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A poesia periférica do Slam de Perifa, que acontece no Santa Cândida

slam capa leo

(Foto:Lleonardo Costa)

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Qual a diferença entre poesia marginal e poesia periférica? Uma nova geração de poetas que surgem das comunidades brasileiras tem sido tratada como uma continuação da poesia marginal, movimento que começou na década de 1970, conhecido como Geração Mimeógrafo. Intelectuais, professores, poetas e artistas lançaram escritores completamente desconhecidos na época, fora dos principais eixos de cultura, mas que hoje já foram absorvidos e estão na academia, nos estudos literários, na música brasileira, como Paulo Leminski, Ana Cristina César e Torquato Neto. Portanto, o termo poesia periférica requer uma nova classificação. Os sujeitos agora são garotos e garotas de periferias, bairros descentralizados, onde a atenção do Poder Público é menor e a educação institucionalizada é escassa.

Integrantes do Slam de Perifa, Mohammed Silva, Chagas da Silva, Arthur Diego, Jô Brandão e Wanderson Zangão se reúnem na casa da líder comunitária Adenilde Petrina (no centro), no Bairro Santa Cândida (Foto: Leonardo Costa)

Um artigo publicado em São Paulo pela psicóloga social Gisele Poletto Porto, chamado “Poéticas periféricas: outras centralidades?”(2011), responde ao questionamento a partir da opinião de um educador social e poeta, Márcio Vidal Marinho. “Não por ser da periferia, mas por ter uma ideologia. A marginal já foi criada nos anos 1970 e a poesia da periferia é contemporânea. Posso estar em qualquer lugar e sempre representar a periferia. Pode-se falar da Lua sem tocar em periferia, mas continua sendo periférica porque o autor sabe da intencionalidade da poesia, é ideológico não sendo necessariamente explícito.” O autor defende a poesia periférica como aquela criada por quem vive na periferia sob as condições deste espaço, um bom exemplo nacional é o poeta Sérgio Vaz, que dos muros foi para as páginas dos livros.

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Filósofo do morro

Mohammed da Silva, 16 anos, é poeta slammer do Santa Cândida e foi um dos jovens que começou com o Slam de Perifa, inicialmente focado em acontecer somente na escola municipal do bairro, com total apoio da direção visando à aproximação dos estudantes a uma poesia que dá voz a eles. Atualmente, a ideia é que o Slam da Perifa aconteça mensalmente, sempre com uma edição na escola e outra migrando para outro bairro periférico da cidade. “Eu comecei a escrever com 12 anos. Uma professora de português apresentou a poesia em sala, e eu passei a criar rimas curtinhas, até que meu professor de história me apoiou e emprestou um livro, então pude ler e estudar. Mas eu não fazia as poesias que eu faço hoje, maiores, foi o slam que me pôs nessa e também me fez declamar na rua”, diz Mohammed, destacando que o livro foi um pontapé inicial, mas o que o fez continuar a se dedicar à poesia foi o rap.

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Cresceu ouvindo Racionais e se inspira nas letras do Criolo para escrever, seu conhecimento de rap se estreitou quando em agosto de 2017 começou a colaborar com o coletivo Vozes da Rua, e seu primeiro contato com os slams foi por meio dos vídeos do Slam Resistência (SP). “Rap é poesia com beat, muita gente quando começou no rap não tinha dinheiro para pagar um beatmaker, então fazia só a letra. Eu mesmo tenho vontade de um dia gravar um rap. Mas essa coisa de comprar beat não é fácil pra gente”, revela Mohammed, evidenciando que sua poesia slam já carrega na sonoridade o speedflow.

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Mohammed, 16 anos, tomou gosto pela poesia influenciado pelo rap, pela escola e pelo coletivo Vozes da Rua. Ele recita fazendo crítica social (Foto: Leonardo Costa)

Semblante sério, falas precisas e convictas, Mohammed recita sobre a violência policial, reflete sobre a política e as opressões da periferia, tudo o que escreve é crítica social. Aproximou-se do Vozes da Rua a fim de conseguir apoio e, juntos, não imaginava o impacto que aquela ação causaria. Hoje existem pelos menos seis poetas no Santa Cândida, afirma Mohammed, que já realizou quatro edições do Slam de Perifa. “A gente não quis fazer no Centro porque a maioria dos eventos desse tipo em Juiz de Fora acontece na região central da cidade. Falta levar para a periferia, onde tem gente que dança, faz rap, grafita.”

