A estrutura do samba de hoje se deve à herança musical de Geraldo Pereira. Embora há muitas lacunas para o resgate de sua infância, um dado é certo, ele é juiz-forano. Muito embora não tenha deixado rastros de sua história contada, o compositor nunca deixou de mencionar sua cidade natal. Filho de Clementina Teodoro, parteira e rezadeira, vivia na Zona Rural e chegou a trabalhar como candeeiro de boi. Nascido onde o mato parece não ter fim, e levado ao Rio de Janeiro para “onde o morro acaba”, sua biografia imprecisa é costurada a partir de retalhos de história oral.
Regis da Vila, presidente do Instituto Cultura do Samba em Juiz de Fora, que neste ano completa 15 anos, pesquisa sua história desde 1999 e está coordenando, junto à Associação de Moradores de Torreões, um evento neste sábado, 21, em celebração ao centenário de Geraldo Pereira, nascido no mesmo dia de São Jorge, 23 de abril. O evento “Das fazendas de Torreões à consagração nacional” acontece das 13h às 19h na sede da associação.
Regis conta que o pai de Geraldo era calangueiro e veio da região onde se constatou o nascimento de Geraldo. Dessa forma, acredita o sambista que Geraldo descobriu no calango a origem de sua música. “A região de Torreões é de calangueiros, então foi por isso que ele conseguiu implantar o samba dentro do calango no Rio de Janeiro. Eu não tenho dúvidas disso, porque meu pai era da região e era calangueiro.”
O único parente vivo de Geraldo Pereira em Juiz de Fora é Carmindo Pereira (Toco), sambista conhecido por sua atuação no Partido Alto. Ele é primo de primeiro grau do compositor centenário e filho de José Pereira e Rosária Gonçalves.
Há cerca de cinco anos, os historiadores Elione Guimarães e Francisco Pinheiro estavam no prédio do Arquivo Histórico de Juiz de Fora, quando tiveram contato com o registro de nascimento de Manoel Araújo, irmão mais velho de Geraldo Pereira, possivelmente filho de um relacionamento que Clementina teve antes de conhecer Sebastão Maria, pai de Geraldo. Manoel Araújo foi quem levou Geraldo para morar no morro de Santo Antônio, conhecido como Morro da Mangueira. “Tempos atrás, quando trabalhava no Arquivo Histórico, uma pessoa que estava fazendo uma pesquisa sobre Geraldo Pereira ligou para o lá buscando informações. Não consegui achar o registro de nascimento do Geraldo, mas encontrei o do irmão dele (Manoel Araújo), que o levou mais tarde para o Rio de Janeiro. A hipótese, segundo consta registrado no documento do irmão, é que a família seja de São Francisco de Paula, onde hoje é Torreões. Naquela época, era comum a certidão de nascimento ser somente o batistério (comprovante de batismo da Igreja Católica), por isso alguns registros civis não são encontrados”, explica Francisco Pinheiro, que irá participar da roda de conversa “O Mineiro na consolidação do samba nacional”, que acontecerá a partir das 15h com participação do Instituto Cultura do Samba.
“Polícia no Morro”
Geraldo teve pouco estudo formal, sua escolarização não passa do primário, no entanto, sua forma desconstruída de compor faz com que seja associado ao surgimento do samba-sincopado. “Mesmo sendo uma pessoa apenas com o primário, ele conseguiu fazer as quebradas do samba, aquele samba sem comparo, com vários ritmos, totalmente diferenciado na forma de cantar, isso me chama muita a atenção”, ressalta Regis da Vila.
A maneira como cantava seus sambas e formava os acordes influenciou na criação de outros gêneros brasileiros, como a bossa-nova. Inclusive, Geraldo foi um ídolo declarado de João Gilberto. No período em que começava a se envolver com a música no Santo Antônio, escrevendo para a Unidos da Mangueira, Geraldo chegou a ter algumas lições de violão com Cartola. E, apesar de seus sambas serem de exímia riqueza para a música carioca e nacional, Geraldo passou a sua curta, porém marcante vida, trabalhando como motorista de um caminhão de limpeza urbano.
