O carnaval ainda comia solto pelo nosso Brasil varonil na última terça-feira – na verdade, ainda tem muito folião perdido por aí -, mas os juiz-foranos do Poetisa Dissecada aproveitaram o feriado de Momo para atravessar o samba dos contentes e disponibilizar nas plataformas de streaming (Spotify, iTunes, Deezer etc.) o álbum “Morte absoluta”, mais recente trabalho do quarteto formado por Bira L. Silva (vocal), Bernardo Falcão (guitarra), Júlia Amorim (baixo), Eduardo Vianna (bateria). Mas o disco, sucessor do EP “O Deus Verme”, de 2016 (ano de formação da banda), já podia ser conferido na página do grupo no YouTube desde o último dia 4.
A versão física do trabalho, aquele objeto que convencionamos a chamar de compact disc, deve chegar em março, quando a banda planeja fazer um show de lançamento em parceria com o Dignatários do Inferno, que entregará para os infiéis o seu segundo disco, “sem deus”.
No país do ziriguidum telecoteco no balacobaco, o Poetisa Dissecada passa longe de surdos e tamborins para destilar uma sonoridade inspirada no pós-punk, com ecos sinceros de bandas como Joy Division, The Cure – este na sua fase inicial, de álbuns como “Faith” e “Pornography” -, Los Carniceros del Norte, Virgin in View, Balé Clandestino, e até mesmo o engajamento político de The Clash – afinal, o Poetisa faz questão de se declarar totalmente contra qualquer postura fascista. As letras são inspiradas por escritores e poetas que vão do gótico ao trágico, como Edgar Allan Poe, Baudelaire e Manuel Bandeira, tratando de temas como a morte e suas variações, além da condição trágica do ser humano neste nosso mundinho complicado. Além de seis músicas com a pena do próprio Bira, “Morte absoluta” tem poemas musicados de Baudelaire (“O morto alegre”) e Manuel Bandeira – a faixa-título.
Novo integrante
“No dia que recebi o convite, comentei com a Thamiris, minha esposa, e ela disse ‘entra agora’ (risos)”, lembra Bernardo, acrescentando que foi um desafio para ele se adequar ao pós-punk praticado pelos novos parceiros. “Ele é de outro nicho musical, mas a gente sabia que era um bom músico”, elogia Bira. “Teve uma assimilação rápida da pegada do nosso som.” Com o novo guitarrista devidamente adaptado, o álbum começou a ser gravado em agosto no estúdio que Bernardo mantém em casa e foi concluído em janeiro, com o single “Ossuários da alma” lançado em novembro. A masterização e mixagem ficaram por conta de Leandro Trombini. A gravação e lançamento? Totalmente independentes, no melhor estilo faça-você-mesmo do punk.
O espírito da independência total também marcou presença nos “do it yourself videos” – que é como Bira prefere chamar os videoclipes – que a banda preparou para promover o disco, utilizando imagens da Poetisa Dissecada ao vivo, em um cemitério e cenas do clássico “Metrópolis”, entre outros, para as versões audiovisuais de “Carne ainda em osso”, “O lar que a tempestade engoliu” e “Ossuários da alma”.
Vida breve, obra intensa
A Poetisa Dissecada foi formada em 2016 por Bira, Júlia e Eduardo, mais o ex-integrante Juarez Ribeiro. Desde o início, a ideia era juntar a urgência e o poder explosivo do punk, mais a alma soturna do deathrock (um dos subgêneros do rock gótico), com influências literárias diversas, passando por Augusto dos Anjos, Nietzsche, Baudelaire, Edgar Allan Poe e Manuel Bandeira, entre outros. “Eu queria um nome abstrato, que não tivesse um sentido pronto”, explica Bira L. Silva. “O ato de dissecar diz respeito a ver o que há dentro de um corpo, e ‘dissecar’ um poeta, uma poetisa, a partir da sua obra, é tentar ‘ver’ o que há em seu interior, mas você nunca pode ter certeza se o seu entendimento tem a ver com o sentimento do autor.”
Desde o primeiro EP, “O Deus Verme”, a Poetisa Dissecada reveza canções próprias com a musicalização de textos de escritores e poetas que influenciam a banda, além de citações a frases de Nietzsche. Houve espaço, ainda, para uma música inspirada no trabalho do fotógrafo norte-americano Joel-Peter Witkin, que rendeu single e mais um “do it yourself video”. “O tema principal de nossas canções é a morte, além das decadências e falhas humanas. São várias as formas que podemos tratar estes assuntos”, pontua o vocalista. “É interessante ter esse contraste, de letras que tratam da morte – algo mais ligado ao pós-punk -, com a energia pura do punk”, destaca Júlia Amorim.
A força que vem do underground
Abraçar uma estética musical e literária diferente tem seus percalços, porém. Bira destaca a dificuldade de encontrar espaços em Juiz de Fora para se apresentar, uma vez que a cidade não possui o que se poderia chamar de “cena gótica”. As oportunidades surgem graças a eventos como o Festival de Bandas Novas. Por outro lado, é fora da cidade que o Poetisa Dissecada encontra seus pares em festivais como o Woodgothic, na improvável cidade de São Thomé das Letras, em que os integrantes puderam trocar figurinhas trevosas com bandas de todo o país, incluindo o ensolarado Ceará.
“Conhecemos outros talentos espalhados pelo Brasil, que mesmo sendo pouco ouvidos insistem por amor ao que fazem. Esse pessoal do submundo é fantástico”, diz o baterista Eduardo Vianna. “É bom esse contato porque o pessoal do underground sempre mantém esse intercâmbio, essa troca de informações e de apoio. O nosso primeiro show mesmo foi em Petrópolis, uma galera que não nos conhecia fez o convite”, lembra Júlia.