O conteúdo do que escreve vem muito dos livros que costuma ler da biblioteca comunitária do bairro, que fica na casa da líder comunitária Adenilde Petrina, que o apresentou à filosofia. “O coletivo faz uma vez por ano o Agosto Negro, então a gente estuda durante um ou dois meses um certo tema, se reúne, chama alguém que pesquisa o assunto e pode ajudar. As minhas fontes são a vivência com o Vozes da Rua, e cada ideia que eu troco com a Adenilde é um ensinamento, foi ela quem me despertou para a filosofia, uma paixão muito grande que tenho agora. Eu tenho lido Nietzsche, Platão e estou tentando colocar isso em minhas poesias.”

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Uma de suas letras mais famosas entre as batalhas de slam que participou chama-se “Mãe Preta”, escrita por ele enquanto estava sentado em plena Praça da Estação em horário de pico, observando mulheres negras que atravessavam seu caminho, sempre carregando bolsas, sacolas, como se voltassem de um dia de trabalho. “O sonho de qualquer pessoa que escreve é lançar um livro, e o coletivo tem a ideia de lançar um com as poesias do Slam de Perifa, e também queremos fazer zines para vender nas batalhas.”

O slam vem para contribuir com o hip-hop

A maioria das pessoas que se inscrevem para o Slam de Perifa está dentro da cultura hip-hop, seja do próprio bairro ou de outras regiões da cidade, como a Jô Brandão, Laura Conceição e Chagas da Silva. É por isso que muitas vezes o próprio hip-hop torna-se o tema da poesia slam, como uma metalinguagem. “Quando fizemos a oficina com o Del Chaves, de São Paulo, do Slam Resistência (SP), ele falou que quem colaborou na criação do Slam Resistência foi um B-boy, dançarino de break da cultura hip-hop”, conta Adenilde Petrina, que, desde a década de 1980, está envolvida com a cultura hip-hop do Bairro Santa Cândida e luta pela democratização da informação.

O estudo de filosofia e história está sendo a arma para os jovens de periferia entenderem e refletirem a própria realidade. Além de Nietzsche e Platão, estão tendo acesso a Frantz Omar Fanon, filósofo negro francês que muito contribuiu para as questões raciais. Arthur Diego Avelino, de apenas 14 anos, estudante do Santa Cândida, começou a se dedicar à poesia por conta do slam e está lendo “Crítica da Razão Pura”, de Kant, na intenção de transportar as ideias para o que escreve. “O slam está resgatando a força das letras de rap das décadas de 1980 e 1990. O rap estava distanciando de seu objetivo inicial de levar informação e consciência para as pessoas. Com o slam, está havendo um resgate dessa capacidade de informar”, acredita Adenilde no potencial do Slam de Perifa como uma possibilidade de se elevar a autoestima dos artistas de periferia.

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“Eu penso que no início da década de 1970, a maneira de a gente transmitir a informação era o Teatro do Oprimido. Vieram as rádios FM, e, no bairro, a gente tinha a rádio Mega, por exemplo. Depois começamos a passar a informação através do rap, que trouxe a consciência de que a poesia é importante para nos fazer pensar, já que não temos uma mídia que nos represente.”

Chagas da Silva: “A competição surge como uma maneira de enaltecer aquelas pessoas que tiveram uma performance mais intensa ou disseram o que mais pessoas precisavam ouvir naquele momento” (Foto: Leonardo Costa)

