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Tempo Punk: como a cena local rodou o Brasil e o mundo

CAPA1

(Reprodução)

Charles ao meio Vietnã na frente capa do Botinada
Cena rodou o mundo: Vietnã (em primeiro plano), Charles e Massa atravessam a Avenida Rio Branco em fotografia de 1983 (Humberto Nicoline/Acervo TM)
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Pareciam duas orelhas felinas aquele cabelo espichado dos dois lados da cabeça. Maquiada em tons de roxo naquele domingo abafado, Virgin chamou atenção da antropóloga Janice Caiafa, que fez questão de registrá-la em seu “Movimento punk na cidade – A invasão dos bandos sub” (Jorge Zahar Editor), livro publicado em 1985, menos de dois anos depois do encontro numa das noites mais marcantes para o punk fluminense. Acompanhada de Helder Hertung (Don Helder), Virginia Guilhon Loures, a Virgin, assistiu ao derradeiro show numa pequena boate na Rua 24 de Maio, a Dancy Méier. “O show tem hora para acabar. Não se pode ir até muito tarde, é a condição para se ter esse domingo por mês. Naquela noite, já se sabia que o Dancy estava para ser vendido e que esse point ia logo acabar. E acabou. Aquele foi o último Dancy Méier para os punks, depois de seis meses desde a primeira noite em 12 de dezembro de 1982. Desci as escadas e ainda encontrei um grupo conversando alto na calçada. Aos poucos eles se foram”, narra Janice Caiafa, pesquisadora e professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Exatos três meses antes de as portas se fecharem no subúrbio carioca, em março de 1983, Virgin e Don Helder foram fotografados dançando no “Rock voador”, num recém-inaugurado Circo Voador. Acima do título “Todas as diferenças dançam juntas na primeira noite ‘punk’ do Rio”, em destaque, o registro com a dupla juiz-forana em primeiro plano confundia-os com integrantes da Lixomania na edição do dia 29 de “O Globo”. “Nunca as diferenças dançaram tão juntas como na noite de sábado. Nunca tantas diferenças estiveram juntas. Nunca se dançou tanto. Lotado, o Circo provou, mais uma vez, que é um dos mais importantes espaços de convívio e animação cultural da cidade. Lado a lado, das 21 horas às 5 horas da manhã de domingo, conviveram, dançaram, cantaram, namoraram, comeram milho, acarajé e pipoca, beberam café e cerveja, quase todos os espécimes da população jovem desta cidade. Dos donos da noite – um núcleo reduzido, mas unido, de uns cem punks autênticos, muitos vindos de São Paulo em caravana, com pouquíssimo dinheiro, acampados no próprio Circo – a seus antagonistas históricos, os hippies velhos, de longos cabelos, olhar beatífico, batas indianas e colares de Rajneesh ao pescoço”, escreveu Ana Maria Bahiana, jornalista que em diferentes veículos acompanhou o desdobramento do movimento.

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Edição de 29 de março de 1983, de “O Globo”, retratava noite punk no Circo Voador, exibindo cena em que juiz-foranos dançavam em primeiro plano (Reprodução)

Punk do interior

Eram escassos os punks. Mas eram grandes esses punks. Na segunda reportagem da série “Tempo punk”, a representatividade e a potência da cena local demarcam o lugar de prestígio de uma cena que, mesmo circunscrita pelas montanhas, fez-se ouvida nas principais capitais do país e pegou a estrada da memória como no documentário “Botinada: A origem do punk no Brasil”, de Gastão Moreira, que, a despeito do silêncio acerca do movimento interiorano, utilizou-se de diferentes imagens feitas em Juiz de Fora. A capa do DVD, inclusive, reproduz uma das fotografias que Humberto Nicoline fez para a primeira reportagem publicada sobre o movimento na Tribuna, há 35 anos.

