
Há 21 anos, Mônica Rangel comanda a estrelada cozinha em Visconde de Mauá
Pertencer é ser, muito mais do que estar. Nascer foi o bastante para a menina que aos 3 anos saiu de sua Juiz de Fora natal e mudou-se para Niterói com a família. “Voltava, porque muitos parentes ficaram na cidade. Crio meus filhos, por mais que sejam cariocas, como mineiros. Morei pouco, mas todo mineiro é assim: mesmo que não viva no estado, carrega no coração”, emociona-se Mônica Rangel, a mulher que carrega na memória os afetos de um lugar que habitou parte da sua infância, no comportamento e nos sabores. Dona de um onipresente sorriso e de grandes olhos azuis, a chef do restaurante Gosto com Gosto, em Visconde de Mauá (RJ), me recebeu para um almoço, no último domingo, vestindo sua dólmã florida, com uma calça de ginástica azul marinho e sapatos plásticos pretos. Em minutos, fez invisível qualquer formalidade (somos conterrâneos, parece dizer) e deixou que me sentisse em sua casa.
Quando resolveu abandonar a ascendente carreira de secretária executiva numa gigantesca empresa de cigarros, Mônica ambicionava sentir-se em casa, com filhos e amigos. “Viemos, eu e meu marido, passear aqui e percebemos que não havia contador, a profissão dele. Pensamos em tentar mudar a vida. Ficamos um ano vindo todos os finais de semana, com ele pegando clientes e levando para o escritório no Rio de Janeiro, onde morávamos. Quando acabou o ano letivo, nós e as crianças optamos por nos mudar”, conta ela, há mais de duas décadas no pequeno distrito de Resende, no Sul fluminense. “Fiquei seis meses ajudando meu marido e cuidando das crianças. Como sempre trabalhei na vida, decidi abrir um café. Tínhamos a primeira máquina Xerox, o primeiro café espresso do local, e dali foi crescendo. Tinha pão de queijo, empadão, fazia panquecas, torta de limão. De repente, decidimos montar um restaurante”, recorda-se.
Sem formação na área, ela se aproximou do fogão a lenha e das raízes, certa de que ali estava o estilo de vida no qual desejava construir sua história. “Há 22 anos, quem sairia de casa para comer num restaurante mineiro? Queriam risoto, massa ou comida francesa. E mulher na cozinha era feio. Mas eu tinha isso em mim. Minha memória gustativa é do que sempre comi a vida inteira, então, para chegar à excelência, é muito mais fácil ir por esse caminho”, afirma. “Ninguém entendia o que ia fazer numa terra onde todo mundo era hippie. Foi uma opção de vida, de querer viver com minha família, no mato, num lugar frio onde não tem barata (sempre tive horror), mosca, pernilongo, nada de ruim”, brinca. Em pouco tempo, a mãe que se acostumou a pensar em cada detalhe das festas dos filhos (do bolo à decoração), a amiga que sempre gostou de abrir a casa para jantares, a juiz-forana que nunca se esqueceu das férias no Bairro São Mateus tornou-se referência. Considerada pelo “Guia Quatro Rodas” a melhor chef da gastronomia mineira no país, a jurada do reality show “Cozinheiros em ação”, do GNT, exibidos às quintas-feiras, viu suas verdades ganharem o país.
Em defesa do saber regional
Na vila principal de Mauá, o restaurante, que serve arroz em panelas esmaltadas e se orgulha por fazer a própria linguiça (antes, Mônica só comprava as feitas em Juiz de Fora), traz na base a casa de sua responsável. “Mamãe cozinhava pouco, mas o que fazia era muito gostoso. Tinha doces fantásticos e era muito caprichosa. O melhor frango com quiabo que já comi era o dela”, recorda-se Mônica, que, para montar seu cardápio, retornou ao estado de origem. “Fiz um tour por vários restaurantes mineiros. Um pelo qual sou apaixonada é o Xapuri (em Belo Horizonte), de dona Nelsa. Na época, tinha 400 lugares. Hoje tem mil. Foi ela quem me falou para fazer cada prato separadamente e me chamou para ajudá-la. Vi como era fazer em grande quantidade, que não é só multiplicar a receita.”
