
Em tempos de arrumação em casa, minha filha se revoltava com a presença de minhas centenas de livros em duas estantes em seu quarto, quando minha sogra defendeu: “É a alma do seu pai, Maria Júlia!”. Imediatamente, com seu humor peculiar, minha pequena advertiu: “Mas ele bem que podia encontrar outro lugar para a alma dele!”. Enquanto converso com Walter Pecci Maddalena, a situação vem e volta em minha memória. Por toda parte, há livros e mais livros. Leituras e mais leituras feitas. Ao redor de Waltinho, histórias. Com Waltinho, uma única história em diferentes endereços.
“Meus pais são da Itália, e, quando vieram para o Brasil, minha mãe, meu pai e mais três irmãos, já havia alguns italianos na cidade. Eles começaram, então, a trabalhar com banca de jornal, e nós crescemos com isso. Era na Marechal (Deodoro) com a Batista (de Oliveira). Assim fomos pegando amor pela coisa. Na década de 1970, meu irmão mais velho, o Salvador, abriu a (Livraria) Península, que começou na Galeria Hallack, do Futrica, e me chamou. Nesse tempo eu trabalhava de contínuo no Unibanco. Em 1973, comecei a mexer com livros e estou até hoje”, conta o dono da Academia do Livro, o sebo e antiquário com vista para o Colégio Stella Matutina.
Porção fundamental da narrativa literária de Juiz de Fora, a Península tornou-se uma gigante. “Até então ninguém fazia o que a Península começou a fazer, promover lançamentos de livros, trazer autores consagrados. Trouxemos o Aurélio Buarque de Hollanda para lançar o dicionário, Fernando Sabino, João Antônio, José Louzeiro, grande nomes da literatura brasileira, que na época estava efervescente. Também tínhamos uma atualização constante do que saía. O livro lançado chegava no dia seguinte à cidade. Promovemos debates também. Colocamos o Ziraldo para um lançamento no Parque Halfeld, sábado de manhã, e fez filas e mais filas”, recorda-se Waltinho.
Após ocupar diferentes endereços centrais, a Península encerrou as atividades ocupando o térreo do Edifício Brumado, na Avenida Rio Branco. Quatro anos antes, Waltinho decidiu declinar da parceria e seguiu carreira solo, deixando o negócio com os irmãos. Naquele mesmo ano, na galeria do Edifício Top Center, escolheu fixar sua aposta no que já havia sido lido. “Via que o usado oferecia melhores condições para vender. Quando fui para a Espírito Santo, abriguei o Museu do Rádio e, antes, fiz ali uma galeria de arte com um bar. Toda sexta fazia um happy hour, e sábado tinha música pela manhã. Apesar de ser no Centro, tinha uma circulação de pessoas muito ruim.” Mais uma vez mudou-se e hoje ocupa um espaço agigantado, com ampla área nos fundos. Por todo canto, livros e mais livros.
Prateleira da economia
O caminho poderia ter sido outro. Formado em direito, livreiro por vocação, Waltinho teve escolhas, mas uma paixão apenas. “Até dez anos atrás, exerci a profissão, mas foi ficando difícil conciliar, e eu optei pelos livros. Está no sangue. É tradição de família”, defende o filho do casal Rafaeli e Norina. “Todo dia chegam um ou dois livros. E sai também. Estar na internet foi uma alavanca muito grande para a gente. Mas a dificuldade do livro é sempre presente. Com o advento da internet e com os celulares, atrapalha muito. Da década de 1990 para cá o mercado ficou muito complicado. A juventude não lê livro mais”, comenta. E o livreiro lê muito?, pergunto. “Função do ofício é a leitura. Diariamente leio alguma coisa”, responde. O que mais lhe toca? “Os que são mais ligados a filosofia e religião.” Qual o livro de cabeceira? “Gosto muito de Nietzsche. ‘Zaratustra’ comecei a ler há muito tempo, custei a entender, e até hoje não entendo completamente. Mas gosto muito. De cabeceira é a Bíblia.”
Prateleira das raridades
Há menos de uma década, Waltinho foi chamado para ir até a casa de um professor da Faculdade de Engenharia da UFJF que havia deixado um imenso legado. Ali estava sua maior compra, de cerca de R$ 7 mil, valor muito maior na época. “Tinha muita poeira. Botei a casa vazia. Era muita coisa”, lembra-se. Numa outra visita, comprou sem ver uma coleção também bastante volumosa. Nela havia o livro de registro de atas da Fábrica Bernardo Mascarenhas, com a data da primeira reunião e a última. Ali estava um de seus maiores tesouros. Após ter a compra negada por órgãos oficiais, colocou à venda na internet, assim como um raro título de Charles Darwin, de 1877. “Está novinho”, mostra ele, que mora com o filho Rafael, no Granbery, e guarda poucos títulos em casa. “Leio mais aqui. Em casa já chego lido.”
Prateleira do futebol
“Fora da loja”, diz Waltinho, “procuro relaxar minha cabeça. No boteco, para ver o jogo, é o Waltinho que joga conversa fora, brinca, mas sempre tem algum amigo que fala: ‘Pô Waltinho! Tô precisando de um livro X!'”. É que sua imagem, em algum momento, passou a confundir-se com os livros dos quais está sempre rodeado. Rafael, 36, um dos dois filhos do homem “com mais de 50”, escreve a terceira geração envolvida com a leitura. “Desde pequeno, meu pai me levava para a Península. Sempre gostei de estar no meio dos livros. Na livraria tinha um lugar para as crianças, com um navio e um castelo, que eram fascinantes. Fui tomando gosto pela cultura”, diz ele, que faz como lhe foi feito e envolve a filha, Rafaela, 17, no mesmo gosto. A título de comparação e munição para com minha Maria Júlia, pergunto a Waltinho sobre quantos livros possui. “Uns 25, 30 mil. Mas nunca contei”, responde ele. “Respiro livro.” Sim! Respiramos!