Sua simplicidade era carregada de vivência. Dessa forma, na primeira metade do século XX já trouxe em uma de suas letras um tema tão recorrente ainda hoje. A canção “Polícia no Morro”, tem letra precisa e crítica, revela a truculência da presença da polícia na comunidade e do medo da escola de samba não sair. (Termina com a sujeira/Toma o apito e a bandeira/Acaba com o carnaval). Em 1951, quando Getúlio Vargas queria instituir o Ministério da Economia, Geraldo tirou sarro da história na criação de um de seus principais sambas políticos. (Seu presidente, / Pois era isso que o povo queria / O Ministério da Economia / Parece que vai resolver).
O Rei do Samba
Em 1999, Gerson Rosa, ator que interpreta Geraldo em seu filme biográfico, passava por problemas e havia decidido que não desfilaria no carnaval de Juiz de Fora daquele ano, ele cantava na Escola de Samba Unidos do Ladeira. Regis da Vila, conta que encontrou com Gerson e o incentivou a ocupar a avenida. “Eu passei por ele e falei: ‘Canta o samba na Avenida Brasil, quem sabe no final do desfile uma outra escola te contrata. E quando ele acabou, o José Sette o convidou para fazer o filme do Geraldo Pereira, aí de lá para cá nós começamos a fazer a divulgação deste trabalho.” A película, recém-restaurada pelo Museu da Imagem e do Som, de São Paulo, já foi exibida em diversos bairros da cidade, mas pela primeira vez será levada a Torreões.
“Há uma dúvida muito grande do local preciso de onde nasceu Geraldo Pereira. Até muitas pessoas de Torreões estão surpresas em saber que ele é de lá. Era um sonho nosso fazer esse evento na comunidade, para elevar a autoestima daqueles moradores e mostrar que é de lá que vem as origens de um artista, que se fosse vivo faria 100 anos e será comemorado no Brasil inteiro”, diz Regis.
Outra suposição de onde Geraldo Pereira provavelmente teria morado enquanto viveu a infância em Juiz de Fora vem de uma declaração do João Leonel, compositor do samba “Rio São Francisco”, da Escola Unidos dos Passos. Regis relembra de Leonel afirmando que Geraldo morou, após sair da região de Torreões, em uma casa que fica na Rua Três Ilhas, número 8, no Bairro Santa Luzia. A Tribuna foi até o endereço e encontrou uma vila de casas preservadas. “Apesar de a gente sempre ouvir o discurso de que ele teria saído de Juiz de Fora com 12 anos, Jesus também saiu aos 12 anos da sua terra natal e nunca foi esquecido”, defende Regis.
Homenagem
O evento em homenagem ao centenário de Geraldo Pereira, neste sábado, começa com uma recepção do coordenador geral Regis da Vila, seguida da exibição do filme ‘O Rei do Samba’, com uma apresentação do ator Gerson Rosa cantando músicas de Geraldo. Após este momento, o Instituto Cultura do Samba fará uma apresentação de dança do mestre-sala e porta-bandeira, antes de receber Francisco Pinheiro para a roda de conversa que antecede uma roda de samba com figuras da Velha Guarda de Juiz de Fora. Alguns destes serão homenageados em uma solenidade que destaca também personalidades que contribuíram para a história da comunidade de Torreões. Já na segunda-feira, 23, Regis e outros parceiros da música irão realizar uma roda de samba em homenagem a Geraldo Pereira, com clássicos como “Escurinha” e “Acertei no milhar”, oferecendo ao público um feijão do Dia de São Jorge. “Todo 23 de abril ele fazia uma roda de samba com uma feijoada para os amigos”, relembra Regis contando a forma como o compositor e sambista brasileiro comemorava seu aniversário.
A Rádio Batuta, do Instituto Moreira Sales, lançou uma série de 10 podcasts em homenagem ao centenário de Geraldo Pereira, com comentários e pesquisa de Pedro Paulo Malta e Rodrigo Alzuguir. O primeiro capítulo relata as origens “De Juiz de Fora à Mangueira”.
“Das fazendas de Torreões à consagração nacional”
Evento para comemorar o centenário de Geraldo Pereira. Neste sábado (21), das 13h às 19h, na sede da Associação de Moradores de Torreões
Roda de samba
Com feijoada. Dia 23, às 19h, no restaurante Cardápio Mineiro (no Mercado Municipal – Praça Antônio Carlos s/n – Centro)