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Contadora de histórias destaca importância da oralidade para manutenção da memória

Contadora de histórias
Vanda Ferreira Felipe Couri 5
Para Vanda, que também integra o Grupo Nzinga, contar uma história é oferecer ao ouvinte a oportunidade de conhecer uma cultura desconhecida (Foto: Felipe Couri)
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Amadou Hampâté Bâ foi um escritor malinês do início do século XX. No livro “A tradição viva – História geral da África”, escreveu que “a tradição oral esculpe a alma do homem africano”. Para ele também: “As primeiras bibliotecas do mundo formam o cérebro do homem”. Na África, ainda hoje, a fala é uma divindade. Algumas pessoas, inclusive, são nomeadas em decorrência exatamente de desenvolver essa oralidade e, de certa forma, funcionar como os guardiões da tradição oral, repassando as histórias, os costumes e as vivências de geração em geração.

Na África Antiga, esses contadores de história, os guardiões sábios do passado que guiam também o futuro, eram os griots. Esses mensageiros oficiais, além desse papel de contar as histórias e, com isso, compartilhar ensinamentos, tinham ainda a missão de firmar transações comerciais entre o império e a comunidade. Além disso, a sabedoria era tanta que se acredita que sua palavra poderia impedir ou até cessar guerras, exercendo um papel de diplomata, a seu modo. Foi também Amadou Hampâté Bâ quem disse: “Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”.

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Ainda hoje, existem esses griots que são como essas bibliotecas ambulantes. Os contadores de história, nesse modelo que se conhece hoje, são fruto dessa tradição. Mesmo em lugares, sobretudo no ocidente, em que a escrita é priorizada como principal método de transmissão de conhecimento, os contadores de história seguem exercendo papel fundamental na manutenção da história. Isso porque exatamente no mundo ocidental as memórias dos negros, na maioria das vezes, não são escritas. Quando escritas, em outras muitas vezes, são pelo olhar de uma pessoa branca. Mas isso tem mudado, em alguma medida. Muito pelos contadores de história, que seguem exercendo essa função de propagar seu conhecimento, sobretudo ancestrais, como forma de manter essa memória nos dias atuais. Muitos ainda atuam como escritores e registram essas memórias.

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Contadora intuitiva

Vanda Maria Ferreira era contadora de história sem nem saber. Isso porque, trabalhava em creche. “Ali, como as crianças eram pequenas, eu contava história. Mas a gente não achava livro para essa faixa etária. Eu lia as histórias, condensava e recontava. E a educação infantil tem muito do visual, da expressão corporal como um todo. Eu contava e utilizava tudo o que eu tinha para contar para eles”. Com o tempo, foi fazendo capacitações e especializações na área, quando entendeu que era isso mesmo que fazia.

Ela só tinha o ensino médio e, para continuar na creche, precisou de entrar na graduação. Foi fazer, então, faculdade, onde percebeu que, a maioria das coisas que aprendia por ali, já fazia de modo intuitivo – e muito por causa da oralidade e da contação de história, dos costumes que aprendeu em casa mesmo e foi repassando, às vezes sem perceber. Seu Trabalho de Conclusão de Curso já colocou em foco uma questão que sempre a incomodou, de alguma forma: “Os negros dentro dos conteúdos escolares”. Esse tema surgiu próximo da instauração da lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira dentro das disciplinas que já faziam parte dos ensinos fundamental e médio.

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Por causa de suas vivências na contação de história, depois de já graduada, decidiu se especializar em cultura afro-brasileira. “Até onde eu consegui caminhar sozinha, eu fui. Mas eu vi que precisava de alguém para mediar. Porque nós somos seres históricos em construção. É a nossa história que está sendo construída”, justifica. Foi na especialização que entendeu, de fato, a importância do que fazia e o desenrolar de diversas questões que sempre a afligiam. “Eu fui entender as questões do racismo, que estão infiltradas em diversos campos. Tudo isso com pesquisa e leitura.” Edmilson de Almeida Pereira foi um dos professores fundamentais nesse processo também, dentro da academia. “Ele fazia algumas perguntas: ‘Que literatura as escolas apresentam para as crianças? O que você mãe preta, pai preto, tem levado para o seu filho ver? É uma literatura que valoriza a diferença, a negritude, ou é uma literatura que reduz a negritude, é preconceituosa?’ Foi dentro disso que eu escrevi meu artigo sobre a literatura infanto-juvenil: quais são as histórias que as crianças têm ouvido?”