“Há muitos indícios de que a cena daqui tinha uma importância na ligação do eixo Rio-São Paulo. Tanto é que houve a presença de bandas paulistas e cariocas nos festivais de rock (de 1983 e 1985). Muita gente ia daqui para São Paulo atrás de discos. Ia, também, para festas no Rio. Numa época pré-internet, a informação circulava com dificuldade nesse sentido. E é interessante pensar que Juiz de Fora, uma cidade de interior, com uma mentalidade provinciana em alguns aspectos, acompanhou o que acontecia nas duas maiores cidade do país. Havia um pioneirismo nisso. Principalmente considerando que a cena punk local antecede a de Belo Horizonte”, pontua o historiador e pesquisador Jimmy Klaus.

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Na minha terra tem punks. Os punks que aqui cantavam. Não cantavam como lá. Segundo Jimmy Klaus, a origem social e econômica da primeira geração de punks juiz-foranos não era a mesma da vista nas duas maiores capitais do país. “Em São Paulo e no Rio de Janeiro, a cena era muito ligada à cultura de periferia, como é hoje o rap. E a organização se dava através de gangues de bairros, muitas vezes. Era um movimento mais ligado à classe operária. Aqui tinha essas pessoas também, mas a maioria da galera era da classe média, o que facilitava o acesso à informação, a aquisição de discos. Era mais fácil interagir na comunidade global”, comenta Klaus, codiretor do documentário “Aos berros”, em parceria com Davi Ferreira e Aline Freitas, sobre o nascedouro da expressão local.

Do contra

Lançado em 2006, documentário “Botinada: A origem do punk no Brasil” estampou na capa imagem da cena juiz-forana, em registro de Humberto Nicoline (Reprodução)

Ainda que houvesse abismos no cenário nacional, havia um elo mais forte, presente no discurso. “Eles não se vitimizam. Quando o punk diz que esse mundo é uma droga, que tem uma tristeza profunda, ele não se vitimiza, mas expõe uma raiva, que o transforma em sujeito potente, pronto para agir em seu próprio benefício. E isso é extremamente positivo”, analisa a pesquisadora e historiadora Ivone Gallo, pós-doutora em Teoria Literária pela Unicamp, que entre as décadas de 1990 e 2000 acompanhou uma ocupação punk numa estação ferroviária de Campinas.

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“(O movimento punk) não é objeto de investigação de análises historiográficas. Temos trabalhos em sociologia, em antropologia, mas não do ponto de vista da historiografia. Isso porque na maior parte dos casos os historiadores trabalham com uma noção de análises de processos históricos concluídos. Mas minha intenção com a pesquisa era ver temporalidades dentro do próprio tempo presente. Pensei, então, em fazer uma análise de cunho social e cultural de uma ocupação que acontecia no presente”, aponta Ivone Gallo, reivindicando uma presença maior do movimento na narrativa cultural e social da história nacional. “Acho que de tempos em tempos irrompem figuras assim na história. Não é a primeira vez: tivemos, na Inglaterra, aqueles homens sem senhores, pessoas que tomavam atitudes que não era da ordem. Durante o processo da Revolução Francesa houve vários pequenos grupos que se insurgiram de maneira totalmente fora da defesa do status quo, do politicamente correto. No punk, temos um conjunto de coisas que definem atitudes que mudam comportamentos: a indumentária que se usa, a expressão musical e escrita, os grafites, os cortes de cabelo, tudo isso são iconoclastias, vão contra os ícones impostos pela sociedade que lhe é contemporânea. O punk, tanto nos anos 1970 quanto nos anos 1990, chamou atenção para algumas questões. E isso é essencial, porque é importante que a linguagem, as movimentações respondam aos anseios de mudança.”

