O guia vai caminhando pelas ruínas, apontando para os escombros e falando com os turistas. “Aqui ficava o que chamavam de palco, era onde os atores se posicionavam e contavam histórias para um público….”. Os turistas ficam embasbacados ao saber que houve uma forma de expressão que não envolvia telas, pixels e bits. “Ué, mas por que eles não colocavam no Youtube?”, questiona um deles. No futuro distópico em que a cena descrita anteriormente se passa, o grupo de viajantes é surpreendido pelo fantasma de Gueminho Bernardes, que habita as ruínas do teatro e conta o que havia sido o teatro para um público que jamais teria ouvido falar dele. O espetáculo “Black Mirror JF” é um dos dois inéditos que, ao lado de “Tropa de Elite da Guarda Municipal – Facada na caveira”, comemora os 40 anos de atividade do TQ, em que Gueminho é ator, autor e diretor.
A preocupação expressa na dramaturgia reflete algo que é tangível para Gueminho agora que o grupo teatral chega aos seus 40 anos. “Se a gente não tomar cuidado, vai acabar mesmo!”, afirma, preocupado. “O teatro talvez seja a expressão artística que mais está sofrendo nesse momento. Por um lado, há a censura – porque não tem outro nome, é censura – que alguns espetáculos vêm sofrendo. Isso é porque as forças conservadoras sabem o poder que o teatro tem. De outro lado, a gente está sendo vítima das novas tecnologias: o teatro é a única forma de arte que só existe ao vivo. Para música, tem o Spotify, para filme, tem a Netflix, mas o teatro é só ao vivo. As pessoas estão sendo educadas a consumir cultura em ambientes virtuais. Por isso arrancar a pessoa de casa, na Netflix, e levar para o teatro é uma peleja”, desabafa o artista.
Sem as papas na língua que jamais teve, Gueminho, apesar de reconhecer as dificuldades em se fazer teatro hoje, não mostra sinais de derrotismo. “Tudo ficou muito mais difícil hoje, mas para gente é uma questão superimportante, e que deveria ser prioridade dos órgãos públicos também, resgatar a força do teatro, reeducar as pessoas a frequentá-lo. É fazer com que elas levem os filhos – criança ama teatro! -, tirar dessa porcariada de celular e levar para um contato humano, quente, uma experiência que só este tipo de arte proporciona. O teatro é uma ferramenta que resgata a humanidade de um povo”, afirma. Apesar disso, não vê a tecnologia de forma apocalíptica: “é preciso jogar o jogo”. “Eu fiz até um videozinho e postei no meu Facebook, ensinando as pessoas a irem do pirulito do Parque Halfeld até o Teatro Paschoal Carlos Magno, onde apresentaremos os espetáculos. Acabar com celular, com Facebook, com tecnologia não melhora a sociedade. Temos que questionar como estes recursos estão sendo usados e encontrar maneiras mais humanas de fazê-los funcionar. Mas sempre lembrando que não estamos diante de uma ferramenta neutra. Não é uma chave de fenda. O Facebook definiu o Brexit, o WhatsApp elegeu o Bolsonaro. Esses recursos têm usos políticos e de mercado.”
Na rua, no bar e, quem diria, até no teatro
Em 40 anos de vida, o TQ viu muitas transformações no país, na cidade, no mundo e na própria maneira de se fazer humor. Em todos estes anos, fez teatro nas comunidades, na rua e nos bares, formato que se tornou a marca registrada do grupo e como eles atuaram por quase 20 anos. “A gente usava o bar como um espaço de interação artística, respeitando as características do ambiente. Nessa época, a gente fazia uma cena em que beijava o público. E não era selinho não, o pessoal se empolgava, a gente era novo, lindo (risos), o pessoal se empolgava. Perguntávamos: ‘quem aí quer ser beijado?’ E a pessoa tinha que ir ao palco, escolher quem ia beijá-la e a gente não podia negar. E beijei tudo que é tipo de gente que você pode imaginar, homem, mulher, tudo”, diz ele, dizendo que tal esquete seria impossível de ser encenada hoje em dia. “Era um ambiente de liberdade, sem amarras. Hoje essa cena é impensável, estamos vivendo um retrocesso conservador, transformando a sociedade em um ambiente de repressão. Eu pensava que quando chegássemos a 2019, estaríamos vivendo um momento de crescimento disso, mas voltamos para 1968. Para um tempo de medo, de terror, de barbárie. Porque a polaridade que se vive hoje não é entre direita e esquerda, é entre civilização e barbárie. Não querem senão tolher as liberdades, tirar direitos, praticar verdadeiros genocídios. Não tem conversa com essa gente. Aí vêm com o discursinho de ‘vamos unir o Brasil’, mas não tem como”, argumenta categoricamente.
