Ícone do site Tribuna de Minas

Filme sobre Roza Cabinda estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes 

Filme conta a história de Roza Cabinda, uma mulher escravizada, com deficiência e que teve sua liberdade negada, precisando recorrer à justiça para se libertar (Foto: Divulgação)
PUBLICIDADE

A voz de Roza Cabinda, mulher escravizada por Henrique Halfeld, ecoa, pela primeira vez, a partir de sua própria história. Uma história ainda tão negada pela cidade onde viveu e com tão poucos registros. “A ação de liberdade dela, que é um documento da justiça e está no arquivo municipal, na verdade, é o único documento que atesta que Roza Cabinda existiu”, enfatiza Swahili Vidal, o cineasta que, a partir de um documento, ficcionalizou a vida de Roza e a transformou em um enredo de encontro e vitalidade. O filme “Cabinda” estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes na sexta-feira (26), às 19h, no Cine-Teatro, dentro da Mostra Regional. Um fio que, agora, começa a ser desenrolado pela manutenção da voz de Cabinda e pela perpetuação de sua história, para que nunca mais aconteça. 

Swahili, inclusive, não conhecia a história de Roza. Quando foi lançado o edital Murilão, do Programa Cultural Murilo Mendes, da Funalfa, ele não tinha nenhum projeto cinematográfico em andamento. Mas queria começar um do zero para inscrever no edital. Começou a pesquisar alguns assuntos sobre a própria cidade de Juiz de Fora. “É uma coisa que a gente, no meio, faz muito. Quando está sem projeto que se adéqua ao edital, faz uma pesquisa e, de repente, descobri alguma coisa que a gente estava procurando, mesmo sem saber”. Até que achou Roza, ficou sabendo que a cidade tem um medalha feminista que leva seu nome, passou a procurar ainda mais registros, até chegar na ação de liberdade. 

PUBLICIDADE

Mesmo que pouco, a ação de liberdade foi o suficiente para que um enredo começasse a ser montado em sua cabeça. Com o projeto aprovado, ele partiu para a concepção. Convidou Fernando Valério para a produção, junto com ele, e para direção de atores; Tiê Fontoura para assinar o roteiro; André Monteiro na direção de arte e André Ribeiro no som; Pedro Pipano na fotografia e Rebeca Thaís para montar, também junto com ele. Para viver, Cabinda, Danyela Silvério, que dividiu o palco do Cine-Theatro Central, onde o média foi gravado, com Ciça Liberdade, que interpreta Madalena, a mulher que foi escravizada ainda neste século. 

PUBLICIDADE

Além de Roza, Madalena entra na história para promover um diálogo. Mostrar como histórias tão distantes, em termos temporais, estão tão próximas, no que diz respeito à forma como seus corpos foram explorados. “Foi um desafio. A gente teve que imaginar uma história de ficção, baseada em uma ação de liberdade real. A gente não está contando exatamente, ou documentando, a gente está se baseando em um documento. Juntamente com a história da Madalena, a gente fez um paralelo. São duas histórias muito parecidas: duas mulheres negras, em Minas Gerais, trabalhando no serviço doméstico, por volta dos 40 anos quando elas tiveram a oportunidade de se libertarem, as duas tiveram ajuda externa – no caso da Roza, teve ajuda dos filhos do Fernando Halfeld, em uma briga familiar, e a Madalena teve ajuda dos vizinhos que denunciaram para o Ministério Público”, narra Swahili 

Para essa história, eles fizeram uma espécie de uma peça, como gravar uma cena de um teatro. “Foi uma decisão artística, no sentido de viabilizar uma produção audiovisual que abarcasse esse tema. A gente está falando do encontro de duas mulheres que nunca se conheceram, em tempos diferentes. Uma história histórica que remonta o século XIX. A gente teve que pensar em uma forma de adaptar isso e fazer isso nos dias atuais”, justifica o diretor, que completa reforçando que a escolha ainda ajudou a chegar na mensagem que eles queriam: “Que muito se passou, mas as duas histórias que se separam por 150 anos são muito semelhantes”. 

