Mais uma vez, quando Sandra Portella rumava para o silêncio, a música lhe chamou. Foi assim a vida toda. Dos tempos de menina, no vaivém da quadra da Juventude Imperial com a mãe Lecy do Samba, aos tempos em que cantava no banheiro do supermercado onde trabalhava como operadora de caixa e um amigo cozinheiro lhe encorajou a seguir a carreira artística. Nesta terça, 17, quando a dor da violência calava fundo, a música lhe gritou. No mesmo dia em que revelou sofrer agressão física e psicológica do namorado, a cantora viu seu nome ao lado do de Leci Brandão e Ana Costa. A juiz-forana – crescida nos morros da Zona Leste, entre Vila Olavo Costa, Furtado de Menezes e Vila Ozanan – é uma das três indicadas na categoria melhor cantora de samba do Prêmio da Música Brasileira, cuja cerimônia de premiação acontece no dia 15 de agosto, no suntuoso Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
“Sonhei com isso a vida inteira. O samba sempre esteve na minha vida”, comenta ela, que estreou cantando na banda Angu de Caroço e, depois, integrou a Realce, nas suas palavras “uma escola de banda de baile”. “Chegou uma hora em que o samba falou mais alto na minha vida, me chamou e eu fui com ele”
Numa fase profissional de muito alegria, Sandra segue com uma agenda cheia, já se apresentou em Curitiba e São Paulo e hoje divide-se entre a terra natal e o Rio de Janeiro. “Há muito tempo venho, como boa mineira, comendo pelas bordas”, ri a mulher, que se apresentou pela primeira vez na Cidade Maravilhosa nos bares da Lapa, levada pelo amigo e músico Carlos Fernando Cunha. No próximo sábado, a cantora faz show em Juiz de Fora, no evento Botecada.
A indicação chega no ano em que a cantora se prepara para interpretar um dos sambas-enredos da Portela, escola do coração, de autoria de Marquinhos do Pandeiro. Responsável pelo alusivo, que introduz o samba, e integrante do coro que gravará a música para o concurso na Azul e Branco, Sandra reverenciará uma de suas maiores inspirações, a também mineira Clara Nunes, homenageada da agremiação carioca no carnaval de 2019. Ao lado do carnavalesco Milton Cunha, Sandra se apresenta por casas de shows e teatros do Rio no espetáculo “Palavras e canções”, no qual ele conta e ela canta histórias de amor e de desamor. “Exaltamos a mulher e sua força e também as dores das relações”, pontua ela.
Dirigido e produzido pelo maestro Rildo Hora – que por muitos anos acompanhou ao violão Elizeth Cardoso e outros grandes nomes -, “Banho de fé”, o disco com que Sandra Portella foi indicada ao maior prêmio musical brasileiro, apresenta uma cantora à vontade com diversas nuances do samba, num repertório que exalta sua religiosidade e certa fé na música. Com participação dos sambistas Martinho da Vila e Moacyr Luz, o disco revela o amadurecimento de uma artista que carrega no sangue notas musicais. Além da mãe, o pai também era envolvido com o samba. Valdir Delgado, conhecido como Guida Tirote, era compositor na Imperatriz Leopoldinense e vivia às voltas com a turma do Cacique de Ramos.
O álbum recém-lançado, inclusive, trouxe à Sandra outras alegrias. Na divulgação do trabalho, numa reportagem veiculada num jornal carioca, a família do pai entrou em contato com a cantora. Após o nascimento de Sandra, antes mesmo do registro em cartório, Valdir regressou para o Rio de Janeiro, onde havia nascido, e nunca mais viu a menina. Morreu há alguns anos, soube Sandra, que planeja o reencontro com os novos parentes. Presentes que seu “Banho de fé” lhe deu. “Costumo sempre me lembrar com um amigo músico: Quantas vezes a gente não tinha água para beber antes de um show! Quantas vezes não tínhamos camarim! E quantas vezes nós nem cantávamos! Foram muitas as conquistas. Essa indicação é, por si só, um prêmio para mim”, comemora.
A(s) voz(es) do samba
A cidade que assiste o carnaval de escolas de samba se deteriorar, com quadras em ruínas, e histórias pioneiras e robustas reduzirem-se a pó, é a mesma que apresenta no Prêmio da Música Brasileira dois indicados nas categorias de intérprete de samba. Além de Sandra Portella, Thiago Miranda é um dos três indicados a melhor cantor, ao lado de Criolo e Diogo Nogueira. Familiarizado com a premiação, o juiz-forano já havia participado por três vezes do concurso “Vale cantar”, que se apresentava como uma categoria do Prêmio, com composições dedicadas aos homenageados de cada ano e inscrição via YouTube.
“Foram nos três anos que antecederam o lançamento do meu primeiro disco. Em 2012, eu acabei ganhando. Em 2015 meu disco foi pré-selecionado, na categoria MPB, mas não foi indicado. Este ano eu estava na expectativa, mas sem muita esperança”
“É um prêmio muito comprometido com uma qualidade, com uma curadoria muito séria. Não é uma brincadeira”, comenta Thiago, referindo-se ao projeto idealizado e dirigido por José Maurício Machline e já em sua 29ª edição. Recém-lançado, o álbum “Samba pra elas” reúne reverências de Thiago às mulheres e, também, ao gênero no qual é louvado agora. “Compus o primeiro samba desse disco em 2012, no mesmo mês em que ganhei o concurso do Prêmio. Depois fiz um samba ali, outro aqui. Quando vi, tinha seis sambas para mulheres variadas, com um olhar que permeia mais a existência do que qualquer outra coisa”, pontua ele, que além de autorais, gravou “Maria do Socorro”, sucesso na voz de Maria Rita.
Num passeio por ritmos brasileiros distintos, Thiago mostra-se múltiplo, como nos shows que faz pela cidade. “O fio de costura é o samba”, revela, dizendo-se encabulado com o título de sambista. “Ser sambista é algo que transcende a paixão. É viver quase que exclusivamente para o samba. Até por sobrevivência eu sou um músico multifacetado. O samba é predominante, mas eu não sei se tenho a pretensão de ser sambista”, aponta o músico, que trabalha, junto de Zezé do Pandeiro, numa composição para o concurso de samba-enredo da Portela para o carnaval de 2019, em homenagem a Clara Nunes. “Amo o samba. E ser sambista, para mim, é uma honraria.”