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Nostalgia Boêmia

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DJ Coruja senatdo na janela do Balcão, que enchia a rua de jovens e ficou famoso pelo meladinho (pinga com mel) (Foto: acervo pessoal)
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A “década perdida” é o marco da democratização política no Brasil, na metade dos anos 1980 estava havendo o fim da intervenção militar. Por outro lado, é também “a década que não acabou”, por ser rememorada a todo tempo nos produtos da cultura pop, haja vista o sucesso do seriado da Netflix, “Stranger things”, e de muitas bandas que compõem tendo como principal referência o new wave e outras ondas sintetizantes do momento. Os símbolos presentes na memória afetiva de cada um – ainda naqueles, que como eu, sequer estavam vivos neste período – vêm a tona mostrando a nostalgia daqueles anos. Em Juiz de Fora não foi diferente.

Em uma tarde na Redação da Tribuna, alguém falou de maneira saudosista sobre como eram bons os bares de Juiz de Fora nos anos 1980, principalmente os que estão no circuito do Bairro São Mateus, que se transforma, novas propostas fecham e se abrem, sempre mantendo o status boêmio do lugar. “Ah, o Balcão, o Café com Light…”, diziam estampando saudade nos olhos. “Bom mesmo era o Vitrô”, alguém respondia de lá. “E o Marrakesh?”, relembravam do lugar onde hoje é o Muzik, este na Rua Espírito Santo, no Centro da cidade. No Bom Pastor, o fenômeno era o Milk Shake.

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Em busca de entrevistar os próprios donos dos estabelecimentos, alguns conseguiam vasculhar na memória situações inusitadas, voltavam ao ano em que abriram, citavam figuras marcantes no local, fazendo até mesmo o retrato falado do lugar. Ao falar sobre o passado, mesmo que com muito entusiasmo, muitas imagens tornam-se embaçadas, esquecidas e minimizadas, certamente essa é uma reportagem que dará o pontapé inicial para ativar o sentimento de cada um que viveu esse período na cidade. E muitos vão se lembrar de outros espaços não citados aqui.

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Anderson, Arlindo, um ajudante do bar e o pintor “Belchior”, após a pintura da fachada dias antes da abertura do bar Atrás das Bananeiras (Foto: acervo pessoal)

Meladinho no Balcão

Fiquei curiosa em descobrir o porquê de um estado quase melancólico em relação ao que se vivia naquelas noites que varavam a madrugada (os mais animados não hesitavam em, literalmente, fechar o estabelecimento de manhã e reabri-lo pouco mais tarde). Um dos nomes que mais apareciam nos depoimentos era o “Balcão”. Em 1983, quando a cultura de bares com espaço para música e teatro ainda era muito incipiente, Maria de Godoy, junto a seu irmão Ivan Godoy, que assumia a frente do bar, e seus filhos André e Bianca abriram as portas da primeira noite do Balcão Drinks, sem nem imaginar o fenômeno que em pouco tempo se tornaria. Rua São Mateus número 52 era o endereço. Uma casa antiga com fachada azul e branca e uma mureta logo na entrada, onde, de segunda a segunda, havia alguém sentado tomando uma cerveja ou o famoso “meladinho”. “Fechava a rua completamente, mas a gente nunca sabe o que tem em um bar de especial para atrair o pessoal. Era um público muito jovem, e o motivo de se ir ao bar não era porque tinha um petisco diferenciado ou outra coisa. Mas tinha uma bebida, o meladinho, que é pinga com mel, e gostavam muito. A turma se reunia por lá, começava a dar muvuca, e se tornou um movimento inexplicável”, conta Marieta Gama, 58 anos, esposa de Ivan, que preferiu não dar o seu depoimento.

Frequentadores do Balcão eram tão assíduos que chegaram a formar quase uma legião, inclusive, em 2018, existe ainda um grupo no Facebook chamado “Turmas do Balcão”. Hoje, parece que não há essa escolha de apenas um lugar, as pessoas circulam, por mais que tenham seus preferidos. Talvez porque existam mais opções ou apenas pela característica de pouco pertencimento desta geração. Quando o Bar Redentor, reduto dos punks na Av. Rio Branco, fechou, houve comoção, o mesmo aconteceu quando o alvará de funcionamento do Atrás das Bananeiras foi cassado, em 1984. “Carne podre no supermercado, moral e bons costumes atrás das bananeiras”, estampava um cartaz do movimento da época que se reuniu no Centro da cidade para protestar contra o fechamento do espaço que fazia girar a cultura local, principalmente a música.