PUBLICIDADE

Viver Roza e viver Madalena

Danyela, que vive Roza, conta que o trabalho, durante todo o processo do filme, foi de diálogo e pesquisa, que partiu não só do diretor e do roteirista, mas também das atrizes, exatamente pela falta de registro. “E, em cima da ação de liberdade, a gente discutia muito sobre as questões sociopolíticas da época, as questões raciais, o que isso reverbera na sociedade hoje para a construção dessas personagens. Tinha dias que os nossos ensaios eram para a gente falar sobre questões raciais, e a gente ia apontando coisas que iam acontecendo, reverberando isso para dentro do texto e percebia como isso estava perto”, conta. 

Danyela Silvério e Ciça Liberdade dando vida à Roza Cabinda e Madalena em histórias que se cruzam apesar da separação temporal (Foto: Divulgação)

Imaginar como seria Roza foi um trabalho árduo. “Cada vez que nós construímos uma partitura cênica, imaginávamos onde aconteceria isso nesse determinado momento”. Roza foi uma mulher escravizada, com deficiência e que teve sua liberdade negada. Recorreu à justiça na esperança de, finalmente, libertar-se. Danyela conta que pensar nessas questões foi fundamental para dar vida a essa mulher. “E o texto de Tiê foi importante porque ele deu voz a muitas das nossas discussões e deu voz aos poucos documentos que a gente tinha”, completa. 

PUBLICIDADE

No caso de Madalena, por ser um processo contemporâneo, Ciça tinha a imagem dela, a voz e conheceu sua história contada por ela mesma. Mas, ainda assim, considera que o processo foi desafiador. “Os ensaios foram árduos. Eu mergulhei profundamente na pesquisa histórica, vivenciando todas as emoções complexas ligadas à trama, o que me fez compreender a importância de contar essa história com respeito e autenticidade”. E esse é, inclusive, seu primeiro trabalho audiovisual, o que fez com que se entregasse ainda mais. 

“O olhar dela sobre ela e a luta dela”

“Cabinda” dá voz a essas mulheres que não tiveram voz. Saber que Madalena tinha, inclusive, dificuldade de se comunicar quando foi resgatada, comprova a necessidade de se levantar essas histórias. “No filme, a gente tem essas mulheres falando sobre elas mesmas, das suas penúrias, das suas aflições, mas da sua vontade de ser livre, como que isso, até hoje, ainda é uma questão na nossa sociedade atual. A gente coloca Roza e Madalena frente a frente e se pergunta: será que todas essas histórias são mesmo tão distantes?”, questiona Danyela. 

Swahili ainda reforça que esse processo de apagamento do povo escravizado foi imposto, e, por isso, individualizar essas histórias é um processo importante nessa construção da memória. “São tão poucos os registros de pessoas escravizadas, que a gente consegue humanizar histórias individuais dos africanos que vieram para o Brasil, que, quando a gente encontra alguma, merece muito ser destrinchada, ser contada. Quando as pessoas escravizadas chegavam ao Brasil tiravam deles toda a identidade, eles eram obrigados a se tornarem outras pessoas que não eram, para facilitar a dominação. Então, quando encontramos histórias que conseguimos individualizar, e tirar elas desse escopo só de pessoas escravizadas, a gente tem que fazer o possível para poder contar e espalhar isso.” 

PUBLICIDADE

“‘Cabinda’ é um grito. Um grito de falar: olha, a gente já passou da hora de tratar as nossas questões raciais, das nossas mulheres pretas, das nossas pessoas pretas. Isso é uma marca muito recente, uma ferida muito aberta ainda. O filme foi de muita responsabilidade, muito trabalho, muito afeto, e muita vontade de colocar o nome dessa mulher tão importante em evidência e sobre o olhar dela. Chamando as nossas mulheres pretas a conclamar o olhar dela, não sobre o olhar do outro, do branco ou da opressão. O olhar dela sobre ela e a luta dela”, finaliza Danyela.

