Ícone do site Tribuna de Minas

Frutos de Nise

manico-marcelo
Ateliê de costura se aproveita da pintura para criações que são comercializadas, argumento para a ressocialização (Foto: Marcelo Ribeiro)
PUBLICIDADE

Uma batida, duas batidas, três batidas e nada. Foi preciso esmurrar a porta até que alguém viesse atendê-la. Nise da Silveira, a psiquiatra brasileira que se apresenta firme já na primeira cena do filme “Nise – O coração da loucura”, em cartaz no Alameda até esta quarta, precisou gritar muito até ser ouvida por seu país e pelo mundo. “Não acredito em cura pela violência”, diz a médica, interpretada por Glória, em certa passagem do filme assinado por Roberto Berliner (de “Bruna Surfistinha”) que já levou cerca de cem mil brasileiros aos cinemas. A narrativa sensível e tensa apresenta não apenas a resignação de uma profissional com o outro, mas uma luta de décadas, celebrada neste 18 de maio, quando as reflexões acerca do movimento antimanicomial são colocadas em pauta.

Em Juiz de Fora, das 9h às 17h, desde a segunda-feira, a produção das oficinas terapêuticas dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) está exposta no PAM – Marechal. Ao meio-dia desta quarta, um desfile de moda na Rua Mister Moore também coloca a saúde mental em primeiro plano, bem como o ciclo de debates voltados para cuidadores, trabalhadores e moradores de serviços residenciais terapêuticos. Enquanto amanhã, às 9h, acontece um torneio de futebol com os usuários, na Faculdade de Educação Física da UFJF, na sexta, 20, o evento se encerra com uma mesa redonda sobre a luta no auditório da vigilância sanitária (Rua Antônio José Martins s/n° – Morro da Glória).

Reunião para produção da rádio e da TV conta com diferentes sugestões de piada, ponto alto das atrações

Afora a pintura

Na cidade que integrou o corredor da loucura, que agrupava 80% dos leitos psiquiátricos do estado, e de onde saiu o autor da Lei 10.216, o deputado Paulo Delgado, que em 2001 definiu a chamada reforma psiquiátrica, Nise é um passado alegre. Seu pensamento foi seguido e também superado. Entre uma fábrica, um ateliê e um estúdio, o Centro de Convivência Recriar, localizado no primeiro andar do prédio da esquina das ruas Tiradentes com Luiz Perry, está sempre agitado. A despeito do pequeno espaço físico e da reduzida equipe – a maioria dos monitores são estagiários contratados pela Prefeitura – o lugar se mostra como a acertada opção em oposição aos hospitais, cantos escuros nas memórias de quem os conheceu.

PUBLICIDADE

Ainda que as pinturas produzidas pelos usuários do serviço custeado pelo município com apoio financeiro do Governo Federal não sejam expostas há mais de um ano, os artesanatos – como as calotas de carro delicadamente desenhadas – são frequentes em feiras e bazares. Este mês, produziram 450 ecobags com tecido reciclado e pintado, para uma grande empresa de Juiz de Fora. Além da Rádio Piraí, que produz programas de dois em dois meses em média, a casa espera lançar, ainda neste mês, um canal na internet, com programas feitos pelos próprios usuários. “Nossa ideia é avançar para além do pintar como terapia, mas pintar como trabalho”, avalia a coordenadora do centro, Ilka de Araújo Soares, uma das duas psicólogas do local.

Sujeito no mundo

Se nos tempos de Nise, por volta dos anos 1950, entre os muros do manicômio, a interpretação das criações artísticas funcionavam como chave para alguns tratamentos, a ordem, agora, é perceber a arte como um passo para a ressocialização, assim como a comunicação, a culinária e outras modalidades possíveis, que, infelizmente, se desenrolam conforme a disponibilidade da mão de obra para instruir. “Muito mais do que o significado de uma obra é o sentido que ela dá para quem está fazendo. O que há é uma ênfase no engajamento desse sujeito no mundo”, comenta Ilka, apontando a Associação Pró-Saúde Mental Trabalharte, que comercializa as produções, como um desses relevantes eixos.