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Figura constante no Balcão foi João Carlos de Souza Lima, na época, estudante de direito. Conhecido como DJ Coruja, ele adorava pegar um meladinho e sentar na janela do Balcão Drinks. “O bar durou de 1983 até 1991, tinham garçons marcantes, como Tadeu Sakai, Bilac, Braz e Carlinhos. O Balcão reunia todas as turmas, sem preconceito. E tudo começou por conta de uma turma do Colégio Jesuítas que passou a frequentar lá. Alunos de Direito, Comunicação e Engenharia foram reunindo grupos em um mesmo lugar, entre eles, muitos músicos e artistas. De repente, o pessoal do Beatles Forever pegava o violão e começava a tocar, depois vinha alguém da MPB. Ninguém tinha mesa, cada hora um sentava na mesa do outro, cada um com uma conta que podia ser acertada uma vez por mês, porque era todo mundo muito próximo”, conta Coruja.

Das figuras de Juiz de Fora, Coruja resgata o deputado Júlio Delgado, o jornalista César Menezes e o poeta Knorr como frequentadores e também se recorda dos músicos Cláudio Nucci, Beto Guedes e Lô Borges visitando o Balcão. Até mesmo na noite em que o Cometa Halley apareceu, em fevereiro de 1986, o Balcão foi o ponto de encontro para dali partirem para o Mirante. Em época de Copa do Mundo, os frequentadores mais assíduos e amigos dos donos também eram acolhidos para assistirem aos jogos juntos.

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Por dentro das bananeiras

Coleta de assinaturas no Calçadão para manter aberto o bar Atrás das Bananeiras (Foto: acervo pessoal)

“O Atrás das Bananeiras só foi possível porque existia uma circunstância política muito diferente da que temos hoje. Era o final do regime militar, e havia uma série de supressões de direitos civis, inclusive o voto direto para presidente e governadores. As pessoas tinham uma restrição grave, e isso, ao longo dos anos, foi criando uma efervescência em um processo crescente, uma revolução em busca de se libertarem e terem seus direitos plenos. Aquele contexto, aquele momento político viabilizavam a proposta do Atrás das Bananeiras como uma válvula de escape de expansão, explosão e libertação. Esse é um fato muito importante”, aponta Arlindo Pinheiro, sócio-proprietário do Atrás das Bananeiras, que ocupava um terreno cheio de árvores da fruta na Rua Padre Café, próximo à Avenida Independência (atual Avenida Itamar Franco).

Anderson Heredia da Costa, 59 anos, era amigo de infância de Arlindo e tornou-se sócio. Ele relembra das noites do Atrás das Bananeiras com as bandas Mercúrio Cromo, Banda Besta, Genésio e Patrulha 66 e de como o bar, que ficou aberto apenas por alguns meses, tornou-se um fenômeno. A Polícia Militar chegava a interditar as duas pistas da então Independência, no cruzamento com a Padre Café, por conta do mar de gente que aglomerava por perto. “O bar mudou a vida da cidade, houve um momento antes do Atrás das Bananeiras e depois dos Atrás das Bananeiras. Do lado de fora, acontecia de tudo, mas do lado de dentro, uma calmaria. Eram o astral, a cerveja, os drinques, batatinha frita, mandioquinha. Uma das garçonetes virou minha esposa. O movimento acabava às 6h da manhã, e, às 7h, já estávamos fazendo compra novamente para suprir o bar.”