Ela continua: “Tem as histórias europeias e, por muito tempo, nós só ouvíamos elas, sem ter acesso a outras, depois vem Monteiro Lobato de uma forma racista, até zombando de nossos contos dos povos originários”. Enquanto isso, as histórias do povo negro não encontravam lugar. “Porque o negro escreve também sua subjetividade. Mas quem tem o poder do capital? Quem são aqueles que vão à África recolher as histórias e reescrever? Qual é a visão? Não é a visão da subjetividade do negro. É a objetividade do não negro, que vai lá, recolhe as história, traz e escreve. Muitos com boa vontade, em uma ação anti-racista, mas mesmo assim não é a mesma coisa que nós, negros, escrevemos sobre nós mesmo. Mesmo que eu queira me colocar no lugar, eu não vivo o que ele vive. É outra coisa.”

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Poder da contação de histórias

Vanda Maria Ferreira percebe que existe um movimento, inclusive dentro das universidade, de não demonstrar interesse por essas histórias. “Há países que sabem mais da história do povo negro do que os brasileiros. Porque também há muitas universidades que não se interessam por isso. Os professores estão muito preocupados com outras coisas, mas não se voltaram para a questão africana. Agora a gente sabe muita coisa por causa de pessoas que trazem isso. E é por isso que nós temos acesso. Porque nós não tínhamos. E muita gente sabe essas histórias exatamente por causa da oralidade e, aos poucos, estão registrando isso.”

Enquanto isso, quem manteve essas histórias do povo negro sempre foi a oralidade. “A contação de história é isso. Além do que o imaginário da pessoa é muito forte. Esse imaginário também é o que sustenta o racismo. Ele é regado a todo momento, com falas, e sustenta a situação. Mas ele também tem o poder de combater essa situação. Quando você traz ao conhecimento do outro uma cultura que lhe é desconhecida. E a contação de história tem esse poder: quando eu trago uma história para contar, você passa a conhecer uma cultura que você não conhecia”, afirma.

Com os povos indígenas, Vanda percebe que também existe esse movimento: eles também repassam seus conhecimentos pela oralidade e, agora, têm a oportunidade de registrar isso. Ela menciona, por exemplo, o próprio Ailton Krenak e também Daniel Manduruku, importante escritor e contador de histórias. “Inclusive, os povos indígenas estão tendo a oportunidade de aprender sua língua mãe. Agora, e nós? Os negros? Isso se perdeu. Foi apagado. Muitas histórias que a gente conhece passou de pai para filho. Mas muitas outras se perderam mesmo. O meu trabalho é resgatar isso. Quando você vem valorizando algo que é desvalorizado. Porque a oralidade é desvalorizada.”

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Uma griot de hoje

Quando vai escolher suas histórias a contar, pensa exatamente nisso: no que acha importante de se manter na sociedade, através de suas histórias. Histórias essas que, inclusive, podem até ser pessoais. Seu processo, além da oralidade, tem sido também de registrar essas histórias em seus livros. Ela já lançou três, além de ter participado de diversas antologias – tudo para manter viva suas memórias e a memória do povo negro. Esse trabalho é feito também dentro do Grupo Nzinga, do qual faz parte. É um grupo formado por contadoras de histórias que pesquisam Nzinga Mbandi, rainha do reino de Matamba, além de outras personagens de tradição africana e afro-brasileira.

“Quando eu chego nas escolas, eles me vêem em uma posição diferenciada que não é da faxineira, ou da cozinheira, dá para ver que os olhos deles brilham”, ressalta a contadora de histórias (Foto: Felipe Couri)

Seu principal lugar de atuação são as escolas. É lá o lugar onde acredita melhor exercer esse poder da oralidade e da contação de história. Ela mantém viva a tradição dos griots e resguarda o que lhe é caro. Passa para as crianças, que, na maioria das vezes, são impactadas por sua presença. “Quando eu chego nas escolas, eles me vêem em uma posição diferenciada que não é da faxineira, ou da cozinheira, dá para ver que os olhos deles brilham. Eu conto histórias que eu pesquiso e outras que são minhas, a ‘escrevivência’ (termo de Conceição Evaristo), o que eu vi e senti. Isso é se ver mesmo. A oralidade é isso. E através da contação levar o personagem negro em uma posição elevada, não de subalternação, como estão acostumados. E a ludicidade ajuda nisso. A oralidade conta com isso. A primeira coisa que a gente faz é brincar de faz de conta. E, no faz de conta, você resolve um monte de coisa. Como assim no meu faz de conta não vai ter uma menina preta?”

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