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Avenida dos Andradas: conheça a história de uma rua entre caminhos

Avenida dos Andradas
Avenida dos Andradas
O começo da Rua dos Andradas em 1960 (Foto: Acervo Maurício Resgatando o Passado)
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Um comentário em uma postagem no Blog da Maria do Resguardo, recheado de imagens de prédios antigos pelas ruas de Juiz de Fora, diz que cada uma dessas casas guardam um mistério. O autor do comentário tinha esse pensamento enquanto menino, ainda nos anos 1960, enquanto passeava de bonde por esses espaços. O comentário continua: “Umas pareciam mal assombradas, outras que havia uma família feliz”. A imaginação vai longe. Naquela época, era ainda possível conhecer alguém que conhecesse os moradores. Perguntar: “Eles são mesmo felizes? Ou a casa é realmente abandonada?” Agora, no entanto, resta esse vestígio de memória. Uma tentativa de desvendar os mistérios das casas que ainda existem e ultrapassaram o tempo, as transformações, e têm ainda sua estrutura fincada na terra.
Quando os alemães vieram para Juiz de Fora, a cidade foi, aos poucos, passando por transformações essenciais para o desenvolvimento e, principalmente, para a industrialização. Mas, para além desse sentido econômico, era preciso que eles criassem aqui identidade a ponto de se sentirem, então, em casa. O Bairro Borboleta e o Bairro São Pedro concentraram, realmente, grande parte da comunidade, de maneira que pelo simples fato de estarem nesses pontos, juntos, a identificação era, pois, mais fácil. Como olhar para o lado e, de alguma forma, reconhecer-se. Mas outras regiões da cidade também receberam esse povo. É o caso do Morro da Gratidão. Essa localidade era um tanto lógica: ficava entre o já Centro da cidade e a estação de Mariano Procópio. A rua principal, o caminho entre esses dois espaços, recebia o mesmo nome: Gratidão.

Gratidão a quem?

A origem do nome da rua, assim como do bairro, ainda não é exata. Por lá, por causa dos morros, existiam muitas chácaras. O ponto era ideal para morar, no alto, de certa forma distante do Centro, mas próximo o suficiente para trabalhar também no Centro. Uma dessas chácaras, a do Cel. José Carlos Duarte, tinha o nome de Gratidão. Essa é a principal explicação para o nome da rua e do morro, em referência a essa grande propriedade. Outros, no entanto, acreditam que ele se deu em razão da gratidão dos estrangeiros em conseguirem se adaptar a um espaço de maneira a ter, então, a identificação. Essas informações ficam claras no artigo escrito por Patrícia Falco Genovez, com nome de “Núcleo histórico da Avenida dos Andradas e Bairro Mariano Procópio”. Sim: a Rua da Gratidão é a Avenida dos Andradas.
Já nessa época, era possível perceber um forte fluxo de comércio. Andando por lá, hoje, ainda existem resquícios desse passado. Ainda no contexto da industrialização dos alemães, é possível perceber as edificações desse tempo. São uma série de patrimônios tombados que contam a história desse passado. É também olhar e reconhecer o que foi Juiz de Fora no final dos anos 1800, começo de 1900. Essa rua recebeu a primeira indústria de tecido da cidade, a Industrial Mineira, inaugurada em 25 de dezembro de 1883. O terreno onde ela foi construída foi cedido pela Companhia União Indústria, a que foi responsável por trazer os alemães para a cidade. Na época, ela era vanguardista. O jornal O Pharol escreveu que ela foi “premiada com a Medalha de Ouro e o diploma de honra na exposição de Juiz de Fora de 1886”, isso pela qualidade e a diversidade de seus tecidos.

