Alê Abreu aprende fazendo, de fato. O animador e diretor cinematográfico paulista, homenageado nesta edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, que começou nesta quarta-feira (19), sabia desde o início que era esse o seu caminho. Formado em Publicidade e Propaganda, encontrou a possibilidade de se dedicar, ainda nessa área, à animação – o que foi importante quando decidiu se entregar totalmente à produção cinematográfica.
Ele acredita que a soma de tudo é o que faz o artista. E foi isso que possibilitou sua criação cinematográfica. Seu longas são reconhecidos em todo o mundo. O primeiro, “Garoto cósmico”, o segundo “O menino e o mundo”, indicado ao Oscar em 2013 e vencedor de diversos prêmios, e o mais recente, “Perlimps”, além de seus curtas, serão exibidos durante a Cineop, de forma presencial e on-line.
Ser homenageado é, também, revistar a própria história. Olhar para o passado e entender o caminho percorrido. E é isso que Alê Abreu fez nesta entrevista à Tribuna: narrou seus percursos e suas escolhas e ainda antecipou seu projeto futuro, em que recupera o universo de “O menino e o mundo”. Mas, sobretudo, deixa claro: “Eu acho que o grande homenageado da Cineop é mesmo a animação brasileira, que perseverou por tantos anos e está encontrando o seu caminho”.
Tribuna: Como foi que o desenho entrou na sua vida?
Alê Abreu: O desenho é a base e o início de tudo. É o que dá sentido à animação, no meu caso. Eu fui uma criança que não parou de desenhar. E o desenho sempre foi para mim uma forma de me expressar e me relacionar com o mundo. De colocar minhas vontades, minhas fraquezas, meus medos. O desenho sempre foi intermediando minha vida nesse sentido. A animação chegou depois. Quando eu tinha 12 anos. Eu fiz um curso de animação no Museu da Imagem e do Som (MIS) em São Paulo e nunca mais parei.
E o cinema?
Eu queria fazer cinema. Porque eu era animador. Não queria fazer outra coisa na vida. Eu sou desenhista, sobretudo. Mas cinema tinha poucos cursos, naquela época. E animação não tinha curso superior. O curso de cinema era na Universidade de São Paulo (USP). Eu não consegui passar. Mas passei em Comunicação Social. E segui. Eu já sabia o que eu era, e isso não ia mudar o que eu de fato queria ser. Durante o período em que eu estudei Comunicação Social, eu produzi o meu primeiro curta, “Sirius”. Junto com o TCC, eu entreguei o meu primeiro curta para o mundo e que foi lançado no MIS.
Mas, depois, você foi trabalhar com publicidade. De alguma forma, a publicidade entrou em conflito com seu lado artista?
Eu acho que tudo vai formando a gente. Tudo o que a gente vai vivendo, a gente tem que tirar o melhor lado dessas histórias que a gente vive. Em um momento, eu tive medo de perder essa chama da arte. Porque acontece de fazer vários desenhos em vários estilos na publicidade. E eu ficava pensando no meu. Eu pensava quando o Alê vai poder falar no desenho dele, na forma de desenhar. E eu sempre mantinha um momento do meu dia livre para poder exercitar o meu traço, para poder me encontrar. Porque quando a gente fala de um artista jovem, acho que o grande desafio é mais que encontrar o traço dele, é encontrar a voz dele, a poética dele. Toda a carreira de um artista é mediada por essa busca, que é muito dolorosa às vezes de encontrar a sua voz no mundo. O seu lugar como artista no mundo.
A gente percebe que cada filme seu traz um traço. Como isso acontece?
A coisa mais legal é que eu começo cada projeto com a ideia de que eu não sei. Eu tenho um processo um pouco conturbado e maluco de criação, em que eu vou juntando peças, juntando textos, coisas que vão surgindo ao meu redor, seja um desenho ou um diálogo, eu vou guardando isso em pastas e em algum momento isso vai se organizando até que chega em um ponto em que eu tenho lá quase um início de um projeto que eu não sei muito bem o que é, mas que eu já tenho ali diversas peças que foram se juntando e formando um primeiro caminho, um primeiro fio a ser puxado. Mas puxar esse fio é principalmente não saber, porque eu não posso ir com respostas ali na ponta da língua. Eu quero entrar nesse universo e quero que ele me mostre o que tem ali. Eu tento ficar no meio dessa bagunça pelo maior tempo que eu conseguir, nesse caos. Esse caos é importante para encontrar ali as respostas menos óbvias. É como você ir para a estrada, o cara que anda de moto e vai para a estrada para sentir o vento no rosto. É esse momento para mim: não saber para onde eu vou.
