O clarinetista, saxofonista e compositor Caetano Brasil, 27 anos, aprendeu a tocar Pixinguinha (1897-1973) ainda quando criança. “Devo muito à obra de Pixinguinha”, admite. Embora sempre seja difícil interagir com um clássico, como o próprio Caetano admite, a intimidade lhe permitiu propor uma releitura para “Carinhoso”. O single, gravado no Estúdio Versão Acústica, em São João Nepomuceno, foi lançado nas plataformas digitais na última sexta-feira (10). “Pixinguinha é o compositor que talvez há mais tempo faça parte do meu repertório de forma contínua”, observa. Não à toa Caetano Brasil já havia lançado em dezembro de 2020 uma releitura de “Um a zero”, assinada por Pixinguinha em parceria com Benedito Lacerda em 1919.
“Carinhoso” é uma prévia do terceiro álbum de Caetano, “Pixinverso – Infinito Pixinguinha”, previsto para março de 2022. Embora tenha sido composta em 1917, a música foi gravada pela primeira vez, em 1928, pela banda de sopros Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. “Ao pensar em mexer nesse santuário, nesse relicário que é a obra de Pixinguinha, não poderia deixar ‘Carinhoso’ de fora”, justifica. A canção, acrescenta ele, tem um lugar cativo no coração dos brasileiros. “Então, por que não começar (a divulgação) por uma música que as pessoas conhecem, e, a partir disso, possam observar o meu olhar particular sobre essa canção maravilhosa?” Caetano ainda afirma que “Carinhoso” reconecta o brasileiro com a própria identidade, com “o Brasil de verdade”.
Conforme o compositor, o choro, enquanto primeiro gênero popular urbano do Brasil na segunda metade do século XIX, é genuinamente brasileiro. Caetano lembra, por exemplo, que foram os funcionários de telégrafos, de correios, “gente como a gente” que tocaram o choro à época. “Gente que partilha música com uma identidade miscigenada. No choro, tem a música branca, a música preta e a interação entre as duas. A gente tem a partilha e, por que não, toda a dor que isso trouxe. O choro sabe como nenhum outro gênero traduzir em som o jeito brasileiro, a malandragem, a alegria e a receptividade, mas também a nossa saudade e toda a nossa mágoa.” Resgatar Pixinguinha é alertar para a necessidade de olhar para o que o brasileiro é, complementa. “É um homem preto que levou a música popular brasileira à máxima potência.”
Ainda que as influências para a releitura de “Carinhoso” tenham sido diversas, Caetano partiu da versão para piano solo do arranjador Radamés Gnattali (1906-1988) no concerto “Pixinguinha 70”. “Sempre gostei muito do álbum. Conheci quando era criança ainda. Quando pensei em fazer este arranjo, fiz uma citação da ideia inicial do Radamés e depois segui os meus próprios caminhos.” O arranjo de Caetano ainda dialoga com a música impressionista europeia e com o post-bop do saxofonista e compositor norte-americano John Coltrane (1926-1967). “No final, tem uma seção que é completamente improvisada. É uma coisa bem aberta. É um lado do jazz. Tem uns momentos de completo caos, de muitas coisas misturadas que falam sobre o nosso cotidiano urbano.”
‘Qual é o Brasil que quero pra mim?’
A proposta da recriação é um diálogo dos “nossos traços mais identitários com o mundo globalizado que tudo acessa com o clique”. Provocado se não seria um paradoxo, Caetano pondera que nos encontraremos através deste próprio paradoxo. “As coisas têm formas e, para mim, é interessante deformá-las, como diz a drag queen Rita von Hunty, que faz um trabalho maravilhoso de construção de conhecimento na internet.” O impasse, observa o instrumentista, é como manter a bússola apontada para as raízes em meio ao caos contemporâneo, “onde tudo é tão efêmero, tudo se perde, a gente se esquece e consome tudo tão rapidamente”. “Acho que é algo que a gente precisa trazer para hoje e de uma forma que faça sentido para este tempo. Pixinguinha já é maravilhoso pela forma como ele concebeu, mas como essa obra pode dialogar com o agora?”
Pixinguinha, ressalta Caetano, foi um homem preto ligado não apenas ao choro, mas também à origem do samba. Inclusive, frequentador da casa de Tia Ciata, cozinheira e mãe de santo, na Praça Onze, no Rio de Janeiro. “Acho que é muito importante a gente pensar para ontem a decolonização e em um enegrecimento das nossas referências. Pixinguinha é um símbolo disso. É uma coisa de outro mundo o que ele fez e faz para a música brasileira, porque a obra é imortal. Qual é o Brasil que quero para mim, para os meus e para os próximos?” O próprio Caetano foi responsável pelos arranjos da releitura de “Carinhoso”. O piano é de Guilherme Veroneze, o baixo é de Adalberto Silva e a bateria é de Gladston Vieira.
Além de “Carinhoso” e “Um a zero”, o álbum terá canções como “Rosas”, “Canção da Odalisca” e “Soluços”. “Não posso revelar todas as músicas ainda, porque tenho que fazer a ‘misteriosa do Alasca'”, brinca Caetano. Entretanto, revela que o disco será dividido em duas partes, como se fosse um vinil com lado A e lado B. “No lado A, quero mostrar versões de canções conhecidas do grande público, ou, de uma forma mais abrangente, para pessoas que conhecem a obra do Pixinguinha. Já no lado B, quero trazer aquelas coisas que estão esquecidas em baús de memórias, que quase beiram o ineditismo.” As gravações devem ser finalizadas entre outubro e novembro, pontua Caetano. “Em outubro, a gente grava as bases, e, em novembro, algumas participações.” Uma delas é da rapper e poeta Laura Conceição na canção “Naquele tempo”. “São dois artistas LGBTs que vão se encontrar em uma música do Pixinguinha, que nasceu no final do século retrasado.”