uma outra realidade. Acha que esse movimento que tem acontecido, dos indígenas realizando, muda a percepção das pessoas?
As coisas acontecem realmente quando as pessoas estão preparadas para entender e receber. A gente, desde sempre, não queria fazer um filme que romantizasse os povos indígenas. Queria mostrar os problemas e as lutas reais, o território, a caminhada, como a gente enfrenta a sociedade que está invadindo o território. Então, como a gente, os Guarani, se adaptam, porque os nossos antepassados têm contato há muitos anos. E por que nós nos mantemos fortes? Porque a gente vai se adaptando. A gente tem que entender como funciona a sociedade não-indígena, as mudanças. E os nossos filmes são isso: uma luta política, uma reivindicação sem querer romantizar. Eu via muitos os filmes indígenas e parece que a sociedade brasileira se acostumou com esse estilo e quer ainda romantizar e imaginar o indígena de 1500. Não querem o indígena de verdade. Acham melhor dessa forma do que o indígena que reivindica suas terras. E não é o tipo de filme que a gente queria. E é isso que eu vi, com esse filme, quando a gente lançou no festival de Brasília, as pessoas queriam dar a opinião, mas parece que não entendiam muito bem, pois é um filme que problematiza. Não é fácil de digerir e ter opinião rapidamente. É um filme para refletir, ver duas vezes, e tem 2h10 também. O nosso tempo. E eu sabia que ia acontecer isso, porque o brasileiro é assim. Diferente na Europa, porque lá eles entendem mais. Os europeus estudam tudo sobre a nossa história. Os brasileiros, não. Eles não estudam aqueles que estão aqui e vão estudar a Europa.

Mas esses filme ajudam a mudar isso, né?
Sim. Vai levar um tempo, mas é o caminho. Sempre é bom a conversa e o debate. Esse filme é como uma missão cumprida, nesse sentido.

E como foi mostrá-lo na aldeia?
Antes de mostrar para fora, a gente mostrou na aldeia. Eles ficaram emocionados, das crianças aos mais velhos, porque o filme é uma memória, um registro para a aldeia, o que ficou. Aparecem no filme pessoas que já faleceram, mas que, de alguma forma, deixaram suas mensagens. Acho que a aldeia entendeu assim, ficaram muito agradecidos de ter o filme que, para aldeia, é muito importante ficar registrado. Além do filme, tem várias imagens registradas que ficam para a memória.

 

Sair da versão mobile