E como foi lançar “Garoto cósmico” ainda dentro da publicidade?
“Garoto cósmico” foi quase o final dessa primeira fase do meu trabalho. É a conclusão de um processo que você tem de aprendizado. Em “Garoto Cósmico” eu tenho muitas referências claras que eu estava ainda absorvendo, e eu vejo claramente as referências ali. Tentando um trabalho de linha clara para tornar até mais fácil a produção. E foi um processo super difícil de sete anos para fazer. Eu já tinha mudado o meu desenho e era obrigado a ficar desenhando aqueles personagens da maneira como eu desenhava lá no primeiro ou no segundo ano, o que foi muito difícil. Mas, ao mesmo tempo, foi um momento de muito aprendizado. De me entender como artista de animação, de ver surgirem as Leis de Incentivo que, até então, não existiam. Eu estive sempre em um lugar de acompanhar a história do cinema brasileiro.
Exigiu muita coragem, então.
A minha coragem para lançar o “Garoto cósmico” foi motivada pelo amor de querer fazer, a vontade de querer fazer um desenho animado, de fazer meus longas, mirar nos meu mitos. A minha vida não teria sentido se eu não fizesse isso. Era uma criança querendo. O meu primeiro curta, “Sirius”, foi baseado em uma história em quadrinhos que eu fiz com 13 anos. E eu comecei a produzir com 17. Sempre dessa vontade imensa, desse amor imenso me movendo. O amor é o motor dos braços.
E por que “O menino e o mundo” fez tanto sucesso?
“O menino e o mundo” é um filme que dialoga de muitas formas com questões que estavam e que estão ainda em ebulição no mundo todo: o trabalho, o nosso futuro, a ecologia. Ele vai por vários caminhos. O medo latente de crianças chegando na fase adulta, pensando o que vai ser a vida, principalmente de jovens que vivem no subdesenvolvimento. Então, ele dialogou até com o espírito dos tempos. O “Menino e o mundo” também por não ter o diálogo facilitou muito ele correr pelas diversas línguas. É uma língua universal, que é o português ao contrário e que não quer dizer nada. É um filme que fala através da poesia. Tem uma potência ali na poesia do filme e uma linguagem, principalmente pensando na animação, que pede pela liberdade da animação.
Depois de tudo isso, fazer “Perlimps” foi mais fácil?
Fazer “Perlimps” foi mais fácil em alguns aspectos mas muito difícil em outros. Foi um filme difícil de fazer pela técnica que a gente usou, uma animação muito mais complexa. Os personagens muito mais cheios de detalhes e cenários, exigiu uma equipe maior, muito mais especializada. Foi o filme mais difícil de ser feito na minha vida. Não pretendo nunca mais passar por aí, por esse caminho. Mas, por muita luta, a arte do filme se preservou. Essa dificuldade de realização dele não ficou marcada no filme.
Mas como isso impactou seu trabalho?
Eu estou fazendo o que me parece que vai ser o mais fácil. Não por ser o mais fácil. Mas talvez pela experiência do “Perlimps”, eu estou nesse momento fazendo um retorno ao universo do “O menino e o mundo”. Eu tive um sonho no meio da produção do “Perlimps” com questões que ficaram por explicar no “O menino e o mundo”. E eu decidi retornar a esse universo. E eu estou nesse momento trabalhando no storyboard de um derivado do “O menino e o mundo”. É o mesmo universo, porém não são os mesmos personagens. E buscando ampliar aquele universo, aquele lugar onde se passa a história do menino, aquele tempo, e expandir tanto no tempo quanto na geografia, para encontrar outras histórias.
Você disse que “Garoto cósmico” seu desenho já tinha mudado no final do processo. Mas, agora, você volta em “O menino e o mundo”. É esse o seu desenho, então?
O desenho que mais me dá prazer de fazer e que se eu saio desenhando ele acontece, é o do “O menino e o mundo”. Eu parti desse desenho para seguir em frente nesse caminho que eu estou e que eu encontrei agora com o filme novo. Praticando esse desenho que foi me levando, naturalmente. O “Perlimps” foi quase um desenho que foi uma exigência do próprio projeto. Ele precisava ter mais três dimensões, precisava ser mais colorido. E não tinha como fugir. Era quase impossível fazer um “Perlimps” com um desenho de “O menino e o mundo”. Foi quase uma parada naquele desenvolvimento, naquela caminhada que eu estava. Até hoje eu penso se foi o melhor caminho ou não, por tudo o que eu sofri no “Perlimps”. Mas o filme está aí lindo, e eu gosto tanto quando eu assisto, que eu sinto que é uma coisa que eu tinha que ter passado por ela.