O mesmo criador que levou este ano para a principal passarela do país, a São Paulo Fashion Week, uma coleção sobre o ódio, partindo da tela “Guerra e paz” de Cândido Portinari, também reverenciou um rio e suas gentes na exposição-instalação “São Francisco”, do início dos anos 2000. O mesmo criador que espalhou na fachada de sua extinta loja em Belo Horizonte desenhos de sua própria cara pintada com boca e nariz de palhaço, acompanhados por uma frase em que cobrava saúde, educação, segurança e cultura para o país, também transformou o famoso e popular biscoito maria em objetos cotidianos, como camisas e bolsas. O mesmo criador que estreou nas passarelas em 1996 e já fez rir e chorar em marcantes desfiles, hoje, após fechar suas lojas mineiras e paulista, mantém, há três anos, na capital, um casarão tombado no qual reúne moda, gastronomia e outras tantas ideias que couberem como hóspedes de seu Grande Hotel. Considerado um dos principais estilistas brasileiros, Ronaldo Fraga é muitos. E todos são essencialmente políticos.
“Entrei pela porta da moda como manifesto – que pode ser cultural, histórico e político. Isso foi na década de 1980. A partir daí construí minha carreira. É a moda que vai além da forma, da tendência, do tecido e da cor, é a moda pensada como manifesto”, define o profissional, que faz, nesta sexta (16), a palestra “Mercado fashion: a vez da diversidade”, às 20h, no Cine-Theatro Central, dentro da programação da Semana Rainbow da UFJF. Dono de uma voz potente, capaz de dialogar, de igual forma, com as elites intelectuais e com as massas, Fraga tornou-se uma referência na discussão acerca da potência da moda como retrato de um povo. Assim como fez sua maior referência, a também estilista e mineira Zuzu Angel, Fraga leva para seus trabalhos o testemunho de um tempo, na certeza de que a pele também é roupa. Em entrevista por telefone à Tribuna, o estilista comenta a crise na indústria da moda, fala sobre história, poesia e política. O mesmo criador que aponta para o sangue que escorre nas ruas e na memória do país também propõe um novo olhar para o que é dor. Ronaldo Fraga quer o belo, e quer o problema, a questão, o debate, o embate.
Tribuna – Fazer moda é também fazer política?
Ronaldo Fraga – É bom que se entenda que falamos de um vetor extremamente diverso, que se correlaciona com a economia, a antropologia, a antropofagia, a cultura, a história e a política. O ato da escolha da roupa por si só já é político. E não político-partidário, mas algo que registra os conflitos e os buracos do tempo. Nesse lugar, a moda, sim, pode se ocupar de sinalizar desejos e conflitos. Ela é um manifesto poderosíssimo, porque tem a ver com a mídia que as pessoas têm, e se não têm controle deveriam ter, que é o próprio corpo.
“a moda, sim, pode se ocupar de sinalizar desejos e conflitos. Ela é um manifesto poderosíssimo, porque tem a ver com a mídia que as pessoas têm, e se não têm controle deveriam ter, que é o próprio corpo”
Qual o lugar da indústria da moda hoje no país? E no imaginário coletivo?
O Brasil já teve o melhor algodão do mundo, hoje não produz mais. Já produziu o terceiro melhor linho do mundo, hoje não produz mais. O setor de moda e confecções sempre oscilou entre o primeiro e o segundo lugar que mais empregava no país e agora está caindo para o terceiro. Vemos um processo de desindustrialização muito forte. Ainda assim é um vetor vigoroso, porque, além do movimento e do que representa para a economia, hoje o brasileiro tem gosto por moda. A moda ainda detém uma mídia espontânea poderosíssima no país. O que a gente vê na história da produção é que passa por impasses porque é sensível às crises. Mesmo assim, ela tem um poder de comunicação.
Você é um grande defensor da potência da economia criativa, setor que também sofre retração. Ainda é essa a sua aposta?