A minha história eu mesmo escrevo

“Jornal Punk” trouxe na capa, em 1984, série de selos produzidos pelo artista visual César Brandão, que três anos depois integrou a 19ª Bienal Internacional de São Paulo (Reproduções / Humberto Nicoline)

Estava tudo errado. Para o mal das notícias que não os representavam, o remédio dos fanzines. Logo na edição de número zero do “Aos Berros”, publicado em agosto de 1983, o veículo independente desmentia notícias que davam conta dos estragos causados no gramado do estádio do Sport durante o primeiro Festival de Rock de Juiz de Fora. Segundo o jornal, cujas cópias eram feitas em mimeógrafo e vendidas por Cr$ 200,00, o grupo punk só assistiu às primeiras apresentações, antes de “ver as merdas das outras bandas”. E terminava: “Foda-se a imprensa do sistema!”. “Como os jornais não expressavam a ideia dos punks, não entendiam como eles funcionavam, eles começaram a falar por eles mesmos. O primeiro fanzine, ainda da década de 1970, era sobre um show dos Ramones, já que os jornais não falavam da banda, e quando falavam era de forma pejorativa. A ideia era ter uma voz própria, o que é o símbolo do movimento, que queria se representar, mostrando para todos sua visão de mundo. Eles são isso tanto na concepção visual quanto no fato de andarem em grupo, compartilhando ideais”, afirma a jornalista Susana Azevedo Reis, autora da dissertação de mestrado “‘Faça você mesmo’: o fanzine como representação do movimento punk em Juiz de Fora”.

Primeiro número do fanzine “Inimigos do Estado” valorizava discurso anarquista (Reproduções / Humberto Nicoline)

Limitados em tiragens que raramente excediam cem exemplares, os fanzines locais circulavam nos rastros dos jovens que se vestiam de preto, ostentando correntes, jaquetas pesadas e cabelos excêntricos moldados com sabão. “Eles tiravam cópia e vendiam no Bar Redentor, na parte baixa da Getúlio. Quando não conseguiam vender, trocavam ou doavam mesmo. Eles diziam que o impacto na cidade não era tão grande, porque circulavam no meio deles”, pontua Susana, cuja pesquisa foi apresentada ao programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em fevereiro deste ano. Desenvolvidas com a técnica da bricolagem, as publicações reforçavam o lema do movimento. “Eles pegavam pedaços de jornais, revistas, e davam novas histórias àquilo. Era tudo manual, muitas vezes datilografado e colado por cima de outro texto. Tinha figura recortada e desenhada”, observa Susana.

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Politizado, fanzine “Alerta Punk” estreou questionando a política econômica praticada nos anos de regime militar (Reproduções / Humberto Nicoline)

“O ‘Faça você mesmo’ existia no sentido de estar produzindo, contra a indústria cultural. Os próprios punks organizavam os próprios shows, faziam as próprias revistas, gravavam os próprios discos, sem depender da estrutura das grandes mídias. Eles formavam uma rede solidária, na qual o punk daqui dorme na casa de um punk de São Paulo quando vai para lá. E o de lá dorme na casa de um punk daqui quando vem para cá”, destaca o historiador e pesquisador Jimmy Klaus, acenando para a noção que avolumou o movimento. “A gente pensa esses grupos como algo isolado, mas não é bem assim, porque eles tecem relações. Jovens que não foram ou são punks, mas que tiveram contatos, passam a tecer suas identidades a partir disso. Há uma contaminação positiva na criação de novos valores. Então, a importância dos punks está em difundir e fazer cultura. Dizer que é uma doença infantil, ou que são fascistas, ou que são pré-políticos é de muita falta de sentido”, critica a pesquisadora e historiadora Ivone Gallo.

