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Iran Molduras encerra suas atividades nesta quarta: ‘muito mais que só uma galeria’

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Para a família de Iran, moldura também é arte e, até a data de fechamento da loja, os quadros do acervo estão sendo vendidos com desconto (Fotos: Leonardo Costa)
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Houve um tempo em que quando se subia até a sobreloja da Iran Molduras, na rua Batista de Oliveira, encontrava-se Dnar Rocha pintando uma de suas telas. Encontrava-se ainda um tanto de gente que mensalmente ia à galeria para apreciar o que de mais novo os artistas da década de 1980 e 1990 estavam produzindo. Além de Dnar, Carlos Bracher, Silvio Aragão, Stehling, Arlindo Daibert, Jayme Aguiar, entre tantos outros nomes da arte juiz-forana. Houve um tempo em que Flávia Rangel, a filha de Zaira e Iran Martins da Silva, depois de sair de uma aula de artes e descobrir que vermelho e azul dá roxo, contou a novidade para Dnar Rocha que, prontamente, a convidou para, então, testar a mistura em tela. Ela achou que, como para ela era novidade, para ele também seria. Foi uma criança imersa mesmo na arte, que frequentava a Iran Molduras assiduamente e, às vezes, de forma tão corriqueira que, só anos mais tarde, percebeu o que vivia era extraordinário mesmo: ter esses artistas como família, aprender com seu pai e sua mãe que moldura é também arte, e arte é coisa séria.

A Iran Molduras fecha nesta quarta-feira (20), 43 anos depois de ter sido criada por Iran, morto em decorrência da Covid-19 em 2021. Com o fechamento, o legado que construiu, no entanto, não fica apenas no núcleo familiar: é coisa que vai ser levada por todo mundo – cada um que pisou na loja, que entrou por ali, muitas vezes, apenas para conversar com Iran e Zaira, ou para deixar eternizado um momento em um quadro emoldurado, ou comprar a arte juiz-forana fresca, ou mesmo pedir conselhos artísticos de um cara que nasceu humilde e permanece gigante. Até a data de fechamento, os quadros do acervo da Iran Molduras estão sendo vendidos com desconto de até 80%. E, como Flávia alerta, é a data final para muitas pessoas que fizeram pedido de moldura e ainda não pegaram na loja.

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Encontros pela loja

Enquanto Flávia recorda toda a trajetória da loja, que envolve sua própria história, Zaira faz as ordens da casa: leva cada cliente à sobreloja e mostra quadro por quadro, conta as histórias por trás deles. No térreo, ajuda o cliente a escolher a moldura que mais combina com o quadro ou com a foto. Fica por tempos pegando a arte, colocando a moldura, fazendo os encaixes – tudo para deixar a arte ainda mais bonita. Quando se olha de primeira, parece que Zaira nasceu imersa também na área. Mas, não. Na verdade, nem Iran.

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Iran veio de uma família humilde. Precisou ser engraxate e catador de esterco. Até que começou a trabalhar em uma galeria de arte como auxiliar e decidiu abrir sua própria. “Ninguém sabe disso. Mas aconteceu. Ele teve uma sensibilidade de se desenvolver nesse meio que eu não sei da onde que ele tirou a força para poder se inserir. Ele não tinha nem estudo completo”, afirma a filha. Abriu a Iran Molduras em 1980 e, aos poucos, foi adentrando no mundo da arte. “Ele começa pela moldura e acaba conhecendo artistas, que viraram amigos mesmo. No final da década de 1980, ele monta a galeria, porque muitos artistas o presenteavam. De moldureiro, tornou-se ainda marchand dos artistas. A história do meu pai não é de amante da arte. É muito mais um encontro dos dois mesmo, ele e a arte, de ver a possibilidade de uma nova realidade, de um novo futuro para ele.”

Zaira e Flávia passaram as principais cenas familiares na loja, onde guardam suas memórias afetivas (Fotos: Leonardo Costa)

Já Zaira, filha de costureira, formou-se em educação física. Na sua formatura, foi à Iran Molduras fazer um orçamento para o quadro típico da ocasião. E foi lá que conheceu Iran. E, de certa forma, permaneceu. “Então, minha mãe também não cresceu no meio artístico”, enfatiza Flávia. Só que, anos mais tarde, já casados, Iran teve uma hérnia, e o primeiro filho do casal tinha acabado de nascer. “Minha mãe assume a loja para o meu pai ficar de repouso da cirurgia. Só que ela nunca mais saiu da loja.” Zaira passa a participar das exposições, se envolver na galeria e, com isso, na prática, aprende a, como Iran, transformar a moldura em arte também. É uma história que envolve a família toda. As principais cenas familiares se passaram ali dentro. As memórias afetivas. Os desafios e as decisões mais importantes. “Nossa vida toda está aqui. A loja entra em todos os momentos”, resume Flávia.

