“Direito de viver, viajar sem passaporte// Direito de pensar, de dizer e de escrever// Direito de viver, pela sua própria lei// Direito de pensar, de dizer e de escrever// Direito de amar, como e com quem ele quiser.” Como um tratado sobre suas certezas, Raul Seixas descreveu em “A lei” sua alternativa de sociedade. Arthur, o rei, também acreditava em outra saída. Ambos os idealismos se entrelaçam em “Merlin e Arthur – Um sonho de liberdade”, musical em cartaz no Rio de Janeiro que traça a história do monarca lendário entoando as criações do músico maluco beleza. Atualizando a narrativa medieval e atento aos debates da contemporaneidade, o espetáculo se ampara no passado para apontar o futuro.
“Eu não tinha aprofundamento nenhum na obra do Raul (Seixas). Conheço as músicas mais de capa de disco dele, como ‘Metamorfose ambulante’, ‘O trem das sete’, ‘Maluco beleza’, aquele vocabulário dele que todo mundo conhece. Eu era como a maioria. Ele bebeu muito nas lendas arthurianas, junto a Paulo Coelho, eles beberam muito na fonte da magia, da filosofia, das religiões pagãs. Ele (Raul Seixas) fala muito sobre o amor, sobre inclusão, que todo mundo tem direito ao amor, a ser livre. Ele fala sobre ser feliz acima de tudo, sobre amar e ser amado, sobre amar o outro”, defende a protagonista do musical, a atriz juiz-forana Larissa Bracher, intérprete de uma Guinevere capaz de unir as pontas entre ontem e hoje. “A Guinevere tem de contemporâneo o que tem de medieval. De medieval ela tem um ‘status quo’ de que a mulher deveria seguir à sombra do homem. O que tem de contemporâneo, talvez por ter sido reescrita por uma mulher, é estar à frente dos jogos políticos”, aponta a atriz, filha dos artistas plásticos Fani e Carlos Bracher.
Vestidos com as cores prata e dourada, tons metálicos a representar a ideia futurista, em vestes com cortes inspirados na Idade Média, os atores tomam uma cena multiplataforma. Diretor da montagem, Guilherme Leme Garcia teve um sonho no qual resgatava a lenda arthuriana. Na mesma noite também lhe veio a ideia de unir o compositor brasileiro ao clássico literário. Durante o processo, lançou mão do audiovisual, com uma projeção agigantada de Merlin, vivido por Vera Holtz. E também utilizou as artes plásticas, com um cenário que faz referência aos “Bichos” de Lygia Clark. O resultado é um espetáculo grandioso, que já em seu primeiro fim de semana lotou o Teatro Riachuelo, na Cinelândia, região central do Rio de Janeiro. “Vendo o naipe dos atores, a qualidade técnica e a dedicação, nunca imaginei que pudesse fazer, mas fui fazendo os testes, as audições e os diretores musicais, a maestrina, o pessoal das vozes foi me aprovando, e eu fui confiando de que poderia aceitar o desafio”, comenta Larissa, estreando no gênero.
O peso da palavra
Convidada pelo diretor, Larissa Bracher assistiu às audições no Rio de Janeiro como preparadora de elenco. “Não que eu fosse preparar esse elenco, mas sempre gosto de entender o que faz um ator lutar mais por um papel e ganhar, se é uma questão de temperamento ou de ‘physique du rôle’. Gosto de entender como é a estrutura de uma banca”, conta ela, reconhecida tanto por seu trabalho na cena, quanto por trás dela. “O Guilherme estava com uma dificuldade de encontrar o Rei Arthur que ele tinha na cabeça e no terceiro dia de audições me perguntou se eu achava que o Paulinho (Moska) faria um teste. Pensei que não, porque ele havia acabado de lançar CD novo. Mas Paulinho fez o teste, e todo mundo gostou”, lembra, referindo-se ao marido, que tem formação em teatro, mas estreou já como músico, no grupo vocal Garganta Profunda.
