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Eles eram muitos amigos: a história do grupo de ex-alunos da UFJF radicados em SP

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Uma pequenina pitanga. No pé havia outras duas, uma delas ainda verde. Com a foto feita na varanda do quinto andar, Tadeu deu seu bom dia ao grupo de 31 amigos no WhatsApp. Duas horas depois, uma amiga contou dos morangos e do araçá que cultiva e do passarinho que perdeu a companheira e cada dia se aproxima mais. Outra tem jabuticaba, aos montes. Ainda, uma amiga fotografa o pote com pitangas que o marido colheu na árvore defronte ao prédio, e outra registra a linda pitanga que tem na varanda do apartamento e, horas mais tarde, é apenas um caroço todo bicado, mas ainda no pé. São Paulo, definitivamente, não é uma selva de pedra. Para esse grupo, era projeto forjado entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, ainda entre os prédios e as muitas árvores da UFJF, instituição que, como muitos deles, comemora seis décadas de existência. Por três meses, a Tribuna acompanhou os “bom-dia”, as conversas, os debates, as fotografias, as notícias, as lições e os afetos trocados pelo grupo de WhatsApp formado por ex-alunos da UFJF radicados em São Paulo e alguns agregados.

No último dia 23, a turma completaria sua décima confraternização natalina em solo juiz-forano. Tradição ceifada pela pandemia, a mesma que os obrigou a manter os laços no ambiente virtual, num grupo criado na plataforma de troca de mensagens apenas pela inviabilidade do contato físico. Contemporâneos de graduação nos anos finais de 1970, o grupo se dispersou após a formatura e voltou a se reunir na virada do século. Durante dez anos encontraram-se esporadicamente, até que em 10 de janeiro de 2009, numa das reuniões, iniciaram um livro de ata. Doravante, apresentava o cabeçalho, indicando o nome eleito por todos. Mensalmente, no Canto Madalena, restaurante na Vila Madalena, em São Paulo, os amigos dividiam uma grande mesa e registravam no livro o ânimo geral. “Precisamos de, no mínimo, mais 20 anos. Não abro mão”, brincou o escritor Luiz Ruffato num áudio enviado ao grupo na véspera de Natal. Menos de uma hora depois, JF-SP, o nome da comunidade até aquele momento, tornou-se “Doravante”.

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‘Revolucionou minha cabeça’
Fátima Porfírio tornou-se médica, assim como Leonora Barroca e Carmem Banho. Luiz Ruffato, José Santos, Márcia Zoet, Mariangela Ribeiro e alguns outros tornaram-se jornalistas. Denyse Emerich formou-se em desenho e plástica e hoje trabalha com museologia. Gilmar Santana, Pedro Hallack e Iêda Alcântara formaram-se em engenharia. Nos anos 1970, como hoje, os prédios não eram próximos, mas havia um movimento comum que os fez amigos. Na memória de José Santos estão vivas as lembranças de um coeso movimento estudantil. “Quando a gente estava na faculdade, entre 1978 e 1979, havia um evento chamado Som Aberto, aos sábados pela manhã, no auditório do ICBG, que era grande. Eu me lembro muito bem que várias pessoas dessa turma apareciam por lá. Era um sopro de democracia naqueles anos finais da ditadura”, pontua ele, recordando-se de Fátima como uma das organizadoras, Gilmar Santana se apresentando com seu grupo Vértice, e Denyse, já sua namorada (de Gilmar), acompanhando tudo.

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“Quando estava aí, a cultura era muito efervescente, e esse é meu viés fora da medicina. Juiz de Fora me preparou para as artes, com o Cine Festival, com os cineclubes, o Pró-Música e uma série de outros espaços e atividades que me alimentaram e me fizeram ampliar o universo. As pessoas com as quais me relacionava, todas tinham esse interesse”, aponta Fátima, que nos anos 1970 integrou o diretório acadêmico da Faculdade de Medicina e, mais tarde, foi vice-presidente do DCE. “Foi uma convivência muito legal e fundamental. Todos nós nos admirávamos tanto! Acreditávamos nos nossos sonhos. Éramos tão corajosos. Tenho felicidade de não termos ficado às margens dos acontecimentos. Navegamos”, diz ela.