A economia criativa é um setor que, muito mais do que gerar emprego e renda, consegue gerar emprego e renda com autoestima, a partir da criatividade. Estamos vivendo um momento com um governo que desmonta o pouco que se construiu no que se refere à cultura e à educação. Não tenho dúvidas de que a economia criativa é a saída para o Brasil, em várias áreas, no turismo, na gastronomia, na arte e, obviamente, na moda. Temos um longo caminho a trilhar, mas é um momento difícil, de indecisão, com todos os projetos basicamente parados. Não podemos desanimar, temos que ir adiante.
“Estamos vivendo um momento com um governo que desmonta o pouco que se construiu no que se refere à cultura e à educação. Não tenho dúvidas de que a economia criativa é a saída para o Brasil”
Este ano, no São Paulo Fashion Week você levou o ódio que impregna nossa sociedade para sua passarela. É possível dissociar sua produção da atualidade?
Para quem acompanha meu trabalho, os meus desfiles, não tem surpresa. Aliás, já há essa expectativa de que eu venha falar de questões caras ao nosso tempo. Uns anos atrás, na década de 1980, meu primeiro contato com a moda foi quando, na adolescência, durante a ditadura militar, enquanto eu só lia literatura política, me caiu nas mãos um livro do Zuenir Ventura, em que ele falava da passagem de diversos intelectuais em defesa da democracia. Tinha um capítulo dedicado à estilista Zuzu Angel. Aquilo ali, na época, me marcou muito. Enquanto vários intelectuais se escondiam, corriam, datilografavam na madrugada na curva de São Conrado (no Rio de Janeiro) e depois jogavam a máquina de escrever no mar, a Zuzu, não. Ela enfrentava, falava, perseguia, ia até os quartéis. Ela conseguiu um dossiê e entregou na mão do Henry Kissinger (então secretário norte-americano), achando que ele pudesse fazer alguma coisa. Até que a última arma dela foi fazer um desfile de protesto nos Estados Unidos. Aquilo foi tão violento, um golpe no golpe, que lhe custou a própria vida. Foi esse lugar da moda que sempre me pegou. Acho que vivemos um momento no Brasil extremamente delicado, em que correm sérios riscos as manifestações culturais, políticas e pela democracia. Não tem como a moda fingir que está tudo bem. E falo isso mesmo fazendo parte de um setor em que grande parte dele apoiou esse projeto de governo. As mesmas marcas que enriqueceram na década passada sob a égide da sustentabilidade, da diversidade, as mesmas marcas que se aproveitaram de projetos de governo para divulgação do Brasil lá fora são as que, curiosamente, apoiaram esse movimento fascista.
Nesse sentido, é impossível se descolar para produzir? Em tudo há algo biográfico?
Se você se pretende autor, em qualquer área, não tem como não ser autobiográfico. Você deixa suas marcas, sua colocação, em tudo. Seu ofício vai retratar sua visão de mundo, o mundo que você vislumbra. Não consigo desassociar isso. É como se eu sentasse com você e te contasse uma longa história através do meu trabalho.
E já fez esse exercício? Já olhou em retrospectiva para sua trajetória?
Menino, deixa eu te contar que volta e meia alguém tem me perguntado isso, e eu falo que acho que nunca fiz, ou quando tento fazer volto correndo, porque o que me interessa é o daqui para frente. Tem coisas que fiz e gostei. E te digo que tudo o que fiz foi porque quis fazer, nunca fui cerceado. O caminho profissional que desenhei foi um caminho em que corri riscos, paguei um preço, mas era o que eu queria. Não paro num lugar e fico olhando para trás dizendo: ‘Olha que lindo!’. Estou até lançando um livro agora, no final do ano, que chama ‘Memórias de um estilista coração de galinha’ (referência a sua coleção de 1996), no qual eu conto tudo o que deu errado, das vezes que quebrei, dos bastidores, para, justamente, tentar desmitificar essa glamourização que existe em torno da profissão. Na verdade é muito pouco glamour. O glamour está no produto final, na loja. O processo é árduo como qualquer outro. Não paro muito para poder pensar e analisar. Outro dia me perguntaram sobre legado. Mas ainda estou fazendo.
“Tem coisas que fiz e gostei. E te digo que tudo o que fiz foi porque quis fazer, nunca fui cerceado. O caminho profissional que desenhei foi um caminho em que corri riscos, paguei um preço, mas era o que eu queria”
Está fazendo em várias direções e frentes, fazendo exposições de arte, cenografias para teatro, coleções de design. Esse exercício múltiplo é sua estratégia artística?