“Tudo foi acontecendo, sem querer querendo. No mesmo ano em que fui convidada para a Boa Lembrança (associação na qual os restaurantes integrantes disponibilizam pratos em cerâmica como recordação para seus clientes), ganhei uma estrela do ‘Guia Quatro Rodas’. Duas estrelas? (que também ganhou) Deus me livre isso! A exigência, minha principalmente, é enorme”, ri Mônica, que também se tornou pioneira por um projeto em navios. “Sou de insights na vida. Um dia, com três anos de restaurante, acordei com uma ideia na cabeça e escrevi para a Costa Cruzeiros um projeto de cruzeiro gastronômico. Chamaram-me, visitei os navios e depois começamos. Eram 1.800 pessoas num navio, e fizemos cinco jantares na primeira vez. Cerquei-me de chefs com mais experiência, e foi um caos, porque ninguém sabia como era trabalhar num navio. Hoje, tiramos de letra”, explica.
Em 2012, a mulher de gestos simples, que a todo momento fala do marido e dos filhos, assumiu um de seus maiores desafios. “Um dia, quando acordei, ouvi o ‘Bom dia Brasil’ contando que os hotéis passariam a adotar as estrelas da Embratur e, para ter cinco estrelas, era preciso ter um restaurante de comida internacional. Pensei: Pelo amor de Deus! Vamos continuar assim? Cadê o Brasil? Fui pesquisar e vi que o presidente da Embratur estava mudando e seria o Flávio Dino. Procurei por ele e achei seu Twitter. Enchi o saco até que ele me passou um e-mail e e, cinco dias depois, estava em Brasília conversando sobre o assunto”, lembra ela, presidente da Associação Brasil à Mesa, que fez um acordo de cooperação técnica com o instituto do Governo, realizando todos os eventos preparatórios para a Copa. “Levei 24 chefs diferentes para 14 países”, enumera.
A bandeira na qual acredita, Mônica carrega no braço, em forma de tatuagem. “Naquele momento, resolvi tatuar ‘Gastronomia Brasileira’, porque havia um bairrismo muito grande. Temos que ser bairristas aqui dentro, fora do país temos que ser Brasil, apenas. Aqui dentro, sou mineira até debaixo d’água”, defende a avó de Ana, nome que aparece em tatuagem no outro braço. Elogiada entre os chefs mais famosos do país, como Alex Atala e Flávia Quaresma, a mineira tornou-se, naturalmente, uma acertada escolha para servir como jurada do reality gastronômico de maior sucesso na TV fechada brasileira. Diante de Mônica, estão pessoas que, assim como ela, quase ao acaso, também se descobriram cozinheiras. Questionada sobre o preço da fama, ela é direta: “Se eu morasse no Rio ou em São Paulo, a visibilidade seria maior. Não vou dizer que não gosto, mas não é algo que me norteia. Não cheguei a lugar algum. Tenho muito a aprender”.
‘A comida brasileira é um mundo’
Na cozinha de Mônica Rangel, há os controversos colher de pau e tacho de cobre. Tradição, ali, é imperativo. Mas há lugar para a evolução, como em toda história. “Tutu é sagrado para mim. Com o frango com quiabo, já brinquei. Fiz um frango com canela e um arroz de quiabos”, diz. O que não pode faltar? “Amo arroz com feijão e farofa”, ri a chef que, por conta das custosas e distantes viagens para comprar doces mineiros, decidiu fazer os próprios. Claro, no doce de leite ela não pesa a mão no açúcar e deixa em destaque o sabor do leite. Para não gastar cerca de quatro horas na estrada até Juiz de Fora, começou a fazer a própria linguiça, que não leva gordura e se utiliza das melhores partes da carne (a de frango é feita, apenas, com o peito).
“A excelência é uma linha tênue. Como saber o que é o melhor? Às vezes, as pessoas vêm com uma expectativa gigantesca. Não. É uma comida boa, só”, pontua, no desejo de que o gosto de Minas e Brasil se destaquem em seus pratos. “Tenho muito orgulho de ser brasileira e luto muito para valorizarmos mais o que é nosso. Temos muitas técnicas de cozinha, que podem até não ser consideradas certas, mas são nossas. A comida brasileira é um mundo”, comenta, ensinando-me, logo em seguida, a cozinhar o feijão sem utilizar a temida panela de pressão. “Não gosto de nada que apresse o tempo natural”, diz, em consonância com sua Mauá, cidade na qual o relógio parece girar de maneira diferente.
* O repórter viajou a convite da Maua Tur