No Canto Madalena, tradicional ponto de encontro, da esquerda para direita: Márcia (fotografando), Bruno, Osvaldo, Iêda (escondida), Gilmar, Pedro, Isabel, Andréa, Clara, Tadeu, Ló, Sandra, Denyse, César, Ruffato e José. (Foto: Acervo pessoal)

“A impressão que tenho é de que todos tínhamos alguma noção da nossa importância na história. Mesmo que fosse a história daquele momento”, acrescentar Gilmar Santana, natural de Monte Azul e desde 1985 vivendo em São Paulo, tendo passado dois anos na década de 1990 no Uruguai, ao lado da esposa Denyse. Ela, por sua vez, formada em desenho e plástica, integrou, durante quase três anos, o Grupo de Teatro Sensorial, de Henrique Simões, e fundou o projeto Terças Musicais, do Centro Cultural Pró-Música. “Foi uma época que revolucionou minha cabeça”, reconhece utilizando-se de um termo preciso para o momento. “Minha turma foi a primeira a tomar o Restaurante Universitário, em 1979. Eu estava à frente”, lembra Luiz Ruffato. “Não fui preso, sempre fui um soldado, nunca um oficial”, brinca ele, que “fazia política estudantil e fazia poesia”. “Participava de um grupo de varal de poesia na Rua Halfeld, integrei algumas encenações, mas muito pouco. Juiz de Fora era uma cidade bastante tranquila. Havia a violência da ditadura, mas a urbana não havia. Andávamos madrugada afora sem grandes problemas.”

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Rumo aos 61: Charge de Tadeu Costa para celebrar os 60 anos da UFJF, onde seus amigos do Doravante estudaram. (Reprodução)

‘As cidades tornaram-se horrorosas, violentíssimas, inumanas’
Refletindo o que se deu em todo o país, o primeiro turno das eleições municipais de 2020 não mobilizou as atenções do grupo Doravante. Às vésperas da votação, no entanto, uma singela dica de candidatos a vereador em São Paulo fez com que o momento não passasse em branco. Os resultados, no entanto, geraram calorosas discussões. Enquanto avaliavam os primeiros números da maior capital brasileira, aguardavam aflitos os percentuais de Juiz de Fora. Assim, a deterioração social e econômica da cidade entrou em questão. O que explicaria o cenário atual de Juiz de Fora? Um dos amigos aponta justamente para o que é crucial na formação do grupo: a contradição entre ter um prestigiado centro de formação e a incapacidade de absorver a mão de obra qualificada que produz.

Nas lembranças, Fátima Porfírio preserva a noção passada pelo pai aos oito filhos, de que a profissão liberta. “Você tem que ser alguém na vida”, dizia o patriarca. Na faculdade, a futura médica escolheu ser alguém no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, maior hospital da América Latina especializado em doenças infecciosas. “Quando estudava medicina, ouvia as menções ao Emílio Ribas e dizia: ‘Um dia vou para lá!’. Em Juiz de Fora segui um médico muito famoso, chamado Kalil Abrahão Hallack, que foi um grande infectologista, e com isso me encantei ainda mais pela área. Vim para São Paulo fazer o estágio e trabalhar. Comecei atuando na periferia da cidade e enxerguei São Paulo por outra ótica”, conta ela, que, naquele momento, via surgir os primeiros casos de aids no país e no mundo. Hoje a profissional é confrontada com outra pandemia, a do coronavírus, que em três meses vitimou meia dúzia de pessoas conhecidas pelo grupo.

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Pedro Hallack mudou-se para São Paulo para cursar o mestrado. Passaram-se 36 anos e ele continua na maior cidade do Brasil. “A raiz, a afinidade e o jeito de ver as coisas” permitiram que mantivesse os amigos dos tempos universitários. Luiz Ruffato chegou mais tarde, na década de 1990. Dez anos, porém, foram suficientes para criar aquele que se tornaria um dos símbolos literários contemporâneos da metrópole: “Eles eram muitos cavalos”, seu livro de estreia nacional, lançado em 2001, é vencedor dos prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte e Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Nascido em Cataguases, o escritor também conheceu bastante Juiz de Fora, que povoa seu livro de contos “Flores artificiais”, de 2014.

De casa, Ruffato saiu em 1978. “Fui para Juiz de Fora terminar o curso secundário. Trabalhava como torneiro mecânico na Rua Saint-Clair de Carvalho e, à noite, fazia cursinho integrado. No final daquele ano prestei vestibular para comunicação e passei em primeiro lugar”, narra ele, que fez o curso com muitas dúvidas entre permanecer ou mudar para o curso de letras. Formado, trabalhou no “Diário Mercantil” e foi demitido ao liderar uma greve, e também na Tribuna. Como seus amigos, lamenta as mudanças sofridas pela cidade desde sua saída. “Juiz de Fora tornou-se uma cidade tão desagradável quanto qualquer outra do Brasil. Não tem nenhum demérito para ela. As cidades todas tornaram-se absolutamente horrorosas, violentíssimas, inumanas”, avalia ele, que em novembro partilhou com o grupo a capa de seu romance “Domingo sem Deus” na Alemanha e, na última quinta, a de “O verão tardio” na França.