“Hoje vejo o lado bom de poder fazer parte da sociedade”, emociona-se Valmir, de 46 anos, que há três anos frequenta o lugar e tornou-se um dos responsáveis pela rádio. “Minha vida foi só internamento, desde os 13. Quando saí, aprendi a dialogar”, diz ele, cujo único contato com o veículo era como ouvinte de Brizola na época em que morava no Rio de Janeiro. “O louco também pode ser inteligente”, pontua, recebendo a sua volta olhares de confirmação, como o de Delcy, uma das mais entusiasmadas por ver sua imagem numa tela de TV. Natanael Miana, 33, prefere a pintura, mas também vive a satisfação de executar um trabalho. Sente-se útil como Maria do Carmo Turetti, 54, que sorri ao responder sobre o bem que os mosaicos com casca de ovos lhe trazem.

PUBLICIDADE
Alceu, morto em 2015, chegou a ganhar prêmio nacional (Foto: Antônio Olavo Cerezo/Arquivo TM)

Alceu: o gesto denso

Espessa, a pincelada de Alceu Rodrigues dos Santos expressava certa tensão entre o homem e a tela. Como a paleta, vibrava. Enquanto os temas – da marinha às flores, passando pelo abstrato completo -, se mostravam diversos, o traço mantinha-se nos mais variados suportes, do papel à tela. Era um artista de grande produção. Ainda assim, viveu à margem da arte local. Não por sua pintura, nem tampouco por sua expressividade, mas, certamente, por sua condição. Um dos primeiros usuários do Centro de Assistência Psicossocial (Caps) – Casa Viva, quando foi fundado (ainda com outro nome), na década de 1990, Alceu e sua trajetória ajudam a contar a história da política de saúde mental em Juiz de Fora.

Vitimado por um câncer no início de 2015, o homem alto, de barba e cabelo grisalhos vivenciou constantes internações. “Passei por várias (internações psiquiátricas). Passei por momentos difíceis também, de alcoolismo, de drogas, de depressão. Teve uma vez que eu mesmo pedi para ser internado. Às vezes é necessário, e, naquele momento, eu senti que era necessário”, contou à edição de número 13 da Rádio Piraí.

PUBLICIDADE

Segundo a coordenadora do Centro de Convivência Recriar, Ilka Araújo Soares, o perfil de Alceu se modificou bastante após sua adesão ao serviço de saúde mental, ainda que sua personalidade se mantivesse firme e intempestiva. “Ele pintava e, quando não estava bem, colocava a pintura na água ou borrava tudo. Ele tinha uma reação muito crítica com a própria arte”, recorda-se.

Para Mariana Andrade, estagiária de artes do centro, a produção de Alceu se alinha, em sua densidade, ao expressionismo. “Ele era muito livre para criar. Tinha uma identidade própria. Era incrível ver o trabalho dele se concluindo”, comenta. Premiado com o segundo lugar no concurso nacional “Arte de viver”, realizado pelo Governo Federal e voltado para pacientes com transtorno bipolar e esquizofrenia, Alceu recebeu aplausos.

Contudo, a posteridade lhe reservou apenas uma pequena sala no Centro de Convivência, onde divide espaço com quadros do também artista já falecido Yuri Schuery e computadores. Ainda que tenha conseguido superar a questão da saúde mental, Alceu não se desvencilhou. Mesmo assinando uma produção visivelmente original e esteticamente bastante expressiva.

PUBLICIDADE

Entusiasmado, contou, certa vez, à Rádio Piraí, sobre o dia em que se percebeu artista: “O ato de expor uma obra é uma coisa muito incrível. O primeiro quadro que eu vendi na minha vida foi numa exposição feita através do Caps. Eram dois girassóis azuis sobre o fundo laranja. Pintado num cartão. De repente passou uma moça e disse: ‘Eu quero’.” Alceu, figura sempre presente em vernissages, conheceu a solidão da despedida de uma família outrora grande e a solidão dos olhares de estranheza. Pintou a arte que inclui, mas também conheceu a arte, em seu sistema mais cruel, que exclui impiedosa. Alceu, sobretudo, pintou, pintou e pintou. E estava certo. Ainda que não tenha ganhado todos os louros devidos, sua pintura existiu forte e densa, provando que o tal sistema da arte nem sempre está certo.

Sair da versão mobile