Industrial Mineira em 1964 (Foto: Acervo Maria do Resguardo)

A arquitetura que ficou

Essa parte ficou mesmo no passado. Impossível reviver. Mas o que restou é sua fachada. Um castelinho de tijolos no número 1215, com duas chaminés que remetem à industrialização. Essa arquitetura era uma marca da Companhia União Indústria. Mesmo que na esquina com a Rua Cristovam Molinari, bem próximo à rua, seu interior mantém uma privacidade. Os proprietários foram mudando, mantendo sua característica. Com essa industrialização, a rua foi mudando de cara, também aos poucos. As chácaras ficaram mais raras, dando espaço a pequenas edificações de casas, bares e comércios, entre outros. Acaba que essas indústrias são responsáveis por povoar o espaço de outras maneiras. Em frente a Industrial Mineira havia um bar, frequentado principalmente pelos trabalhadores. A rua já era movimentada na época, seja pelos caminhões ou pelas pessoas que circulavam no espaço.
Um pouco mais à frente, o Colégio Santa Catarina, também um castelo de tijolos. Em outro artigo, “O nome e o espaço em transformação: o bairro enquanto espaço vivido e apropriado”, Luciana Verônica escreve que o colégio foi construído pelos padres redentoristas que se preocupavam com o ensinamento religioso das crianças. As irmãs de Santa Catarina já possuíam um colégio em Petrópolis, e duas delas foram trazidas a Juiz de Fora. Elas adquiriram o terreno na descida do morro, e o espaço foi inaugurado em 1909. Com o tempo, ele foi sendo ampliado, mas mantendo essa arquitetura.

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Por um outro lugar

Agora, faremos um trajeto oposto. Iniciamos a subida do Morro da Gratidão, pelo Largo do Riachuelo. Espaço boêmio, onde os sambistas do Turunas, a Escola de Samba, faziam mesmo a festa, como o Ministrinho. Mas bem próximo dali outro espaço chamava pessoas da cidade inteira, o primeiro Mercado Municipal da cidade, no número 197. Ele foi construído em 1904 pela Teperine, Sisto e Cia. para abrigar o Mercado Municipal de Juiz de Fora. Isso durou até 1930, quando o lugar se transformou em uma agência de veículos. Sua fachada foi mantida, abrigando, hoje, o comércio: como se a rua tivesse, desde sempre, a vocação para isso.
Subimos, então. Também um castelo de tijolos, uma cervejaria foi montada, em 1867, no terreno também da União Indústria. Primeiro, com o nome de Cervejaria Germânia, logo depois recebeu o nome de Imparcial Fábrica de Cerveja e Águas Minerais. Depois, apenas Germânia. Com a guerra, ganhou o nome de Cervejaria Americana, transformando-se em S. A.. Ela existiu até a década de 30, quando foi adquirida pela Estrela Branca, produtora de leite, e, então, pela Cooperativa Central dos Produtores de Leite de Juiz de Fora (CCPL). Ela durou um bom tempo.

Antigo Mercado Municipal de Juiz de Fora (Foto: Acervo Eduardo Tipotti)