A contaminação provocada por fazeres como o do fanzine, segundo Susana Reis, é percebida ainda hoje, ao alcance do cursor. “Os fanzines trazem a possibilidade de as minorias se expressarem. Hoje talvez os vejamos nas plataformas on-line”, comenta a jornalista e pesquisadora. Também são percebidos nas caixas de som, de acordo com Jimmy Klaus: “O rock caminhava para algo muito elitizado. Eram grandes bandas, músicos virtuosos, de grande estudo, fazendo shows em grandes festivais. Era o tempo do rockstar. O punk pôs o pé no chão, simplificou a música, reduziu os eventos. Hoje, com a crise da indústria fonográfica, vemos que o punk teve uma grande influência no que chamamos de música independente. Muitos grupos levam a ideia do ‘Faça você mesmo’. E é importante ainda por mostrar para os jovens que é possível se expressar artisticamente, tocar as pessoas, sem ter que ser um músico virtuoso, de grande formação, com acesso aos melhores estúdios e instrumentos. É possível se expressar de forma legítima com muito pouco. Esse aspecto minimalista é um grande legado”.

Edição de agosto do fanzine “Aos Berros” rebatia notícias da Tribuna, do “Diário Mercantil” e do “Última Hora” (Reproduções / Humberto Nicoline)

O sufoco nos dias para não viver dias sufocantes

Uma vez passou todo o fim de semana levantando o muro e carpindo o quintal da delegacia. Adolescente, aos 14 anos, andava de camburão. Ficava preso em cela com assaltantes e assassinos. Dormia em estações. Passava noites nas ruas. Os pais não esquentavam. E Wilson Alviano Júnior enfrentava o caos por momentos de diversão na Mauá, região metropolitana de São Paulo, dos anos 1980. “Ninguém vinha em casa. O cotidiano mata a gente. Meu pai tinha dificuldade em ter uma relação com nossa família, e eu quase não o via. Minha mãe era uma pessoa muito dedicada, mas o trabalho de casa era exaustivo para ela. Então, não havia muito espaço em casa. Não tinha diálogo que fosse atrativo. E aí encontrei um universo ligado à música, à rebeldia. E a impressão que tinha de adolescente era a de conseguir dominar o mundo com aquilo”, conta o filho de um cotidiano embrutecido pela escassez e pelos silêncios.

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“Para mim, o punk parecia ser uma alternativa de vida, num momento em que não me encaixava em lugar algum. Para quem nasceu no ABC Paulista, aquela região cheia de montadoras e metalúrgicas, o destino dos meninos parecia ser apenas: fazer Senai, estudar meio período, trabalhar meio período e entrar numa montadora porque pagava bem. Isso era muito tedioso para mim. E o espírito da época, naquele fim de ditadura, era o de procurar caminhos. O punk era a opção para ter uma vida que não fosse tão sufocante, miserável em termos humanos. E as famílias da maioria de nossos conhecidos eram mal-estruturadas, tinham problemas com pais alcoólatras, muitos irmãos, então encontramos o acolhimento que não havia em casa. Não era algo amoroso, mas uma parceria, uma cumplicidade que não encontrávamos em casa”, recorda-se Wilson, na distância temporal de seus 52 anos e física de sua recente mudança para Juiz de Fora, onde é professor da Faculdade de Educação da UFJF.

Testemunha do surgimento do punk no ABC Paulista, Wilson Alviano, hoje professor da UFJF, integrou Brigada do Ódio, banda precursora, e gravou com Olho Seco, que fez show no primeiro Festival do Rock de Juiz de Fora (Fernando Priamo)

Hoje dá aula e encontra gente de cabelo colorido, moicano, piercing, tatuagens. “É uma atitude tranquila agora. Mas para a gente, nos anos 1980, rompia com tudo quando fazia tatuagem ou cortava o cabelo moicano. E na periferia pesada, quando tiravam sarro, invariavelmente saíamos na porrada.” E escutar “The kids are alright” (1979), de The Who, no som do irmão de um amigo era um rompimento também. Sex Pistols, Sham e Ramones também. Aos 14, Wilson estava imerso. E por um fio com o sistema. “Apesar de eu ter nascido na Zona Leste de São Paulo, mudei muito cedo para o ABC. Minha criação punk foi lá. O Ulster era uma banda de São Bernardo do Campo que tocava com capuz. E Ulster fica no norte da Irlanda, onde teve muitos atentados terroristas. Falar disso no final da ditadura tinha um significado revolucionário. O pessoal do Ulster era um pouco mais velho, cerca de quatro ou cinco anos. Mas quando temos 14 anos, é uma diferença muito grande”, lembra.