O estilismo, a moda, é um dos instrumentos que tenho em mãos. O meu negócio é a cultura e a criatividade juntos. Muita gente pode me chamar de artista, agradeço, mas é a fala do outro. Quando olho para a minha geração de estilistas, sou o único que está no mercado. Isso aconteceu justamente porque procurei ter um olhar difuso, estabelecendo diálogo com outras frentes. É a moda conversando de igual para igual com arquitetura, história, arte, política, economia. Tem uma fala que poucos entenderam quando eu disse que “a moda está louca para se libertar da roupa”. O veículo da moda é a roupa, mas uma coisa é a indústria de roupa e outra coisa é a indústria de moda. A moda fala de comportamento, tem que provocar, tem que sinalizar novos caminhos. A roupa, não necessariamente.
Isso justifica você estar em grandes redes, como a Tok&Stok e o supermercado Verdemar, para o qual faz coleções de louças e até sacolas retornáveis.
Teve um momento em que parei e pensei: Qual tamanho quero ter? Isso implicaria na perda de uma liberdade, e eu preciso ser livre para escolher meus temas. Eu preciso viajar o Brasil. É isso o que me alimenta, me oxigena. Teve um momento que tive que reduzir o tamanho da minha confecção, e hoje meus produtos são encontrados, basicamente, no Grande Hotel Ronaldo Fraga, em Belo Horizonte. Então, como alimento esse consumo reprimido? Justamente assinando para marcas de alcance maior. Se não tem minha roupa em Belém, tem na Tok&Stok. Sou um dos estilistas e designers com a relação mais longeva com a Tok&Stok, de coleções ininterruptas há mais de dez anos, porque dou o retorno comercial que eles esperam e que vem muito porque as pessoas não encontram meus produtos para comprar onde estão.
“Teve um momento em que parei e pensei: Qual tamanho quero ter? Isso implicaria na perda de uma liberdade, e eu preciso ser livre para escolher meus temas. Eu preciso viajar o Brasil. É isso o que me alimenta, me oxigena”
Isso, então, é o que te permite trabalhar temas delicados e complexos em sua marca?
Hoje o que as pessoas mais desejam, mais invejam? O ser livre. Isso é uma vigília constante. Sempre paguei um preço por isso: nunca tive um sócio financeiro, que me cerceasse. Provavelmente, se eu tivesse, teria que discutir, falar muito e nem sei se conseguiria fazer coleções como a tragédia de Mariana ou a transfobia no Brasil. São temas que não vendem roupa. Não é um tema que as pessoas falam assim: ‘Ah! Que lindo! Vi um tema sobre transfobia, vou ali comprar a roupa!’. Não é assim. Hoje tenho a consciência de que construí um caminho, e meu cliente se identifica com isso. É o que ele quer. E ele é um formador de opinião no grupo em que está inserido, é um consumidor de cultura e comunga de várias visões de mundo que imprimo em meu trabalho. Ainda assim, se eu tivesse um sócio seria difícil convencê-lo da importância de falar de questões contemporâneas.
Esse falar do presente não se dá de maneira literal, mas por metáforas muito potentes. Suas criações estão cheias delas. Que poesia é essa?
Acho que a arte – e às vezes a moda – tem o poder de enxergar poesia em terreno árido, de olhar um terreno devastado e ver uma semente e apostar que se regar aquilo vai dar frutos. É isso que costumo fazer com o meu trabalho. É conseguir enxergar poesia nesses lugares. E ter respeito com as pessoas que estão envolvidas. Não é colocar uma lente de aumento em cima da desgraceira e do sofrimento, por que isso nós já sabemos. É lançar luz sobre uma questão, colocar sobre um palanque e usar a passarela como manifesto. Meu desafio como estilista e esteta é enxergar beleza nesses lugares e fazer com que os outros enxerguem também.
RONALDO FRAGA
Palestra “Mercado fashion: a vez da diversidade”, nesta sexta (16), às 20h, no Cine-Theatro Central (Praça João Pessoa s/nº – Centro)