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‘Arrumar a casa’

Em 2021, no entanto, Zaira e Iran pegam covid-19 e começam o isolamento. O quadro de Iran foi piorando até que ele faleceu em abril daquele ano, mesmo dia em que Zaira recebe alta, hora depois da morte de seu marido. “Foi um mix de sensações naquele momento”. A loja estava lá e precisava ser aberta, de alguma forma. “Com o falecimento do meu pai, a gente encontra o desafio de continuar sem essa mente genial de conexão de pessoas”. A decisão da família foi, ainda, cuidar de Zaira. “A gente passou a focar no descanso dela, mas, para isso, a gente precisava arrumar a casa”. Primeiro, fecharam a parte ao lado da loja. “Foi um processo feito aos poucos”. Pensando, ainda, na vontade que Zaira tinha de se aposentar aos 60. O que acontece agora com o encerramento das atividades na loja.

Para fechar, arrumar a casa envolve entender verdadeiramente e dinâmica da coisa. “Porque ele e minha mãe tem todas as informações na cabeça ou no ‘papelim’. Eu fui pegar as informações e não consegui, porque tudo era no ‘tête-à-tête’, no ‘papelim’, na amizade. As pessoas perguntam certificado de autenticidade e não tem, porque era amizade mesmo. A gente tem dado a garantia da convivência dele com os artistas. Era tudo amigável, tudo muito de coração. Foi a história que a gente construiu.”

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Flávia se viu imersa nesse mundo, principalmente com a ideia já concreta de que a Iran Molduras seria fechada. “Meu pai emprestou um monte de obra em papéis distribuídos. E a letra dele era ilegível. Teve gente que deixou quadro consignado e ele anotou no papelzinho. O luto é complexo, pois tem as boas memórias e tem uma saudade. Porque várias vezes, na loja, eu pegava um papel que ele deixou e não fazia ideia de quem era a pessoa que estava escrito ali. Foram três anos de muitos códigos sendo decifrados e isso em um processo de luto de tentar acessar informações que estavam só na cabeça do meu pai.” Até que a hora chegou: a casa estava arrumada, pronta para ser esvaziada.

Nesse processo, anunciado no início de dezembro, foi ainda uma oportunidade para Flávia ficar mais próxima da história de seu pai. Histórias essas que nem ela imaginava. No primeiro sábado de casa preparada para fechar, ela lembra que um tanto de gente chegava até ela para contar como seu pai era gentil e genial. Ao mesmo tempo, certo da herança, pedia conselhos de moldura. Hoje, Flávia trabalha com arte. Porque é o caminho que tinha que ser por ali.

“É muito mais sobre o descanso da minha mãe e entender que cada um tem o seu ciclo. Tem uma cobrança por continuar aberto. Mas não é só a gente que tem que continuar com esse legado. É muito um convite para que todo mundo siga o legado. E eu continuo o legado do meu pai onde eu estiver. A responsabilidade não é só nossa. Não é encerrar um ciclo. É convidar para um novo ciclo. Porque é muito peso nas costas de uma família. Tem que continuar. A gente encerra porque tem outras prioridades. Eu acho que a gente encerra, mas a missão continua”, enfatiza. “O legado do meu pai e da Iran Molduras é esse: tratar a arte com esse olhar visionário. É muito mais que só uma galeria. Muito mais.”

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Flávia conta que, desde o anúncio do fechamento da loja, tem experimentado a oportunidade de ficar mais próxima da história de seu pai (Foto: Leonardo Costa)

Lamento é só saudade

Pelo Instagram, vários comentários de pessoas que afirmam que vão sentir falta desse ponto de referência, lugar onde tantas histórias aconteceram. Irene Barros, presidente da Associação De Belas Artes Antônio Parreiras, também lamenta o fechamento, mas afirma que, realmente, o legado segue em cada um. “Na reunião que fizemos, foi unanimidade o carinho por Iran. Ele participava de várias atividades na Belas Artes e sempre ajudou muito a gente. Ele era um maravilhoso entendedor de arte, conhecia muito. E deixa um legado importante, junto com a loja.”

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