Anderson conta que até hoje é parado na rua por conta do bar, então ele brinca: “Tem uma continha sua perdida lá”. Outros lhe contam: “Eu me casei com a minha namorada que conheci lá!”. Além das muitas bandas, o local abrigou lançamento da “Revista Bizú” e, também, grifes de moda, chegando a colocar de 800 a mil pessoas no espaço. “Essas bandas de garagem se proliferavam no Brasil inteiro e ali elas ganharam um palco, super sonorizado, com iluminação e estrutura de camarim. A cobertura do palco era feita com uma lona de caminhão, daquelas amarelas, lindas, toda esticada com cordas. E o palco era central, o bar era em volta. Tinha parte coberta e descoberta, para ver o luar, as estrelas, além das muitas bananeiras com um canteiro e luz circulando”, descreve Arlindo, detalhando que, no meio do palco, tinha uma bananeira que foi mantida no projeto.

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Vitrô atraía a juventude por dar espaço a música ao vivo, como mostra uma reportagem de 1981 da Tribuna

Nos embalos do Vitrô

Paulo de Mello Campos, 50 + 7 anos, conhecido como “Paulinho da Planet”, entrava na Faculdade de Comunicação, em meados da década de 1980, quando o Vitrô começava a funcionar no porão de uma casa antiga na Rua São Mateus, onde hoje funciona o Colégio Equipe. “Eu gostava mesmo era de frequentar bares com música ao vivo. Quando o Atrás das Bananeiras fechou, a gente migrou para o Vitrô”, comenta Paulo, sempre “com uma cerveja na mão e uma música na cabeça”, parafraseando Glauber Rocha. Me lembrava o Cavern Club, em Liverpool, aquela coisa pequena, algumas mesas, ambiente escuro e um lugar à frente da banda para dançar, com um palco para se apresentarem. Sinto falta disso”, rememora Paulo tentando pensar em um espaço atual que cumpra essa função. “Eu vejo, por exemplo, o Maquinaria com uma proposta próxima do que era o Vitrô.”

Uma questão muito relevante em relação ao Vitrô era seu caráter de valorização dos artistas que tocavam na casa. Justamente porque quem começou com o espaço foi Duty Botti, que também é músico. Sua vivência em Belo Horizonte, tocando em espaços diversos, fez com que colecionasse ideias. “Era um colégio, chamava Ginásio Bicalho, e tinha uma porão que daria para transformar em um bar musical. As pessoas que vinham a Juiz de Fora fazer show, quando acabavam, iam para lá, tanto é que o nome completo era: Vitrô Musical Bar. Toninho Horta, Maestro Paulo Moura e Sueli Costa, muita gente mesmo, além dos instrumentistas que acompanham todos os artistas. Eu fiquei dois anos tocando no espaço, depois cansei e passei para amigos, o Vitrô já foi gerido por várias pessoas. Teve um momento mais rock, mais vibrante, no meu tempo era mais MPB e jazz. Chegou a ser alugado posteriormente para o grupo Lúdica Música e para o baterista Big Charles, que mudou o nome para Jazz Club Bar. Muita gente me encontra e fala: “Poxa, foi o melhor bar de Juiz de Fora”. E era muito direcionado para os músicos, a gente cobrava um couvert musical e ainda completava o salário dos músicos”, afirma Duty, lembrando que uma vez por semana eles forneciam angu à baiana de cortesia aos clientes.

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Na decoração, além das janelas de vitrô, tinha uma porta construída de vitrais, em formato de portinha dupla de bang bang que vai e volta, de um lado um homem, do outro, uma mulher, ambos com uma caneca de chope, que brindavam quando a porta estava fechada. Bráulio Mota foi um músico de Juiz de Fora que começou a tocar no palco do porão. A partir daquelas noites, surgiu o grupo Vitrô Blues, que existe até hoje. Quando a casa estava muito cheia, ainda existia um quintal coberto de maracujás, onde as pessoas ficavam. O tratamento diferencial com os músicos se estendia aos clientes, que recebiam cartas com a programação, e aqueles mais assíduos possuíam uma carteirinha de frequentador. “Meu pensamento era montar o bar para tocar a música que nós, músicos, queríamos. A gente tinha prioridade pela arte.” O Vitrô se tornou um espaço onde a música local se conectava com a cena nacional.