‘O enfrentamento deve ser em outro nível’

A admiração transformou-se em força, que se transmutou em exercício. “Eu e uns colegas de Mauá, a periferia da periferia, montamos uma banda, que primeiro se chamou Infratores e, depois, Brigada do Ódio. O Luis, que tinha tocado no Ulster e tocava guitarra no Olho Seco, apareceu em um de nossos ensaios porque tinha ouvido falar na gente. Ele gostava de som extremado, muito rápido, barulhento, minimalista. Quando ele chegou, estávamos em trio. Aí ele pediu para cantar. E deu certo. Ninguém gostava do som que a gente fazia, nem mesmo na cena punk, porque era muito acelerado. Mas o Fabião, do Olho Seco, gostou e disse que tinha um monte de restos de gravação do Olho Seco, o que dava para gravar um lado. Pagamos estúdio, gravamos num dia só, bancamos o acetato para prensar o vinil e as mil cópias iniciais. O Mauro, que era guitarrista do Garotos Podres, fez a capa na camaradagem, e lançamos o álbum”, resume o baixista Wilson os dois anos que separam a criação da banda e a gravação do LP split com uma das bandas punks de maior expressão na cena nacional.

Wilson com a capa do disco “Olho por olho”, do qual participou como baixista da banda Olho Seco em 1987 (Fernando Priamo)

Em 1987, dois anos depois da parceria, com a Brigada do Ódio parada, Wilson foi convidado para tocar baixo no Olho Seco. No ano seguinte gravou o álbum “Olho por olho”, lançado em 1989, um ano antes de Wilson sair da formação. “Sem o Fabião e com a banda descaracterizada, o público recebeu mal a mudança. Mas já esperávamos”, conta, aos risos, o homem que nos anos finais da década de 1980 montou um sebo de LPs independentes, depois passou a representante de uma cooperativa que reunia os maiores selos independentes do país. Com o revés de uma crise econômica batendo à porta, ele trabalhou em bares até decidir aproveitar uma bolsa para cursar educação física. “Era uma briga pesada: era preciso se manter, mas sem querer se enquadrar”, diz.

De volta às salas de aula, encontrou outro significado de ser punk. “Quando entrei para o curso, comecei a encontrar pessoas advindas da discussão da educação e que tinham um posicionamento político interessante, que comungava com o que a gente, intuitivamente, pensava em relação ao punk, como uma alternativa de vida, uma mudança social, uma quebra no sistema. Escolhi educação física porque lutei durante um tempo, mas me encantei pelo trabalho em escola. Por coincidência, também comecei a dar aula em Mauá e fiquei mais de dez anos trabalhando numa escola de lá.”

Concluído o mestrado na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e o doutorado na Universidade de São Paulo (USP), Wilson Alviano foi aprovado como professor numa cidade que sequer conhecia, mas já ouvira falar, por onde passou a banda da qual fez parte, numa das mais aclamadas apresentações do 1º Festival de Rock de Juiz de Fora. “O show em Juiz de Fora, em 1983, tem um significado muito forte, porque marca esse momento de interiorização do movimento”, comenta ele, ex-baixista da Olho Seco, que rotineiramente era pichada nos muros da cidade. Pelos corredores da faculdade ou nos trabalhos de extensão acadêmica, Wilson encontra o garoto que saía de casa às sextas e retornava aos domingos com os ouvidos cheios de um rock acelerado, nervoso e inconformado. “Mantenho essa relação que tenho com o excluído, com o diferente, com o marginal, essa compreensão mais global da sociedade”, diz.