Outros filmes juiz-foranos em Tiradentes

Outro filme que chega às telas da Mostra de Cinema de Tiradentes, também abordando as violências pelas quais as mulheres passam, é “Meio Éden”, filme de Clara Estolano. O curta vai ser exibido no sábado (27), a partir das 17h30, no Cine-Teatro Aymoré. Apesar de falar sobre violência doméstica, a obra não deixa isso tão claro nas imagens, mas, sim, na forma como Ádina, a personagem principal, vive isso, enquanto faz suas tarefas rotineiras. Clara trabalha o espaço entre o trauma e a consciência dele: o estado de choque que a mulher entra antes de a ficha, finalmente, cair. Além disso, ela não é simplesmente uma vítima, e é isso que o enredo trata de trabalhar. 

“Meio Éden”, de Clara Estolano, discute a questão da violência doméstica (Foto: Divulgação)

O filme, que estreou no Primeiro Plano, no último ano, faz parte, em Tiradentes, da Mostra Formação, que seleciona filmes produzidos, de alguma forma, no ambiente universitário. E Clara comemora a seleção: “Considero a universidade um lugar de experimentação e crescimento, ou, pelo menos, foi como esse espaço funcionou pra mim. Por isso, acho fundamental a existência de oportunidades para exposição do trabalho universitário, não só por uma questão de visibilidade dos futuros ingressantes do mercado, mas também porque acredito que o universitário tem visões particulares a oferecer, marcadas pela sua posição como estudante da arte que busca produzir”. E segue: “Sinto que não só o resultado desse projeto está sendo reconhecido, mas também toda a jornada de que ele resultou, cada ideia necessária para sua finalização. Ver o filme circulando é como ver um filho ganhar o mundo, com a sensação de dever cumprido”. 

PUBLICIDADE

Um novo olhar sobre Minas Gerais

Como “Cabinda”, dentro da Mostra Regional, também vai ser exibido o curta de animação “Diamantes de Acayaca”, dirigido por Fernanda Roque e Francisco Franco, da Inhamis. O filme, realizado através de recursos do edital Fec 01/2022 Exibe Minas, da Secretaria de Cultura de Minas Gerais, aborda uma lenda mineira, como o edital pedia. Eles resgataram o conto que conecta o Império Inca com Minas Gerais. Um dos pontos de vista da lenda é que uma princesa inca teria se apaixonado por um soldado espanhol e eles fugiram para Diamantina. 

A animação “Diamantes de Acayaca” dirigida por Fernanda Roque e Francisco Franco, resgata o conto que conecta o Império Inca com Minas Gerais (Foto: Divulgação)

Francisco ainda conta que, além do próprio mito, eles também beberam da fonte de um romance de Joaquim Felício dos Santos, sobre a origem mística da cidade de Diamantina (Arraial do Tijuco), que conta a história a partir do olhar dos indígenas e seus embates com os invasores portugueses. “Na interseção das duas narrativas nasce nosso curta, que propõe um debate acerca do processo da colonização da América Latina, e é narrado por mulheres em Quíchua, Puri, Português e Kimbundu.” E, a partir da curadoria da Mostra Regional, percebe-se que essa seleção privilegiou exatamente esse olhar crítico sobre Minas Gerais. 

“Nossa história precisa ser contada com coragem e é preciso desconstruir a ideia de uma Minas Gerais de sombra e água fresca. A mineração em Minas Gerais conserva os mesmos traços desumanos do processo colonial na América Latina”, reforça Francisco. “Fazer filmes em Juiz de Fora e chegar ao público via festivais é um compromisso que assumimos há mais de 10 anos e vamos seguir em frente.”

Leia mais sobra cultura aqui.

Sair da versão mobile