As memórias, afetos e saudades que carregamos dos momentos em família são tesouros imateriais, mesmo que ainda possamos registrar momentos especiais em fotografias, vídeos. Mas a maior parte do passado fica nas lembranças, nos registros orais, e sorte de quem tem sensibilidade para transformar isso em música, livro, teatro, dança, pintura… cinema. A estudante do IAD Helena Frade se valeu de registros audiovisuais de sua família feitos na infância e adolescência para o premiado “Vida em um melão”, curta que mistura documentário e ficção e será uma das atrações da Mostra Competitiva Regional do 4º CineBaru, que terá sua edição on-line entre os próximos dias 23 e 27. A produção também foi selecionada para participar, em novembro, do 15º Festival ComuniCurtas, na Paraíba, e no 10º Circuito Penedo de Cinema/10º Festival de Cinema Universitário de Alagoas.
O curta-metragem já possui uma trajetória em vários festivais, incluindo o 3º Festival de Cinema de Rua de Remígio (Paraíba); 15º Festival Taguatinga de Cinema (Distrito Federal); 12th International Inter-University Short Film Festival (IIUSFF), em Bangladesh; 4º Festival Ecrã (Rio de Janeiro); 2º Festival de Cinema no Meio do Mundo – FESTCIMM Garanhuns (Pernambuco). A resposta da crítica e público pode ser vista nas conquistas até o momento: Prêmio Seu Zé (Remígio); prêmio de Melhor Direção de Arte (Remígio); prêmio ComuniCurtas 15 anos, Melhor Som, Trilha Sonora e Direção de Arte, além de Menção Honrosa da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (FESTCIMM).
Equipe com mais de 20 pessoas
“Vida dentro de um melão” foi realizado por Helena como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do bacharelado de cinema e audiovisual da UFJF, com supervisão de Alessandra Brum, e teve na equipe de produção alunos de vários cursos da instituição, como cinema, moda, artes visuais e design.
“Este filme só foi realizado porque tive o suporte do curso de cinema e audiovisual, do IAD, professores e demais funcionários e das amigas do curso. Nós filmamos a animação com uma câmera profissional disponível no Estúdio Almeida Fleming para uso dos alunos do curso. Se eu fosse alugar estes mesmos equipamentos em alguma produtora/locadora, por exemplo, dentro das limitações do orçamento do filme, não conseguiríamos pagar. É questão de importância política e social significativa ter acesso a equipamentos profissionais de filmagem e de edição como temos em uma universidade pública”, ressalva.
“Trabalhamos com uma equipe consideravelmente grande para o padrão de um filme universitário. Éramos ao todo 24 estudantes de vários cursos”, continua. “Todas as pessoas se envolveram e abraçaram o filme com muita dedicação, profissionalismo e carinho, na base da amizade e da confiança. Outro exemplo muito importante foi o fato de o Pedro Baapz, que assina o som do filme junto à Stella Maria Flor, ter cedido o estúdio Mixirica Recs como espaço para desenvolvermos as gravações sonoras do curta-metragem. Um salve para essa galera toda.”
Relíquias de família
Entre os motivos para uma equipe tão grande está a decisão de usar as fotografias e vídeos feitos por ela na época que moravam na mesma casa a própria Helena, os pais, a irmã e os avós, mescladas à animação que transforma a obra não apenas em uma homenagem à família, mas transforma o curta com um visual onírico e de fantasia e poesia.
“Ter passado um período da adolescência/juventude filmando e fotografando minha família foi um privilégio. A princípio eu nem cogitava a possibilidade de usar esses registros em um filme, era mais uma experimentação com a câmera. Só resolvi fazer o curta-metragem utilizando estas imagens durante a graduação em cinema e audiovisual quando conheci alguns trabalhos e artistas que me chamaram a atenção para a possibilidade de fazer cinema a partir de registros caseiros e imagens já existentes. Depois disso, voltei o meu olhar para as coisas que havia filmado até então e comecei a pensar e a desenvolver o filme tomando como partida estas imagens”, explica.
Nostalgia e “pirações”
Ainda de acordo com a jovem cineasta, o exercício de filmar a família sempre guardou um quê de estranheza, pois muitas vezes imaginava que o registro mais recente poderia ser o último dos avós. Por isso, escolher as imagens tornou-se um desafio de edição e montagem. “Quando assistia (às filmagens), meus sentimentos eram revirados de uma forma nostálgica muito forte. Além disso, eu tinha anos de registro, mas não queria que totalizassem mais de 5 minutos de tela, com medo de que ficasse cansativo. Como montadora, a estratégia que utilizei para abarcar um pouco mais de filmagem foi utilizá-las de forma acelerada, o que se desdobrou como uma proposição metafórica sobre a ação do tempo em nossas vidas e sobre a fugacidade das memórias”, filosofa.
“Tentei fazer uma curadoria cuidadosa, ciente da responsabilidade que envolveria a exposição dos meus familiares. Ainda durante essa etapa, deparei com diálogos bem interessantes que não recordava de ter filmado. Em alguns vídeos havia umas ‘pirações’ coletivas, umas viagens sobre disco voador, que optei por usar em sobreposição a outras imagens.”
Sobre o uso de bonecos/marionetes, ela cita a influência do filme “Branco sai, preto fica”, de Adirley Queirós, que tem uma cena em que aparece um cartaz com os seguintes dizeres: “Da nossa memória fabulamos nóis (sic) mesmos”. “‘Vida dentro de um melão’ surge muito dessa proposta de fabulação sobre algumas memórias e de inventar novos significados e outros mundos a partir de imagens já existentes. Nasce também da necessidade de me conectar com um cinema de invenção e de afeto. Era importante para mim que fosse uma realização possível, dentro da nossa limitação de orçamento”, afirma.
