Os sites especializados em turismo apresentam o bairro de Williamsburg, em Nova York, como um local descolado para se conhecer na mais famosa cidade do mundo. Do tipo que merece um dia inteiro para ser conhecido, com seus brechós, bares, restaurantes, feirinhas ao ar livre e a vista da Ponte do Brooklyn. Ou seja, um belo de um hype que esconde uma verdade inconveniente, para utilizar um termo algo fora de moda: o processo de gentrificação pelo qual o bairro vizinho do Brooklyn tem passado nos últimos anos, em que as melhorias urbanas e arquitetônicas, entre outras, tornam a região mais atraente a investidores e gente rica, “expulsando” os antigos moradores e descaracterizando a localidade em termos de cultura e costumes. É esse processo que o fotógrafo Caique Cunha mostra na exposição “Williamsburg: paisagem em transformação”, em cartaz desde o início do mês no Espaço Cultural dos Correios. Com curadoria de Rodrigo Santana e produção da Studio Rico, a mostra permanece no local até 30 de março.
A exposição, que já passou pela própria Nova York, além do Rio de Janeiro, Fortaleza, São Paulo e outras cidades, reúne os registros fotográficos que Caique fez da região entre 2013 e 2016. Utilizando a fotografia analógica, digital e de instantâneos com uma Polaroid, o artista se utiliza – na maioria das vezes – da fotografia em preto e branco para mostrar a realidade e o cotidiano que não aparecem nos sites turísticos, interessando-se pelas mudanças na paisagem de Williamsburg (como nas fases de demolição de um prédio), as figuras que compõem a população local (um judeu ortodoxo, uma trans, mães de família, uma moradora que passeia com seu cão), operários da construção civil e até mesmo a indiferença de quem costuma (ou não) passar por ali. É possível ver, por exemplo, no beco por onde passava um judeu ortodoxo, as veias por onde corre a vida do bairro e que ficam fora dos cartões-postais.
Por obra do acaso
Fotógrafo que dedica sua produção artística aos instantâneos da vida urbana, Caique Cunha descobriu a realidade de Williamsburg em 2013, por acaso, durante uma viagem a Nova York. “Eu conheci o Richard Sandler, um dos fotógrafos que sempre foram minha inspiração, e passamos a trocar ideias, conversar sobre fotografia, e caminhávamos para fotografar”, conta. “Eu cheguei a Williamsburg num dia que saí sozinho e conheci um visual totalmente diferente da ideia que temos de Nova York, fui fotografando cada vez mais e me envolvi com o que via. Por coincidência, eles estavam passando pelo processo de gentrificação observado em Manhattan nos anos 80 e 90. Quando fui revisar o material pensei que poderia nascer um projeto dali.”
Por conta disso, Caique voltou diversas vezes à região, por acreditar que o projeto só faria sentido se ele fosse de longo prazo para que o trabalho tivesse a substância necessária. “Mas não acredito que esteja finalizado, pretendo voltar outras vezes para continuar a registrar as mudanças de hábitos, costumes e no cotidiano das pessoas”, adianta, acrescentando que a ideia é montar um catálogo para ser vendido no segundo semestre “para que as pessoas decidam se vão visitar Williamsbourg ou não.”
Para ele, observar o processo por qual passou o bairro pode ser considerado encantador e assustador ao mesmo tempo. “Eu levo essas mudanças para o ambiente em que vivo, que é o Rio de Janeiro, que passou por essa gentrificação em algumas áreas antes das Olimpíadas. É algo que existe não só em Nova York, mas também em outros países, e que muitas vezes as pessoas não percebem. Serve como um sinal de alerta para perceberem as mudanças no ambiente em que vivem, em que muitas vezes a pessoa acaba sendo expulsa para a periferia por conta do aumento do custo de vida.”
O mundo além do cartão-postal
A escolha do preto e branco para a maioria das fotos serve, segundo Caique, para dar um peso artístico mais interessante às obras, ao mesmo tempo em que remete aos primórdios da fotografia. Para o observador, porém, não deixa de ser um contraponto de realidade frente ao bairro idealizado nas fotos com jeito de cartão-postal. “Quando se fala de um lugar turístico, logo pensamos em algo comercial, que muitas vezes está no imaginário, da ideia do lugar perfeito, do restaurante do momento. Dificilmente vão mostrar o local”, afirma. “As minhas fotografias mostram uma Williamsburg real, onde as pessoas caminham com seus animais de estimação, vivem suas vidas, onde as coisas não acontecem de forma mecânica, como mostrado numa agência de turismo. Esse material mostra a vida como ela é, acontece. É importante conhecer o cotidiano dos lugares que visitamos, o estilo de vida e o que fazem os nativos.”
Caique Cunha não tem o costume de conversar com as figuras retratadas em suas fotografias, mas nem por isso deixou de buscar a opinião com os moradores da região. E a opinião de quem ainda continua na comunidade, em sua maioria, não é positiva em relação ao processo de gentrificação. “A a população local tende a preservar a cultura, os hábitos, mas a especulação imobiliária muda isso muito rápido. Os moradores têm uma reação muito intensa contra essas mudanças. Vi muitas frases de protestos em muros, fachadas, artistas protestando.” Uma das pichações contra o processo de gentrificação de Williamsburg – bairro que tinha como característica marcante a presença de negros e judeus – foi registrada por Caique na exposição.
Histórias urbanas
Caique abraçou a fotografia como ofício para toda vida em 2005, mas antes disso ele revezava a paixão pelos registros visuais com o curso universitário de administração de empresas, visto na juventude como a opção para o futuro. “Não me arrependo de ter feito o curso, até porque ele deu uma base para minha carreira, mas com o passar dos anos vi o interesse pela fotografia crescer cada vez mais. Houve um momento em que tive de optar por um dos dois, e o lado da fotografia falou mais alto.”
E, dentro da arte, a fotografia de cenários urbanos, com todos os seus personagens, foi a que mais interessou. “As ruas são muito ricas, cheias de histórias. O João do Rio escreveu um livro, ‘A alma encantadora das ruas’, que me inspirou a fotografar as ruas e suas histórias, que são tantas, e, ao mesmo tempo, poucos veem aquele momento, e é isso que me cativa”, explica. “Tudo acontece muito rápido, e se não tiver um fotógrafo registrando, documentando, a história se perde, deixa de existir. A fotografia faz com que seja imortalizada.”
Williamsburg: paisagem em transformação
Segunda a sexta-feira, das 10h às 17h30, no Espaço Cultural Correios (Rua Marechal Deodoro 470). 3690-5715. Até 30 de março.