O que ficou

A contadora Flávia Merhey sempre morou na Avenida dos Andradas e em suas imediações, mas sequer se lembra de qualquer dessas histórias. Na tentativa de acionar alguma lembrança, conversou com sua irmã mais velha. Mas elas nunca ouviram falar que o nome de lá já foi Rua da Gratidão. “Descobri agora com você”, disse. Mas ela se lembra da CCPL, talvez o resquício mais presente desse passado. Lembra bem dos caminhões que passavam pela rua e deixavam algum estrago pelas casas, ou por causa do peso ou pelas manobras. Na década de 60, o espaço já era totalmente diferente. Mas dava, ainda, para brincar nas ruas. Na avenida, não, impossível: passava muito carro.
Apesar de não morar mais na Avenida, Flávia mora em uma rua transversal, e guarda uma ideia de pertencimento àquele espaço. “A religiosidade das igrejas, principalmente quando tem quermesses, é o que ajuda a unir a comunidade”, acredita. Pois bem: depois de falar sobre os bens industriais, falemos, então, sobre aquilo que une mesmo, de certa forma, a fé. Na Rua da Gratidão existem, agora, duas igrejas católicas. Uma, bem no começo da rua, colada no Instituto Vianna Júnior, é a pequena Igreja de São Roque. Mas é a esplendorosa Igreja da Glória que chama atenção.
Ainda em 1878, a Companhia União Indústria doou um terreno para a construção de uma capela na Rua da Gratidão, já para ser criada sob as bênçãos de Nossa Senhora da Glória. Ela foi inaugurada em 1879, e era suficiente para os fiéis. Mas, aos poucos, foi ficando pequena; uma torre começou a ruir. Era necessário criar uma outra. Foi, então, projetada uma com o estilo gótico germânico: essa mesmo que atiça o olhar de vários pontos de Juiz de Fora. Ela foi consagrada em 1924. Mas, antes disso, a rua já era outra. Em comemoração aos 100 anos da Independência do Brasil, Juiz de Fora fez algumas inaugurações e celebrações. Entre elas, a mudança do nome de ruas. A Rua Botanágua foi transformada em Avenida 07 de Setembro. A Rua da Gratidão, em Avenida dos Andradas. Já o morro, que também era da Gratidão, se transformou em Morro da Glória. Isso, então, faz referência à igreja, que se tornou um dos principais atrativos do lugar.

Igreja da Glória sendo construída (Foto: Acervo Paróquia da Glória)

Outras histórias

O motivo de mudar de nome é mesmo por um patriotismo, ou uma nova identidade. Frederico Braida, professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora acredita que são essas mudanças que vão acarretar em novas produções de sentido de um bairro e de uma cidade. Nos debruçamos sobre as edificações que são patrimônio de Juiz de Fora. Mas, para além delas, existem, como disse no começo da reportagem, uma história para cada uma das casas que ocupam a Avenida dos Andradas. Flávia percebe que os prédios de pequeno porte foram tomando conta da rua. E isso, para Frederico, é natural: os proprietários das antigas casas, muitas vezes, não têm condições de manter aqueles terrenos; rapidamente, são comprados por construtoras que veem a oportunidade de ganhar mais dinheiro em um espaço de uma casa. Isso é realidade não só na antiga Rua da Gratidão, mas em Juiz de Fora inteira. No Brasil inteiro.
Essa avenida sempre foi movimentada: é o caminho para os principais bairros da cidade, além de ser acesso para o centro. Incomoda, sim, o trânsito, a poeira, o barulho, mas acostuma-se. Frederico pontua que são inúmeros os bairros que vivem ou viveram essa transformação, e explica: “As principais ruas possuem mesmo mais estrutura. E por isso elas vão atraindo desde os construtores aos moradores. O problema disso é quando a super ocupação acaba atrapalhando o dia a dia, como os engarrafamentos. Mas faz parte da dinâmica da cidade, de certa forma, quando feito de maneira planejada. O bairro, inclusive, vai mudando de perfil: novas pessoas vão sendo atraídas. Preservar a cidade é importante, sim, porque é a preservação das memórias. Mas o crescimento da cidade é inegável”.

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Dinâmica de uma rua

Flávia sente que ali tem tudo que precisa. Andar pela rua é encontrar, ainda, pequenos sinais de um bairro: as quitandas são diversas, os carrinhos de pipoca, as bancas de jornal, uma padaria em cada esquina, assim como restaurantes. É como um centro independente. Isso faz parte da dinâmica da cidade, de acordo com Frederico: a idealização de novos centros para além do convencional, garantindo autonomia. E isso é atrativo também: convivendo passado e presente.
A Rua da Gratidão já era uma passagem: o caminho entre os pontos. Continua sendo. É, por exemplo, um caminho entre o Museus Mariano Procópio e o Museu de Arte Murilo Mendes e o Memorial da República. O entre espaço que respira com diversas vidas: aquelas que moram há anos naquele lugar e aquelas que foram atraídas agora, seja qual o motivo. Recordar o começo de tudo é o que dá sentido para a dinâmica de agora.

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