Olhares atentos. “A peneira do tempo é muito útil para preservar a sensação”, comenta Maria Bitarello, tradutora, jornalista e escritora. A digestão das vivências, feita de forma lenta, deixa ainda, no corpo, todos os sentimentos guardados no fundo da memória. Bastaram duas semanas de esvaziamento da mente para ela, a Maria, colocar no papel, quase sete anos depois, tudo o que viveu no Benim, na África Ocidental, parte do reino Yorubá, com o povo de Ketu, em 2009. Os escritos ainda ficaram na gaveta por algum tempo. Até que, agora, deram origem ao seu terceiro livro, “Vermelho-Terra” – diferente de todos.
A juiz-forana, desde 2012 radicada em São Paulo, estava na França quando foi convidada para ir ao Benim, com uma equipe, filmar um documentário em Ketu. Sua função, nesse caso, era fotografar a experiência, os ritos do lugar. Apesar de transitar entre várias artes, ela conta que “escrever é o que fazia com mais naturalidade”.
Por causa da sua experiência e crescimento entre nações e com mudanças constantes, ela desenvolveu a capacidade de “observar as coisas e entender como elas funcionam. Uma das coisas mais fascinantes da vida é observar as outras pessoas existindo em um espaço e entender como elas funcionam. E é uma coisa cada vez mais rara e que tinha que ser mais valorizada”. Essa característica, que, inclusive, a fez gostar de fotografar e escrever, foi essencial durante os 40 dias de viagem, dentro de uma realidade nova e até então desconhecida. “Você está num lugar do qual não faz parte, não tem o mesmo ritmo, então fica muito à deriva. É muitíssimo desconfortável, mas se você souber sobreviver à experiência e aproveitá-la, você se torna um observador muito privilegiado numa situação dessa. Tem só que respirar e conseguir ficar calmo, porque você não vai poder ir embora no dia seguinte.” Essas percepções da vida na cidade, com um olhar estrangeiro e branco, são o que moldam e constroem todo o livro.
O seu jeito de aproveitar foi desenvolvendo, posteriormente, a exposição “Iya Shango” na Galérie Goutte de Terre, em Paris (2011), com as fotos tiradas na África. Algumas delas compõem o “Vermelho-Terra”, inclusive na capa do livro. Durante a experiência, Maria sequer escreveu uma linha sobre o dia a dia. Além das fotos, ela tinha a “memória insuportável”, como fala, e as sensações que ficaram. Esse tempo de maturação foi importante para que ela conseguisse, finalmente, entender o que passou por lá. “Eu não sei o que estava acontecendo muitas vezes. Até hoje eu não sei. Por isso até tenho dificuldade em explicar umas coisas.”
‘É como se eu não soubesse nem por onde entrar’
O tempo todo, Maria Bitarello deixa claro que esses relatos pessoais, feitos em primeira pessoa, foram construídos a partir de suas próprias vivências, e apenas isso. Escrever sobre e decidir publicar foi um trabalho à parte. “O que eu posso oferecer é um relato de uma pessoa que realmente esteve em um lugar muito importante para a cultura que, também, é parte da nossa herança, da nossa origem. É como se eu não soubesse nem por onde entrar. Eu demorei muito (a escrever), e tive muita cautela com isso também. Depois é que eu fui entender que esse relato tinha valor só por existir, só pelo lugar.”
“Vermelho-Terra” foi publicado pela La Petite Ferme, editora independente de Maria, que já foi repórter da Tribuna. Ele faz parte da coleção Trilhas, pensada para comportar os livros de literatura de viagem. A ideia partiu de Ulisses Belleigoli, sócio na editora, escritor, editor do livro e amigo, que percebeu o padrão dela em escrever textos sobre viagem e entendeu isso como um fator que estava a seu favor, junto com a capacidade de observar e “estar à parte”.
