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Poeta Prisca Agustoni reflete sobre drama da migração em novo livro

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Milhares de homens e mulheres, idosos e crianças, amontoados em pequenas e frágeis embarcações atravessam ou tentam atravessar o Mar Mediterrâneo. As imagens se replicam nos jornais, ilustrando a crise migratória europeia. Repetem-se e acabam banalizadas. “Parece que não existem mais palavras para falar daquilo. Um horror, uma barbaridade?”, indaga Prisca Agustoni. “Como sou poeta, acredito que a palavra tem a capacidade não só de reencantar o mundo, mas também de tentar expressar o estranhamento. Senti que precisava, para mim, usar outras palavras para falar daquilo que em termos discursivos estava ficando vazio. A palavra pode fazer uma intervenção crítica e não banalizante. Não queria dizer o óbvio nem chamar para um pathos, porque as imagens em si são eloquentes. Há uma reflexão de fundo, que me interessava”, pontua a escritora, que lança agora “O mundo mutilado” (Editora Quelônio, 128 páginas), sobre um dos mais impactantes dramas da contemporaneidade. “Vivemos – corpos mutilados/ com uma fisgada na parte/ invisível que falta// : o país abandonado/ : o país nunca alcançado”, escreve em certo momento do livro.

Prisca: “Como sou poeta, acredito que a palavra tem a capacidade não só de reencantar o mundo, mas também de tentar expressar o estranhamento” (Foto: Fernando Priamo)

Do noticiário, com as cenas de praias europeias que Prisca visitou na infância e hoje recebem os corpos de uma migração incompleta, a poeta extrai os elementos de sua inquietação. Não se presta a fazer crônica sobre o tema que, anos a fio, permanece na crônica diária. Denso e envolvente, “O mundo mutilado” é o desdobramento da questão no campo do sensível. “A certeza da escrita/ como única casa”, escreve no poema “cette langue qui tue ma langue maternelle:”. Emocionante, o livro enseja o silêncio. “Qual é o papel da poesia nesses dias? Qual seria nosso poder de intervenção?”, questiona a escritora, quase a replicar um de seus poemas, no qual parte da biografia de “um poeta até o fim dos dias”, o alemão Bertolt Brecht. “O poeta vive em estado de exílio/ – dentro e fora do perímetro/ inexato do verso, em perene risco/ de infarto.”

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A espera de uma vida
Ao longo de “O mundo mutilado” surgem expressões como “vida nas frestas” e “frutos estranhos” caracterizando a experiência da migração. “É um entrelugar. É um tipo de campo de espera”, acrescenta Prisca Agustoni. “Uma das características dos refugiados, tanto nos campos europeus quanto os refugiados aqui nas Américas, ou os chilenos na Europa na época da ditadura, é a espera. Eles estão sempre esperando um documento, esperando poder passar pela fronteira. A espera é uma das características mais marcantes, mais até do que o medo. E às vezes ela se torna uma vida”, diz, para em seguida contar a história de uma amiga na Suíça, que trabalha como assistente social em centros de acolhimentos de refugiados afegãos. A tortura lá é a espera de saber qual será o destino. Com um documento eles podem morar, mas não trabalhar. E de tempos em tempos os documentos devem ser renovados, o que submete todos eles a mais e mais expectativas e dúvidas sobre o futuro. “Vivem num limbo. Há uma esperança contínua por algum acontecimento. Até os ruins, comenta essa minha amiga”, narra a poeta.

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A espera que afeta imigrantes e refugiados é um dos elementos de interesse da poeta. “A vida inteira se gasta numa espera, muitas das vezes”, lamenta. (Foto: Fernando Priamo)

“O refúgio/ somos nós”, escreve Prisca. “Até certo ponto, chegar, cruzar o mar, tem como grande objetivo sobreviver. E parece que ao chegarem, uma nova vida se abre, mas não é assim. A vida inteira se gasta numa espera, muitas das vezes”, lamenta a escritora, que no decorrer da obra trata do imigrante e do refugiado, que possuem estatutos distintos. “Nos poemas que trabalham a questão linguística, pensei mais na experiência pessoal, sobre trânsitos. É mais universal. A parte mais relacionada à experiência histórica tem a ver com os refugiados e com os migrantes do Mediterrâneo. Lá são chamados de migrantes, porque só são refugiados quando pisam no chão e conseguem um estatuto. Há um limbo de nomenclatura também”, aponta, mais uma vez diante do indizível, que ocupa o presente e também o passado, lá e cá. “Quantos na Segunda Guerra também migraram, pulando de um país para outro para fugir da fronteira, que era racial mesmo. E assim lembrei-me do (Walter) Benjamin, que morreu na fronteira tentando fugir para a Espanha. Dizem que ele se suicidou quando soube que a fronteira espanhola foi fechada na véspera de ele conseguir cruzar. Ele se viu sem perspectivas de se salvar. O continente, nesse caso o europeu, cria essas fronteiras que se abrem e se fecham por um decreto ou por algum outro mando”, critica, citando o debate feito hoje questionando a neutralidade suíça na Segunda Guerra. “No final das contas essa fronteira é simbólica e muito concreta, também.”