Os tempos de repressão não são estranhos ao TQ, que iniciou suas atividades em plena ditadura militar. “Era uma época em que a gente tinha que passar os espetáculos pelos censores para o texto ser liberado, mas era uma época em que a gente fazia um teatro muito político, direto nas comunidades”, relembra ele. Depois disso, o TQ ocupou as praças, os bares e só nos anos 2000 foi para o teatro com palco italiano. “Fomos convidados pelo Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas de Minas Gerais (Sinparc- BH) para participar de uma campanha de popularização. Tínhamos medo de nossas esquetes de bar não funcionarem no palco, mas fazer teatro no teatro trazia um conforto muito grande para o público e para a gente também, foi uma ferramenta maravilhosa de relacionamento. E aí foram anos de temporadas de casa cheia no Pró-Música, no (Cinte-Theatro) Central, e ficamos os últimos 29 anos neste ambiente”. Apesar disso, Gueminho explica que o TQ sempre foi mais do que um grupo de teatro, mas um grupo de comunicação. “‘Os invasores’ na Rádio Cidade era líder de audiência, o ‘Paraibuna Connection’ na extinta TV Visão até hoje faz as pessoas me pararem na rua. Fizemos TV, fizemos rádio, nos falamos com as pessoas em diversos ambientes e com muito sucesso.”
‘O prefeito foi preso mesmo!’
Ao longo de sua trajetória, o TQ se transformou, falou ao público de espaços variados, entendeu outras linguagens de expressão. Mas algo se manteve intacto: a prioridade em falar de Juiz de Fora. “Não lembro quem disse isso, mas tem uma frase que diz que quanto mais a gente fala da própria aldeia, mais a gente fala para o mundo”, diz ele, em menção à frase de Leon Tolstoi, “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. “Então a gente sempre esteve conectado com o que acontece com a cidade. Na primeira versão do espetáculo ‘Tropa de Elite da Guarda Municipal’, o prefeito da cidade ia preso por tráfico de mozarela pirata. Na época, ouvi muito ‘ô Gueminho, o (então prefeito Carlos Alberto) Bejani ficou triste, muda isso, ele adora vocês’, e tal. Seis meses depois, o prefeito foi preso mesmo! É o quanto estamos ligados à cidade.” (risos) Isso se reflete na versão atual do espetáculo, “Tropa de Elite da Guarda Municipal – Facada na caveira”, que faz alusão à facada desferida contra o presidente Jair Bolsonaro quando ainda em campanha eleitoral. “Juiz de Fora parece estar predestinada a um protagonismo macabro. Foi a cidade onde foi arquitetado o Golpe de 1964, a cidade em que a atriz pornô de ‘Emanuelle’ perdeu a virgindade (risos)… Você sabia disso? (risos). Mas parece que tem uma coisa, essa cidade. E para comemorar nossos 40 anos, nos lembramos desse grande evento, cercado de mistérios, tem gente que fala que foi armado, tem gente que diz que não houve. Vamos contar nossa versão marcando nossa posição, contando como sabemos contar, com deboche, com humor”, diz ele, que anuncia que o “Tropa” é um espetáculo superpopular, para se “lavar a alma”.
A sintonia, com a cidade e com os tempos, também está em “Black Mirror JF”, em alusão à série da Netflix “Black Mirror”, que trata em linhas gerais das consequências da dependência tecnológica. “Vamos abordar o relacionamento das pessoas entre si nesta era de aplicativos. Temos uma esquete sobre o WhatsApp, uma sobre o iFood e uma que é uma divisão da polícia que é ‘CSI corretor ortográfico’ e prende quem escreve errado no celular. Nessa do iFood, por exemplo, a pessoa está no restaurante, o garçom está ali, mas ela não consegue fazer o pedido porque está sem internet. A última grande cena é ‘o teatro morreu’, que se encerra com um final em tom muito crítico, colocando em cheque também como o poder público atua para contribuir para isso, mas não vou dar spoiler”, diz Gueminho, em plena sintonia com a linguagem das redes, fortuita estratégia para evitar que o futuro distópico da ficção se materialize.
TROPA DE ELITE DA GUARDA MUNICIPAL – FACADA NA CAVEIRA
Dias 19 (às 21h) e 20 (às 20h) de outubro. Duração 80 minutos.
BLACK MIRROR JF
Dias 26 (às 21h) e 27 (às 20h) de outubro. Duração 60 minutos.
No Teatro Paschoal Carlos Magno (Rua Gilberto de Alencar s/nº – Centro). Recomendável para maiores de 14 anos