Cada um de um lado: capa do Brigada do Ódio em split LP com Olho Seco (Reprodução)

“Hoje é possível se aprofundar em várias vertentes de discussões, porque o mundo está mais complexo, ou porque só hoje conseguimos ver o mundo mais complexo. Naquele tempo, a questão da ditadura era tão forte que não aprofundávamos os debates. Eu tomava uma geral toda semana. E quase todos os meses passava uma noite na delegacia. Tudo porque estava com um visual diferente. Nas bandas de rock, todo mundo ia preso. Agora mudaram as bandeiras porque avançamos. Não digo que hoje está bom, porque ainda temos um monte de problemas, mas avançamos. Se temos um mérito é o de termos construído espaços”, comenta ele, testemunha do crescimento do movimento de Carecas do Subúrbio, da repressão dos skinheads, de uma violência que ajudou a calar a geração que ergueu o punk brasileiro.

“Hoje percebo que as coisas não são tão fáceis de entender como certo e errado, apenas. Tem um abismo entre os dois. A sociedade é de uma complexidade tão grande, que era ingênuo achar que dava para mudar facilmente. Mas é possível sensibilizar e fazer a diferença em alguns lugares. Por isso não acho que é muito legal fazer baile da saudade toda hora e ficar rememorando. A gente tem que ser pertinente à nossa leitura cognitiva de agora, entendendo o mundo como ele está agora. Não posso me comportar como se tivesse 14 anos. Antes, quando achávamos que as coisas estavam ruins, descontávamos quebrando alguma coisa pública ou sendo rebelde com a polícia. O enfrentamento deve ser em outro nível, de outra forma.”

Anarquista, graças a Deus

O adeus foi em alto e bom som. E não haveria outra forma de fechar as portas da Transmontana, senão com rock. “Fizemos uma festa de encerramento da pensão. Chamou ‘Transmontana nunca mais’. O prédio era sinistro: tinha um porão cheio de quartinhos, mais 30 quartos em cima, uma lenharia e uma garagem enorme. Dividimos a festa por lugares. Na lenharia botamos os grupos punks. Na parte de cima, num salão gigantesco onde era o refeitório, colocamos a (banda) Patrulha 66 para tocar. Nos quartos, que também eram grandes, fizemos exposições. Foi maneiraço. A festa foi marcante”, recorda-se Chico Amieiro, filho do casal de portugueses – Lucília e Manoel Joaquim – que comandavam a casa cuja demolição deu lugar ao Mister Shopping, na Rua Mister Moore. “Como a casa ia ser jogada abaixo, os punks começaram a dar bicudas nas paredes, e elas caíam. Estava todo mundo doidão. Lá pelas tantas, virou uma zona, com os quartos todos ocupados, uma doideira, mas normal, nada agressivo”, lembra.

Íntimos do lugar, os punks chegaram tempos antes da festa de despedida. “A pensão da mamãe tinha uma garagem. Ela, então, fez um botequim para ele, para que ficasse com os amigos e não enchesse o saco dela. Só que o papai adoeceu, e eu peguei o bar dela. Virou point. O Vietnã ia para a pensão, chegava todo arrumadinho do trabalho. Depois entrava no banheiro, pegava o sabonete e esticava o cabelo moicano. Então, ia até a mamãe e perguntava: ‘E aí, dona Lucília, tá legal?!’. Ela morria de rir”, conta Chico, cuja substituição rendeu-lhe a coragem necessária para abrir um bar para chamar de seu. E que os punks chamaram de nosso.

Anarquista, Chico Amieiro abriu as portas para o discurso politizado dos punks e para os shows de rock no prédio do DCE (Leonardo Costa)

Estudante de jornalismo na UFJF, Chico conheceu o anarquismo. “Era um movimento de esquerda. No finalzinho da ditadura, a universidade estava muito politizada. E fizemos um grupo que lia (Mikhail) Bakunin e outros clássicos anarquistas. Chegamos a lançar chapa para concorrer ao DCE, chamava Merda (Movimento Estudantil Revolucionário do Amanhã). Debatíamos o anarquismo e íamos a congresso. Tinha uma representação legal no Brasil, como ainda tem. Aqui é que deu uma refluída. Invadimos a Casa de Anita nos anos 1990, mas houve um racha e abandonamos. Era para ser um centro de estudos anarquistas”, diz ele, que durante os anos 1980 foi convidado para palestrar sobre a filosofia para os punks locais. Era para ensinar, mas acabou aprendendo.