Faltava, porém, a Rainha Guinevere. “Um dia, de madrugada, depois de testes e mais testes, o Guilherme Leme (Garcia) perguntou para o Paulinho se eu cantava. Essa é a sexta vez que trabalho com ele, um diretor que confio bastante. Temos essa parceria de linguagens. Ele é um diretor que acredito ter trazido as artes plásticas para o teatro. Ele é um esteta, adoro a linguagem dele, mais formal. Também estou muito feliz por trabalhar com a Márcia Zanelatto (dramaturga), com quem eu fiz meu último monólogo, com direção do Guilherme também, chamado ‘Genderless’. Já queríamos ter feito novos trabalhos juntos”, pontua Larissa, bastante elogiada pela autora do espetáculo. “Ela gosta do jeito que falo o texto dela e eu gosto das palavras que ela usa. Ela é muito sintética, confia muito na palavra. Fala-se pouco e fala-se tudo no que ela diz”, acrescenta a atriz, afirmando sempre voltar ao texto durante seu processo de construção da personagem. “Gosto de voltar para o texto e estudar a origem dos sentidos das coisas que a palavra me dá. Fico muito atenta ao que falo, o tempo todo.”
E o tempo todo Larissa e seus parceiros de cena (mais de 20 atores) falam da urgência de um mundo melhor. “O personagem do Rei Arthur é um progressista, um includente, um cara que tem empatia. Ele abre mão do poder pessoal, unilateral, para convidar as minorias para que tenham voz. Uma transposição contemporânea que a Márcia fez, conversando com o elenco, é que não temos mais cavaleiros da Távola Redonda, e sim grandes homens e grandes mulheres sentados à távola. É o que achei de mais contemporâneo, e estamos num momento fundamental para falar sobre isso. Hoje, se eu pudesse escolher um texto para produzir e fazer, escolheria justamente esse texto. Nada mais cabível, fundamental e imprescindível do que o que o Rei Arthur fala. A Márcia, quando fizemos o monólogo, dizia que era um momento importante para levantarmos a bandeira da diversidade. Isso há dois anos. Agora, ela falou uma coisa muito importante e que me bateu muito fundo: agora é o momento de levantarmos a bandeira mais alta, que é a bandeira do amor”, defende a atriz.
A consciência e o amor
Como é dividir a cena com seu amor, Larissa? “Temos 11 anos juntos e um filho de 8. Pensávamos que poderíamos produzir algo a mais, artístico. Esse era exatamente o trabalho que gostaríamos de fazer neste momento. É um trabalho muito bonito, uma mistura de audiovisual com teatro, música e design. O cenário é uma coisa de cair o queixo. O Paulinho me ajuda com a parte da música e eu o ajudo com a interpretação. Assim chegamos a um meio termo bom”, conta a mãe de Valentim. “A gente vem falando com ele que a mamãe é a rainha e o papai é o Rei Arthur. Falamos muito da Távola Redonda com ele. Criança na idade dele tem muito dessa coisa do imaginário da capa e espada. Na nossa peça não temos exatamente a espada, mas a alusão à arma. Inclusive, temos uma cena do desarmamento muito bonita. Ele está louco para vir e ver os bastidores. Só temos medo de ele ficar um pouco assustado com a figura de Merlin, que a Vera faz usando uma lente branca. Vera é Vera, com aquela energia fora do plano terreno. Quando ela quer levantar a bola, joga no alto. Ela está no vídeo, num telão maravilhoso, com um vozeirão. Mas já falamos com ele que Merlin é a consciência e o amor.”
MERLIN E ARTHUR – UM SONHO DE LIBERDADE
Sexta, às 20h, sábado, às 16h e às 20h, e domingo, às 18h, no Teatro Riachuelo Rio (Rua do Passeio 40 – Cinelândia – Rio de Janeiro), até 26 de maio.