Os ouvidos do escritor infantojuvenil Marcelo Manhães de Oliveira, 55 anos, estão sempre atentos para escutar quaisquer causos da oralidade. Há um bom par de anos ele viaja pelo interior de Minas Gerais para palestras e dinâmicas em escolas. Então, inevitavelmente, sempre passa por pequenas pousadas e restaurantes. “Sempre tenho a oportunidade de ouvir uma pessoa que tem um causo a contar. Me agrada muito a oralidade do contador de causos, do interior, aquele senhorzinho, aquela velhinha, que estão sempre com a disponibilidade de contar algo. Eu fico muito envolvido”, detalha. O recém-lançado título “Histórias mais que extraordinárias do Tio Malta” (Editora Bicho de Seda, 94 páginas) é justamente uma ode à oralidade do povo mineiro. O livro reúne cinco contos narrados pelo personagem que empresta o nome ao título da obra. “O Tio Malta é uma personificação do contador de histórias.” A obra pode ser encontrada no site do autor, como também em livrarias.
A princípio, escrever histórias infantojuvenis era apenas um hábito em meio à educação dos filhos. “Costumava escrever uma ou outra historinha, principalmente para os meus filhos, que eram pequenos à época. Eu tinha o hábito de inventar historinhas para contar.” De uma inspiração de madrugada nasceu “O Jequitibá” (2005), o primeiro publicado por Marcelo a partir do fomento da Lei Murilo Mendes. “Histórias mais que extraordinárias do Tio Malta” já é o vigésimo da bibliografia de Marcelo – boa parte ilustrada pelo próprio autor. Um dos livros, “Magnólia no mundo do nada” (Bicho de Seda, 2018), inclusive, foi premiado pela Fundação Nacional do Livro Infanto e Juvenil, além de ser selecionado para a Feira do Livro Infanto e Juvenil de Bolonha, na Itália. “O meu forte mesmo sempre foi a linha de literatura infantil e juvenil, muito em função da adoção das escolas. Sejam elas de ordem privada ou pública. Muitas escolas no Brasil inteiro adotam os meus livros”, admite.
Mas “Histórias mais que extraordinárias do Tio Malta” convergiu para que Marcelo pudesse escrever sobre contos da tradição oral, explica. “Até então, nunca havia desenvolvido nada assim basicamente. Todos os meus livros têm aventuras sob temáticas como meio-ambiente e valores humanos. Os meus textos sempre permearam essas histórias de forma lúdica. Mas os casos da oralidade sempre despertaram a minha atenção.” Os contadores de causos juram que as histórias são verdadeiras, como o conto do bicho da carneira, tradicional ao Nordeste de Minas. “É um conto tenebroso. Normalmente, sou mais brando, porque o texto é infantojuvenil. Mas é um conto muito curioso, uma lenda que existe na região e durante anos assombrou as pessoas. A minha sogra, que é de lá, jura de pés juntos que existe”, conta em meio a risadas.
Os cinco contos são ambientados em distintas regiões do Estado de Minas. Causos “misteriosos, assombrosos, inexplicáveis” vivenciados por Tio Malta, um caixeiro viajante que tem um Fusca chamado Hércules. Ainda que o personagem, de certa maneira, apresente claras similaridades com o próprio Marcelo – “conheço Minas de Norte a Sul, Leste a Oeste, inclusive o Triângulo Mineiro por meu trabalho” -, ao menos o nome foi inspirado em um conhecido. “Em um belo dia, ele chegou aqui em casa contando um causo de um determinado bicho que vivia atrás de uma bananeira e assustava as pessoas. Aquela fantasia que ele ouviu de uma avó me inspirou a produzir histórias relacionadas. Foi aí que eu denominei o meu personagem.” Já o título do livro, é verdade, não foi inspirado por um conhecido tão próximo. “Um dos autores que gosto desde a adolescência é o Edgar Allan Poe, que tem um livro de contos que se chama ‘Histórias extraordinárias’. Eu apenas parodiei o nome do livro”, explica.
‘Uma roleta russa’
No entanto, Marcelo não sabia certamente se veria a publicação do livro. O escritor ficou internado por seis dias sob uso de oxigênio devido à Covid-19. A experiência foi compartilhada em artigo publicado no último domingo (16) na própria Tribuna. “Estávamos trabalhando as imagens e o livro estava sendo encaminhado para a gráfica justamente na semana em que tive os primeiros sintomas. Foi exatamente naquela semana”, conta. “É uma doença tão misteriosa que, quando vamos parar lá dentro, é uma roleta russa. Você não sabe se vai voltar vivo ou vai partir. A grande verdade é essa.” Além do lançamento do livro, Marcelo tinha agendada a defesa da tese do doutorado em Letras em curso na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). “Será que vou ver a minha família? O meu livro publicado? Será que eu vou conseguir pegar o meu grau de doutorado? É realmente muito difícil.”
Marcelo se questiona, como revelado no próprio artigo publicado na Tribuna, “pra quê?” teria sido poupado. Indagado se já havia descoberto, ele afirma que ainda busca respostas. “Creio que há sim um motivo para eu estar aqui. Houve pessoas que partiram e tinham um compromisso muito grande… muitos deles tinham um trabalho social muito bacana. Eu não tenho um trabalho social direto.” Mas o próprio trabalho enquanto escritor de literatura infantojuvenil já é algo, ao menos de forma indireta, elucubra o próprio Marcelo. “Se eu fui poupado nesse sentido, se estou no caminho da literatura, pode ser que, através da literatura, eu tenha alguma contribuição maior a dar à sociedade de um modo geral. Mas acredito eu que seja ainda dentro da literatura.” Marcelo voltou para casa a tempo de ver a publicação de “Histórias mais que extraordinárias do Tio Malta”.