Ao surgir a possibilidade de ocupação do bar do DCE, juntou-se ao amigo e compadre Julio Cezar Fernandes Pinto, o Julinho, para ocupar o endereço na esquina da Avenida Getúlio Vargas com a Rua Floriano Peixoto. “As mesas eram velhas, de lata, com um ‘A’ bem grande pichado no meio. Era anarquista. Foi o bar que engrossou novamente o movimento punk na cidade. A gente começou a fazer festivais, e aquilo virou o point”, rememora, pontuando os filmes que exibiram e os lançamentos de livros que sediaram. A anarquia, contudo, também tomava conta do negócio. “A gente abandonava o balcão e ia beber. Esquecia do bar”, conta.

Ao lado da irmã Maninha, da então esposa Márcia e dos amigos punks Hélder (Don Helder) e Virginia Loures (Virgin), Chico investiu na diversão alheia. “Resolvemos profissionalizar o bar. Pintamos tudo, colocamos TVs para passar filme, fizemos uma pista de dança. Era uma superestrutura. Aí virou NAC (Núcleo de Ação Cultural). Durou mais três anos, e saímos. Fui abrir um restaurante na Marechal Deodoro (o Amieiro, em cima do Bazar São João). No início de 1990, fui para Portugal. Trabalhei muito em cozinha lá. Quando voltei, fui fazer o (curso de gastronomia do Hotel Escola) Grogotó, em Barbacena. Estou nessa de cozinha há mais de 20 anos. Ultimamente, eu dava aula no programa Pró-Jovem, de qualificação profissional para a garotada.”

Aos 59 anos, pai e avô, Chico não desligou o som. Mantém na casa onde vive, no Bairro Santos Anjos, centenas de CDs que grava após fazer o download de discos pela internet. “Ouço Sex Pistols, Ramones, Black Flag. Escuto desde músicas da década de 1950 norte-americana até essas bandas novas”, conta, para em seguida enumerar: “Joni Mitchell é ótima, é uma contestadora americana. Tom Waits também. Carlos Careqa, já ouviu falar? Ele fez um disco sobre Tom Waits. Sérgio Ricardo, que é um cara das décadas de 1960 e 1970. Adoniran (Barbosa), que é básico. Esse outro é do Leste Europeu e faz música cigana.”

Na pele, carrega a marca do que nunca foi apenas passado. No braço está inscrito o “A” do anarquismo. No antebraço, o desenho da Rebordosa e do Bob Cuspe, personagens de Angeli. “Politicamente me coloco mais de esquerda, não sou tão radical como antigamente, de não aceitar o Estado. Ainda tenho as ideias anarquistas. Ainda mais agora, quando vejo essa ingerência toda do estado na vida das pessoas. O meu anarquismo pesa para o lado da liberdade, mais do que para o embate. Admito a porrada, mas na defesa da liberdade. Percebo que o Estado está mais totalizador, mais controlador. Quando acho que preciso votar, voto na esquerda. Quando acho que não preciso, anulo”, pondera, certo de que o presente traz a marca das “bicudas” que destruíram muitas paredes para além das da Transmontana. “O punk continua, é um movimento cultural muito importante e presente. Os black blocs são, basicamente, punks e anarquistas. Eles têm a função do enfrentamento, que é necessário. Não dá para ser vaquinha de presépio, levando porrada quieto. É essencial questionar e defender a liberdade, que é uma postura clássica do anarquismo”, defende, ainda o mesmo. “Hoje faço as mesmas coisas, tomo os mesmos porres. Não sinto o peso da idade. E ainda tenho planos, como ter um restaurante na roça.”

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