Vidrado, o menino olhava as muitas televisões empilhadas na porta de uma loja de eletrodomésticos no Centro de Barbacena. Mais um parou para observar os aparelhos. E outro. E mais outro. Pouco a pouco, a porta do estabelecimento se encheu de gente para assistir as cenas finais do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Há 14 dias de completar sua primeira década de vida, o pequeno Josimar Júnior da Silva, absorto na cena, encantava-se com os televisores que nunca teve em casa – só na dos vizinhos – e também com o movimento de gente. Uma comoção. De volta à zona rural de Ibertioga, município de cerca de cinco mil habitantes a menos de 50km de Barbacena, o garoto acompanhou o desenrolar da história pelo já íntimo rádio.
“Sempre gostei muito de ouvir rádio. Sou torcedor do Botafogo e sempre ouvia as transmissões da Rádio Globo e da Rádio Nacional. Da Solar eu ouvia ‘As mais pedidas’, na tarde. Sempre fiz os exercícios da escola ouvindo música. Era uma atividade diária. Lembro que antes de meu pai sair de casa para trabalhar, ligava o rádio. Só fomos ter televisão quando nos mudamos para Juiz de Fora. Lá na roça, era a rádio que nos dava as notícias de fora”, recorda-se ele, que já aos 6 batia feijão, colhia café e ajudava no que mais fosse necessário. “O diferencial do rádio é que você ouve fazendo outras coisas. Na roça, não dá para parar, e o rádio vai acompanhando. Se estava lavando uma roupa, tirando leite, limpar o terreiro, o rádio ficava ligado”, comenta o homem de 34 anos e um diploma a lhe ofertar o microfone ao invés da caixa de som.
Do dia em que assistiu à saída de um presidente do governo da calçada, Josimar não se esqueceu. E tratou de ser lembrado quando uma nova saída se deu. “No impeachment da Dilma, eu já estava levando a história às pessoas. Era através do meu texto que muitas pessoas acompanharam nas rádios. Vivi a mesma história em posições diferentes”, emociona-se o então estagiário da Rádio CBN. “Esses momentos do jornalismo são indescritíveis”, comenta o jornalista formado há alguns dias. Entre pães e notícia, um elo: “Padaria é como o jornalismo: não tem hora certa de parar. Se o pão estiver no forno, tem que esperar.”
Da vontade de estudar
A mãe, Terezinha, estudou até a quarta série. O pai, Francisco, sequer fez o primário. Ainda que calado, o casal vibrava todas as vezes que o filho saía para a aula. Mas o horizonte era curto na pequena Ibertioga. E quando, aos 11, o garoto conheceu Juiz de Fora, outras perspectivas lhe foram apresentadas. Antes, porém, era preciso trabalhar. Em 2002, um conterrâneo arrumou-lhe seu primeiro emprego. “Todos os dias acordo às 4h da manhã, praticamente de segunda a segunda, porque trabalho dois domingos por mês”, conta ele, que, às 5h, bate ponto na padaria do mesmo Linhares onde mora. “Tive a oportunidade e aprendi fazendo. Comecei como ajudante, pesando a farinha, depois fui pegando na massa, até que soube fazer. Acho que tenho uma predisposição, por isso tive facilidade. Gosto de culinária”, diz, explicando um ofício que a cada dia apresenta uma demanda específica, tanto de pães quanto de bolos, além de exigir uma técnica quase alquímica. “Não pode apressar muito o fermento, porque se não o pão fica oco e branco. Quanto mais tempo fermentar, melhor. Mas também não pode pôr muito fermento, porque pode até dar cheiro”, comenta o padeiro que, às 13h, sai do trabalho deixando pães para serem assados na parte da tarde, horário desde 2011 ocupado pelo sonho. “Sempre tive vontade de fazer jornalismo, mas ninguém da minha família falava para fazer vestibular. No último ano da escola, quando me atentei para a data, já tinha passado”, lembra. Era 2000. No ano seguinte, não fez a prova. Dois anos depois, retornou às salas de aula, para o Curso Preparatório para Concursos, o CPC, da Prefeitura, e prestou o vestibular. Reprovado, tentou em mais cinco oportunidades. Aos 28, sentou-se na cadeira da Faculdade de Comunicação da UFJF pela primeira vez. “O choque foi grande. Vim do interior, da escola pública, e, pela minha idade, tudo era muito diferente”, diz. Ao longo dos anos, a diferença foi deixando de existir. “Dei a sorte de encontrar gente muito boa. Minha turma era mais humilde e me ajudou muito.” No esforço de muitas vezes ter apenas uma hora para almoçar e chegar à faculdade, saindo às 23h para acordar e trabalhar cinco horas depois, Josimar pensou na família. “Acho que eles se realizaram na minha formatura. O meu sonho passou a ser o deles também.”
Do compromisso de ser exemplo
Ibertioga tinha o calor dos afetos e a aridez da mesa escassa. O mais novo dos três filhos do retireiro e da lavadeira, Josimar recorda-se do tempo difícil na terra onde teve o umbigo enterrado. “Era tranquilo, mas não tinha quase nada. Com o pouco que tinha, a gente vivia bem. Só tinha o básico. Só meu pai trabalhava, na roça, com um salário que, praticamente, ficava só na comida. Lembro da época da inflação do início dos anos 1990, que ele fazia compra na cidade e deixava quase o salário inteiro.” Em 1993, porém, o casal mudou-se. Josimar ficou. “Continuei estudando em Barbacena, até completar a quarta série, vivia na casa dos meus avós. Minha avó, Maria Raimunda, era minha última avó, e a gente se apegou muito. Os outros netos até falavam que eu era o preferido dela. Hoje quando falo dela me emociono, porque era um amor fora de série”, diz, engolindo seco, referindo-se à mulher que não teve tempo de ver o neto formado. “Ela queria que eu ficasse sempre lá, para ficar mais próximo dela. Mas via que não tinha jeito. Antes de arrumar emprego na padaria até tentei ficar por lá, mas não deu certo”, conta ele, que passou a morar na terra de Itamar Franco justamente no ano em que o juiz-forano despediu-se da presidência. “Meu pai quis tentar uma vida diferente. Ele já tinha uma irmã que morava aqui e veio, com a cara e a coragem. Por sorte, minha tia já trabalhava como doméstica e conhecia muita gente e o indicou para trabalhar como porteiro, que é a função dele até hoje. Minha mãe trabalhou, até 2005, como doméstica também, até que teve, João Vítor, um filho temporão, e precisou parar”, conta ele, que há 12 anos deixou de ser o filho caçula. “Para meu irmão, acabei me tornando o espelho.” Para todos.