‘Grupo parecido com uma viagem de trem’
“Todo mundo escreve muito bem.” Para Ló Campomizzi, graduado em rádio e TV pela UFJF em 1985, eis uma característica capaz de definir todo o grupo. Como bons escritores, esses médicos, dentistas, jornalistas, engenheiros – e tantos outros ofícios – também fazem sofisticadas leituras. No grupo, acompanham e debatem os trabalhos uns dos outros, como o folhetim “Como Valentina aprendeu português”, de autoria de Ruffato com ilustrações de Tadeu Costa e de sua filha Clara Moreno. Também discutem as fake-news, a era da desinformação. Reconhecem o valor do conhecimento formal, mas defendem, quase num consenso, que é o livre pensar, a capacidade de compreender outras questões, saberes e ciências, que garante alguma distância da ignorância que cega. Uma notícia sobre uma escola particular oferecendo bolsas dá lugar a um debate sobre racismo e xenofobia, com a contribuição da visão do casal Iêda Alcântara e Oswaldo Alvarenga, que há pouco se mudou para Portugal em busca de qualidade de vida.

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No Doravante, o grupo de WhatsApp, os amigos também debateram as eleições norte-americanas, choraram a morte do jogador de futebol argentino Maradona e lamentaram a demolição do juiz-forano Clube Caiçaras. Comemoraram o aniversário de um, de outro, de mais outro. Em três meses, foram seis as oportunidades para compartilharem no grupo palminhas e desejos de um “feliz aniversário”. Semana a semana foram gradativamente se preocupando com o aumento de casos de Covid-19 em Juiz de Fora e em São Paulo, no que viria a se conformar como uma segunda onda, inibindo as festas de fim de ano. Médicos rechaçaram o uso da cloroquina e explicaram a eficácia das vacinas. Fátima Porfírio, a infectologista, foi solicitada algumas vezes, o que, segundo conta, tornou-se recorrente em seus dias. “Acabei tendo um consultório particular de telemedicina, tanto por áudio quanto por vídeo. Analiso exames, acompanho famílias, tudo envolvendo esse grupo mineiro”, narra.

A pandemia alterou a rotina de todos os membros do grupo e permitiu que observassem a vida por outros ângulos, valorizando pitangas e pássaros. Também confirmou os laços. “Dos tantos encontros presenciais aos diários encontros virtuais de hoje emerge uma certeza: somos uma família em São Paulo. Um carinho e uma troca de afetos que sequer o Atlântico consegue separar”, observa Iêda Alcântara, de Lisboa. “Quem não se encontrava muito, refez a amizade. Hoje acho que somos mais amigos porque temos a raiz do passado. Como tínhamos a causa do movimento estudantil, a luta por um mundo melhor, o que nos tornava muito próximos”, acrescenta Fátima Porfírio, indicando o lugar que Juiz de Fora ocupa nessas boas memórias: “A gente sai de Minas, mas Minas não sai de dentro da gente. Não é jargão, é verdade. Quanto mais estamos longe, mais nos lembramos de nossas raízes”.

“Juiz de fora tem uma espécie de ímã”, diz Ló Campomizzi. “Ou, como na música do Gil, uma torre onde eu amarrei minha corda e, por mais longe que eu vá, o pêndulo sempre me leva de volta pra ela”, explica ele, que, como muitos do grupo, ainda possui familiares na cidade (e até no grupo), além de amigos. “Como mineiros somos a maioria, vejo este grupo parecido com uma viagem de trem: tem gente que vem, gente que volta (estes encontramos no fim do ano em Juiz de Fora), gente que está quietinha em sua poltrona, gente que está conversando e fazendo barulho no vagão-bar, gente que vai para o bar rapidinho e volta para o assento, gente que tem que trabalhar durante a viagem”, poetisa Pedro Hallack sobre um grupo que, ao se unir pela amizade, une consigo uma porção da história da UFJF e da cidade. “Gente muito diferente, mas sobretudo gente, da melhor qualidade, com quem é muito bom compartilhar a viagem”, finaliza.

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