LEIA PRISCA

Minha pátria é minha língua
: :
esta pátria fantasma
esta pátria ausente
esta pátria futura
esta pátria farrapo
esta pátria aterro
esta pátria atalho
esta pátria derrame
esta pátria estrume
esta pátria canto
esta pátria crânio
esta pátria exílio
esta pátria abrigo
esta pátria estouro
esta pátria tiro
esta pátria horta
esta pátria treme
esta pátria estertor
esta pátria cobertor
esta pátria motor
esta pátria capuz
esta pátria sem luz
esta pátria seio
esta pátria sem freio
esta pátria fúria
esta pátria nunca
esta pátria lábio
esta pátria falo
esta pátria gozo
esta pátria grávida

esta pátria mátria

‘Vários habitam em nós’

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Capa de novo livro traz reprodução do trabalho da artista suíça Anna Allenbach. (Reprodução)

Ao passo que aponta para referências e influências da poeta em epígrafes das seis seções ou dedicatórias, “O mundo mutilado” também descortina a ampla e complexa paisagem linguística da suíça radicada no Brasil. Prisca Agustoni, imigrante, mulher entre línguas, entre geografias. “A língua é fundamental para quem tem uma experiência de trânsito. É o limiar que a gente tem com o mundo, para falar do mundo e para falar de si. É o canal entre a minha realidade e o mundo. Ter uma, duas, três ou mais línguas, e escrever nelas, gera uma complexidade. E é um argumento crucial para reforçar que não somos uma coisa só. Somos frutos de decisões e casualidades”, reflete ela, que decidiu escrever em outras línguas que não a materna, um dialeto sem registro. “A língua de casa não sei escrever, um dialeto que usamos com pai, mãe e irmãos. As primeiras palavras que expressei foram em dialeto”, conta.

O italiano, Prisca aprendeu na escola, num processo de aquisição como ocorrido com o francês e com o português. “Uso, naturalmente, três códigos linguísticos para falar com os amigos e penso nos três. Não seria quem sou sem os três. A língua é corpo, afeto, amor”, define a professora da Faculdade de Letras da UFJF, cuja pesquisa acadêmica se interessa pelas vozes da migração. “Porque sou outra em cada língua”, escreve em um dos poemas do novo livro. “Somos complexos e vários habitam em nós, desde sempre. Somos mutantes e plurais”, confirma a poeta, longe do panfleto, ainda que sem abandonar o tom crítico presente no texto. “Tem um forte teor político, mas é poesia. Não pretendo ser uma voz política de intervenção e não acredito que meus poemas tenham esse apelo.”

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Nascida na Suíça, Prisca Agustoni aprendeu um dialeto dentro de casa, italiano na escola, francês na vida acadêmica e português por paixão e pelos laços familiares que formou. Em “O mundo mutilado” reúne quase todas as línguas. (Foto: Fernando Priamo)

Retrato do real
“Aqui também temos/ um Haiti sobrevivente”, escreve Prisca no poema dedicado ao escritor haitiano Dany Laferrière. “O mundo mutilado” dedica um dos poemas a Boris Y., “músico, migrante curdo morto em Lesbos em 27.04.2017”, e também parece retratar o Brasil de hoje, partido e deteriorado. “A fera, deposta/ pelo júbilo e pelo terror,/ está nua e se compraz”, escreve a poeta, afirmando ter levado anos para se autorizar a falar sobre o tema. “Logo é preciso acordar/ e colar os cacos do dia”, escreve na penúltima seção do livro, que traz na capa imagens da artista suíça Anna Allenbach. “Naturalmente resolvi não escrever sobre os que morrem. Tem alguns poemas que falam metaforicamente, mas me interessa mais falar dos que chegam em algum lugar e precisam lidar com a língua e se reconstruir. Não sei até que ponto o livro é otimista”, pontua, para logo finalizar: “É um retrato do real, do que, infelizmente, temos.”

LEIA PRISCA

Não sabem que são anjos
os anjos que vivem conosco no campo:
acostumados a remexer no lixo
sabem do estômago a fome,
do músculo as câimbras.

Reviram as línguas
como frutos caídos
cariados no chão, na torre
dessa babel horizontal

aqui, onde o latim eslavo
estala suas sementes
que florescem tardias

e no fígado do dia
destilamos
nosso álcool

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