Ulisses, inclusive, é assunto recorrente na conversa, feita de maneira virtual. Ela conta que os dois se desenvolveram como humanos e artistas juntos. Ele foi um dos responsáveis por fazê-la se enxergar como escritora. Foi ele, também, quem a incentivou a publicar seu primeiro livro, “Só sei que foi assim” (2014), que reúne algumas de suas crônicas escritas até então. O segundo, também de crônicas, “O tempo das coisas”, foi lançado em 2018. O “Vermelho-Terra” é fruto de uma vontade que ela tinha de sair da crônica. Ela brinca que estava cansada de sua voz narrativa. “Minhas crônicas têm uma tendência mais ensaística: através de um episódio tentar extrair uma coisa maior daquilo. E esse livro (“Vermelho-Terra”) juntou um pouco as características que eu já carregava na escrita.” É como se fosse um grande ensaio, ou uma grande crônica, ou um diário maturado, que precisou do descanso para nascer “justo a tempo”, como ela fala no prefácio.
O nome do livro foi, para Maria, uma felicidade. No próprio “Vermelho-Terra” ela fala que em Ketu tudo é vermelho, e até as coisas vão ficando nesse tom com o passar do tempo. Além disso, o Benim é telúrico, e foi a junção das duas coisas que deram origem ao nome.
Quanto mais pessoas, melhor
Toda a construção do livro só foi possível com a ajuda de outras pessoas. Primeiro porque ele foi desenvolvido por seis mãos: as de Maria, as de Ulisses e as de Lia Rezende, que fez o projeto gráfico. Segundo porque, para seu lançamento, Maria elaborou um financiamento coletivo, que durou um mês e acabou no fim de maio. Ela conta que, apesar de ter sido um dos processos mais cansativos, porque exigia atenção integral, foi também agradável, porque é uma experiência muito mais “diluída”. “O lançamento do livro é uma culminação de um dia só muito intenso. Você trabalha um tempão antes e depois tem toda uma sobrevida do livro que você não vai viver, só tem aquele dia, aquele momento. Já a campanha me permitiu viver isso de uma forma diluída durante um mês”.
‘A gente publica livros para se livrar deles’
Apesar de ser lançado agora, durante a pandemia, Maria fala que “Vermelho-Terra” nada tem a ver com essa realidade, além de ser uma possibilidade de viajar e romper barreiras enquanto elas estão fechadas. No entanto, foi logo no começo da pandemia que ela encontrou tempo para parar e voltar com seus projetos pessoais. “Quando já tinha gastado essa necessidade de ficar quieta, eu comecei a abrir espaço mental, depois de dormir muitas horas. Aí começou a abrir para outras coisas que eu queria fazer, mas não tinha tempo real, nem simbólico.” Entre outros projetos engavetados, “Vermelho-Terra” surgiu como uma segunda opção, que acabou vingando. “A gente publica livros para se livrar deles. Chega uma hora que você não aguenta mais.” Para ela, a publicação é uma fase maravilhosa, quando não tem mais jeito de mudar o livro e outras pessoas vão somando nas percepções.
Além de ser um livro que abre novas perspectivas sobre outros territórios, que, inclusive, muito tem a ver com a nossa cultura brasileira, como ela mesma diz em “Vermelho-Terra”, ele fica como um registro de uma mulher, em uma sociedade onde ela tem pouca ou nenhuma voz. A maior voz, o motivo da viagem, era a mãe de todos, a guardiã oral, Iya Shango, uma iyalorixá, a sacerdotisa do terreiro. Por isso, pontua que é importante que mulheres escrevam mais, “não necessariamente sobre o feminino, mas sobre qualquer coisa”.
Com o fim do pré-lançamento, feito através do financiamento coletivo, os livros podem ser comprados diretamente com a Maria, em suas redes sociais (@mariabitarello) ou por e-mail (editoralapetiteferme@gmail.com). Aos poucos, “Vermelho-Terra” chega às livrarias de São Paulo e Juiz de Fora.