Ao menos desde 2018 o Coletivo CineFanon realiza um trabalho comunitário junto a pessoas sem acesso aos meios de produção audiovisual por meio de um cineclube itinerante. A primeira exibição do coletivo foi no Bairro Linhares, Região Leste de Juiz de Fora. Do trabalho em bairros, o cineclube itinerante atraiu a atenção de escolas públicas, como a Municipal Professor Dilermando Cruz Filho. “A partir das escolas, a gente viu que as crianças naturalmente começaram a ter interesse em produzir audiovisual”, pontua o educador social, cineasta e jornalista Ugo Soares, 42 anos, idealizador do Coletivo CineFanon. “Debatíamos os filmes, conversávamos sobre realizadores, mostrávamos as dificuldades de produzir, sobretudo para as mulheres negras. Então, começamos a propor oficinas para os garotos utilizando celulares mesmo.” A maior preocupação não era a estética da produção em si por meio de equipamentos sofisticados, acrescenta Ugo. Mas, sim, a própria dinâmica de expressão do meio e das pessoas.
O CineFanon, agora, leva ao Bairro Dom Bosco, Cidade Alta, uma oficina de jornalismo comunitário. O projeto reúne 13 adolescentes – “oito meninas e cinco meninos” – durante todos os sábados de junho no salão da Associação de Amigos do Bairro (Aban). O objetivo é incentivar os adolescentes a serem agentes mobilizadores comunitários através do uso de ferramentas de comunicação para que tenham um pensamento crítico e autônomo. “Um território como o Dom Bosco, como quase todas as favelas brasileiras, é marcado pela ausência, que é um problema político, estrutural e sociológico que o CineFanon não dá conta de solucionar”, afirma Ugo. “Mas com o entendimento de que o Dom Bosco é um lugar marcado pela ausência de voz e de diálogo tanto com o Poder Público quanto com a mídia, vamos para o local com o intuito de garantir a cidadania para que as pessoas saibam como é feito o cinema, o jornalismo, a rádio etc.”
A oficina propõe-se a conscientizar os alunos, ao menos de maneira “mais apurada”, sobre como e qual narrativa do Dom Bosco é veiculada nos meios de comunicação, explica Ugo. “Se esta narrativa é correspondente a como eles se veem e veem a própria comunidade. Temos psicólogos no grupo e trabalhamos muito a memória e o entendimento do que somos. De posse desses saberes tecnológicos, eles vão poder ter a oportunidade de narrar a própria história, Denunciar, por exemplo, o que acontece de errado no bairro e eles não concordam.”
É um trabalho de formiguinha, além de melindroso, pondera o educador social. “99% são garotas e garotos adolescentes, negras e negros, que já sofreram assédio, abuso da polícia etc. Então, o nosso trabalho é para que eles falem de si mesmos, seja através de jornal mural ou rádio comunitária.” O projeto ocorre de maneira presencial, já que, se virtual fosse, seria excludente – “alguns não têm smartphones, WhatsApp, só conseguimos conversar com os pais”. Mas o coletivo respeita um protocolo criado por um comitê de segurança e prevenção à Covid-19. “Marcamos o distanciamento com fita métrica, compramos álcool em gel e máscaras, e os lanches são individuais.”
‘O que é o Dom Bosco para você?’
O trabalho de memória realizado pela psicóloga Andressa Lenz e a estudante Jordana Lemos é fundamental para que seja instalada uma aura de aproximação entre os alunos com o pertencimento à origem comunitária. “Vamos estimulando os adolescentes através de perguntas, que, às vezes, podem parecer ingênuas ou desinteressadas”, pontua Ugo. Os educadores sociais, por exemplo, estavam em dúvidas sobre o produto final da oficina de jornalismo comunitário. Ao contrário de trabalhos anteriores, a obra, desta vez, seria construída pelos adolescentes.
“Após a primeira aula, dei um dever de casa, que era trazer, na próxima aula, a resposta para a pergunta ‘o que é o Dom Bosco para você?’. A resposta poderia ser uma fala, uma fotografia, uma filmagem, um galho de árvore, qualquer coisa.” Júlia, 14 anos, então, escreveu um texto sobre racismo. “Ela contou a história da avó, Dona Aparecida, que era um ícone do Dom Bosco. Ela varria espontaneamente as ruas do Dom Bosco. E Dona Aparecida foi morta após ser atropelada por um médico. A fala de Júlia foi de muita dor, mas muita lucidez.” Dona Aparecida, por fim, será homenageada em um minidocumentário, além de uma exposição fotográfica.
Sem a ajuda do Coletivo Pretxs em Movimento, a oficina de jornalismo comunitário do CineFanon não teria alcançado os adolescentes do Dom Bosco. Ugo até tem a experiência de trabalhos similares em favelas de outras cidades do Brasil. Entretanto, por mais poder ou representação pública que um sujeito possa ter, destaca, não há garantias de acesso irrestrito às comunidades. “São pessoas naturalmente desconfiadas”, acredita Ugo, e uma ancoragem no próprio território é necessária para superar a desconfiança. “Foi o pessoal do ‘Pretxs’ que mapeou os garotos, que foi um trabalho excelente, sobretudo em meio à pandemia. Foram eles que pediram autorização aos responsáveis e explicaram o projeto. Boa parte do coletivo é de pessoas que nasceram, cresceram e estão inseridas no cotidiano do Dom Bosco.”
A oficina, explica Ugo, é baseada na pedagogia Paulo Freire, ou seja, em uma comunicação horizontal e participativa. Os próprios alunos são estimulados a opinar. “Nas outras oficinas que fiz, sempre dizia aos alunos, ainda na primeira aula, que o nosso produto final seria um documentário. O tema seria decidido por eles mesmos. Só que, por mais que eu não percebesse, já chegava com uma coisa pronta. Eu nem sabia se os alunos queriam ou se seria melhor para eles. Por isso, agora no Dom Bosco, resolvi não chegar com a coisa pronta. Após me apresentar da mesma maneira que sempre faço, disse que teríamos um produto final, mas não sabia o que seria e descobriríamos juntos o que mais atenderia às nossas demandas.” Conforme o educador social, a pedagogia Paulo Freire parte justamente do pressuposto de que a comunicação se dá através da troca de atenção, de “uma escuta cuidadosa e amorosa”.