Revolução da cultura de rua

Chagas da Silva, 23 anos, escreve poesia desde os 15. Apesar de não viver no Santa Cândida e ter se mudado para Juiz de Fora há três anos, foi para o bairro participar logo do primeiro slam. “Para a poesia em si, o movimento slam é transformador, é como se fosse uma revolução da essência da cultura de rua. A poesia deva ser amplamente popularizada, as pessoas têm que ser acesso. Ela não pode ficar trancada dentro da biblioteca, da Academia de Letras, ou dentro da UFJF, como exemplo da cidade. Precisa acontecer fora dos locais fechados.” Sobre a lógica de competição dos slams, Chagas, que batalha também em outros slams da cidade, acredita que a principal ideia é a absorção da poesia do outro. “A poesia do slam sempre vence, porque a gente só consegue se reconhecer no outro. Eu vejo o Mohammed fazer e penso ‘caramba, aquela frase que ele falou, isso me toca muito e eu vou querer agregar isso à minha forma de fazer’. É menos pela competição, mais pela poesia. A competição é uma grande ironia nesse caso, ela surge mais como uma maneira de enaltecer aquelas pessoas que tiveram uma performance mais intensa ou disseram o que mais pessoas precisavam ouvir naquele momento.”

Sobre a performance e a teatralidade agregada à poesia nas batalhas, Chagas enfatiza que a principal diferença entre a poesia escrita e a poesia slam é a revelação da entonação do autor, ele se expressa com o corpo, que o ajuda a contar o que já está em sua voz. “Mais do que um teatro, onde de fato se constrói um personagem, no slam todo mundo está sendo ele ou ela mesma. Revela a capacidade do poeta de ser extremamente teatral sem deixar de ser ele mesmo. Eu nunca fiz uma aula de teatro, mas nas fotos eu apareço representando cada palavra, porque aquilo me tocou quando escrevi e me tocou quando pronunciei. E quando toca de verdade a gente, toca o outro.”

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Espaço de domínio das mulheres

Diferente das batalhas de MC, Jô Brandão, que participa do Slam de Perifa, percebe que os slams em Juiz de Fora têm sido um espaço de domínio das meninas. “Às vezes em uma competição com 20 slammers, 15 ou 10 são mulheres. Por eu fazer parte do Las Manas há algum tempo, eu vejo que as mulheres têm colocado a cara para realizar todo o trabalho, e a gente abrange além da poesia, o hip-hop de uma maneira geral.”

Os Las Manas Gang é um coletivo feminista de hip-hop que realiza eventos de maneira independente. “Fazemos as rodas de freestyle, o ataque poético, e sempre priorizamos o espaço de poesia. O momento de microfone aberto não é somente para slammers que já batalham, mas para pessoas que escrevem, mesmo que seja sem esse teor de poesia marginal, é para quem tem uma letra ou um poema em mãos que queria mostrar”, explica Jô. Além disso, o coletivo Las Manas propõe rodas temáticas sobre assédio, abuso sexual e diferentes tipos de opressão, convidando, também, homens a ouvirem. “A gente vê que a solução para o machismo não é bater de frente. Tentamos combater esse pensamento com conhecimento. Abrimos uma roda e deixamos as mulheres falarem como elas se sentem, sobre tudo aquilo que já expõem nas redes e na militância.”

Jô Brandão “Nossa letra traz nossa verdade, então quando abro minha poesia é como se estivesse sem colete à prova de bala” (Foto: Leonardo Costa)

Jô chega à casa de Adenilde Petrina com a postura das rappers brasileiras, que constroem seu próprio estilo como linguagem. Pochete, cabelo cacheado com mechas lilás e um lenço que resgata sua descendência negra, óculos escuros, vestido e tênis. Até a maneira de andar já antecipa sua fala inspirada e unida em tantas outras vozes e poetas femininas. Começar a mostrar em público tudo aquilo que expressava em palavras somente para si foi um processo de coragem. “Nossa letra traz nossa verdade, então quando abro minha poesia é como se estivesse sem colete à prova de bala. Pronta para qualquer julgamento”.

Encontrei com Mohammed, Arthur, Chagas e também Wanderson Zangão, MC que está envolvido com o Vozes da Rua desde a PZP: Posse de cultura hip-hop Zumbi dos Palmares, na laje da casa de Adenilde Petrina, com vista para toda a comunidade. O Slam de Perifa é uma continuidade do que o Coletivo Vozes da Rua sempre buscou, depositando a capacidade de transformação social nos jovens de periferia, que se valem de sua própria vida e corpo para expressarem sua arte e, dessa forma, comunicarem para o mundo o que não é dito. A poesia slam é, antes de tudo, informação.

Vídeo sobre o Slam de Perifa, realizado no Bairro Santa Cândida:

Leia amanhã a última reportagem da série sobre o Slam do Encontro

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