Foi a partir dessas questões que surgiu a ideia de assumir e incorporar o que ela chama de “o tosco e o precário” como forma de propor uma subversão destes códigos, usando essas estratégias como força estética. “É um pouco por isso que o filme assume umas estranhezas, através de uma estética cuidadosamente artesanal, desde a dublagem imitando a voz de meus familiares com bordões um tanto quanto caricatos, à despreocupação em mostrar os fios de nylon que movimentam os personagens. Ainda que o filme tenha aspectos oníricos e utilize estratégias características da ficção, gosto de pensá-lo como documentário até para puxar o tapete da igrejinha desse gênero cinematográfico.”
“Rito de passagem”
Se a proposta de “tosco e precário” + a duração do curta (17 minutos) podem dar a ideia de que o projeto foi de rápida e fácil execução, Helena Frade deixa claro que não. Segundo ela, foram dois anos de muito trabalho, pensando nas etapas de produção, em tornar o filme realizável e ainda ter que lidar com as cargas emocional e afetiva. “Olhando hoje, me parece que em certa medida o curta-metragem foi quase um rito de passagem, uma forma pessoal de lidar com o luto e com algumas transformações próprias da vida. É um retornar para casa, mas é também um voar para outros mundos, sozinha e acompanhada ao mesmo tempo”, reflete.
Dentre os detalhes que justificam o longo prazo de produção, Helena conta que os cômodos e cenários são praticamente uma réplica da casa original, em que a diretora de arte Ana Paula Romero lidou com todas as proporções originais das maquetes. Detalhes que passariam despercebidos a quem nunca frequentou o imóvel, como os descascados nas paredes, foram reproduzidos, assim como as plantas e desgastes dos móveis, além das camadas de tecidos.
“Isso fica perceptível quando uma cena de filmagem caseira é complementada por uma cena de animação, e vice-versa. Às vezes esses dois tipos de imagens podem até se confrontar, mas em sua maioria, elas se complementam. Acredito que a poetização e as livres distorções através da animação não deixam o filme menos verdadeiro ou menos relacionado a um real. A animação e as imagens de arquivo são só estratégias diferentes para falar das mesmas coisas: as memórias daqueles tempos, do cotidiano em família, da vida vivida com aquelas pessoas, a partir do meu olhar e subjetividade”, argumenta.
“Tem umas partes do filme que são engraçadinhas, principalmente quando defino cada um deles a partir de bordões caricatos, mas ao mesmo tempo tem instantes que são um pouco mais duros de engolir. Foi curioso porque eles mesmos se identificaram com algumas escolhas depois de assistirem. Confesso que durante o processo achei perigoso ‘traduzi-los’ através de pequenas frases e gestos, até porque não é possível resumir alguém assim. Mas o filme assume essas brincadeiras íntimas, essas implicâncias, através destes recortes.”
Ela cita o exemplo da avó, que assistiu ao curta duas vezes. “Ela relatou que se ver na tela com imagens da família reunida deu muita saudade. Eu, minha mãe, meu pai e minha irmã já perdemos a conta de quantas vezes assistimos. Não tem uma vez que meu pai não chora. É um filme de afeto, que mexe bastante com as nossas emoções.”
Reconhecimento de público e crítica
A recompensa para tanto trabalho, além da questão afetiva/familiar, está no feedback obtido entre público e crítica nos festivais dos quais “Vida em um melão” já participou. Helena confessa que um de seus medos era que o filme, por se tratar de um tema tão pessoal, fizesse sentido apenas para seus familiares, mas que a recepção e retorno do público têm sido positivos. “Ele causa uma certa identificação por parte de algumas pessoas, porque acaba tocando em determinadas questões mais ou menos universais, como o cotidiano, a memória, a família e o mundo que parece inconcebível sem alguém que a gente ama. Saber que o filme interessa a outras pessoas importa muito para mim”, comemora.
“Fico muito feliz de ter a oportunidade de exibir o filme publicamente, estar participando de debates, ouvindo e conversando sobre o curta-metragem com outras pessoas”, prossegue. “Gosto de pensar como o filme está sempre em construção, se alimentando de novas histórias a cada vez que o exibimos. Outro dia recebi um e-mail de uma pessoa que assistiu ao filme e me escreveu suas impressões. No fim, tinha uma poesia que ela fez inspirada em uma parte do filme. Esse gesto mexeu bastante comigo. É gratificante receber um retorno, seja ele acompanhado de críticas negativas ou positivas; o interessante é o filme estar em movimento, sendo pensado e discutido por diferentes olhares e perspectivas.”
Enquanto “Vida dentro de um melão” prossegue o caminho bem-sucedido em festivais, Helena Frade tem aproveitado a pandemia para trabalhar com as possibilidades de experimentações em montagem audiovisual e de fazer cinema a partir de imagens já produzidas.”Mas venho nutrindo essa prática como uma forma de exercício mesmo, sem maiores ambições, pelo menos a princípio. Estudo no mestrado em artes, cultura e linguagens da UFJF e estou desenvolvendo uma pesquisa teórica na linha de cinema e audiovisual, o que tem sido meu foco principal e maior empolgação no momento. Desejo muito fazer outros filmes, e tenho algumas ideias relacionadas à animação que pretendo amadurecer para realizar no futuro, se for possível. Por enquanto, estas propostas estão no campo da intenção, soltas em papéis.”