O moderninho Café com Light

Além dos bares de música ao vivo, havia aqueles com música mecânica e as noites mais “disco”. O Café com Light nascia com essa proposta dancing bar. Paulo Beto, integrante do Anvil FX em São Paulo, era DJ residente da casa. Também rolava discotecagem das gravações em fita cassete dos sets do DJ Jose Roberto Mahr, um dos pioneiros da cena eletrônica nacional e do indie rock, que depois tocou em Juiz de Fora em festas no Front, que também funcionou no Bairro São Mateus. “Era mais dark, sombrio, apenas com uma luz branda. Já as paredes eram pretas com ilustrações de quadrinhos. Tinham salas com aparelhos de brinquedos, provocações lúdicas, cornetas, jogos, TVs em todas as salas, e noites de campeonato de Gamão”, conta Gueminho Bernardes, um dos fundadores, tudo isso ao som de The Cure, The Smiths, New Order, Joy Division e funky americano. “A ideia do Café com Light surgiu com o Teatro de Quintal: ao invés de trabalharmos nos bares de outras pessoas, decidimos criar o nosso espaço. O nome Café com Light remetia ao preto e branco e ao café com leite, o insight de um bar que mistura públicos, ideias, tendências musicais. Tinha um brechó no interior do bar e funcionava como uma saladeria durante o dia. Foram anos de muita criatividade e liberdade”, conta Gueminho. O Café com Light ocupava a esquina da Rua Padre Café com Manoel Bernardino, onde hoje funciona a Churrasqueira.

Na garagem do teatro

Ivan e Denise Milward no Bon Vivant (Foto: acervo pessoal)

Seguindo até a Rua Morais e Castro, é só atravessar a São Mateus e já se chega a um dos pontos mais movimentados da boemia em Juiz de Fora na contemporaneidade, onde se localizava o Krismara, que teve seu funcionamento interrompido no ano passado, e também o Vizú. Era ali naquela calçada, em uma portinha abaixo do antigo Teatro da Igreja São Mateus, onde Ivan Milward abriu o seu Bon Vivant, nome dado pelo professor José Paulo Netto, que na época era professor de Denise Milward, esposa do “dono da noite”.

“Nós tivemos a ideia de alugar o Teatro São Mateus para a Corpus (companhia de dança), onde aconteciam todas as apresentações. O Bon Vivant nasceu depois de eu alugar uma garagem de 50m² debaixo do teatro para servir de depósito, como um porão. O lugar era tão louco que tinha uma mesa de sinuca dentro do palco, onde tinha um alçapão, que, levantando a tampa, dava para uma escada que chegava ao Bon Vivant. Um dia, um fotógrafo estava trabalhando registrando alguma apresentação no teatro, mas nós não sabíamos e abrimos o tampão, ele caiu dentro do botequim cheio de gente sem entender nada”, relembra Ivan, que sempre garimpava ideias diferentes para o espaço.

A decoração era cheia de surpresas, logo à frente, um lampião a gás iluminava. “Nós tínhamos na entrada do bar, à direita, uma cadeira de pedra, feita pelo bailarino e coreógrafo espanhol Victor Navarro Capell, que esteve em Juiz de Fora. Ao lado dela, tinha uma algema. O cara bebia demais, e aí eu falava: ‘Senta aqui para você melhorar, aí eu algemava ele, e falava com o garçom: ‘Onde estão as chaves das algemas?’. Ele respondia, brincando: ‘Ah, você esqueceu no sítio’. O rapaz sarava na hora. Eu tinha, também, um relógio de ponto, os clientes batiam na hora que entravam e saíam. No final do mês, quem frequentasse mais e tivesse a maior ‘hora/bar’ ganhava uma garrafa de champanhe ou uísque.” Nas noites do Bon Vivant, apertados em um cubículo, ou ocupando as calçadas da Morais e Castro – como acontece até hoje -, tocavam artistas como a cantora Ana Carolina em início de carreira, o músico Emmerson Nogueira e também Luizinho Lopes.

Todos estes espaços, e muitos outros que não foram citados na matéria, estão na memória afetiva da cidade. Até mesmo eu, enquanto escrevia, fiquei com saudade do que não vivi. “Quem sabe eu ainda monto um Bon Vivant?”, refletiu Ivan. Alguns destes bares, em uma segunda fase, mudaram de endereço, mas optamos por frisar os momentos de auge, além disso, são raros os registros em fotografia dos bares.

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