“Escrever para si mesmo é narcisismo, ou medo disfarçado em timidez. Sem dúvida, todo sujeito honesto escreve por necessidade, mas nessa necessidade está latente a ideia de comunicação”, escreveu o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade no dia 17 de janeiro de 1942, em carta para o pernambucano João Cabral de Melo Neto. Necessárias, as honestas comunicações de Drummond resistiram à sua despedida, que em 2017 completa três décadas. Homenageado da Festa Literária de Minas Gerais, a FliMinas, em sua quarta edição, primeira com o novo nome, o poeta de Itabira é a inspiração para um projeto cuja missão maior é a comunicação feita pela palavra.
“Tentamos melhorar o futuro de nossas crianças. Quando fazemos essa festa literária pensamos em trazer a criança para que ela se aproxime, entre no mundo da leitura e tenha a perspectiva de um futuro melhor. É isso que vai mudar alguma coisa. Não adianta ficar reclamando e botando culpa aqui e ali. Vamos educar, dar bons exemplos, para fazer a diferença. A longo prazo a única coisa que pode mudar a história do Brasil é dar a essa nova geração uma coisa que ninguém tira: o conhecimento”, observa Carlos Oscar Niemeyer Magalhães da Silveira, coordenador do evento criado pela Associação Cavaleiros da Cultura, grupo que desde 2008 dissemina a importância do hábito da leitura em cavalgadas nas quais distribuem milhares de kits literários.
Iniciada em 20 de junho, a cavalgada deste ano partiu da Itabira de Drummond para chegar, nove dias depois, na Rio Novo onde os cavaleiros sediam a festa, desta quinta, 17, até domingo, 20, com mais de cem atrações espalhadas pela Praça Prefeito Ronaldo Dutra Borges e prédios dos arredores. “Tenho alguns depoimentos de comerciantes do entorno da praça de que o evento rende mais do que o carnaval, porque é um público que acaba almoçando e até jantando por lá, o que movimenta aquela região.
Sem falar no setor hoteleiro, que já está lotado”, comemora Carlos Oscar, que carrega na assinatura o nome do avô, o reconhecido arquiteto modernista. “Meu avô foi amigo do Drummond e projetou o memorial dele em Itabira. Trabalhei com meu avô Oscar nos últimos 13 anos de vida dele e o escritório é na Avenida Atlântica, onde tem aquela estátua do Drummond sentado em Copacabana, então, via ele todos os dias”, conta Carlos Oscar. “Mas essa motivação pessoal não é o mais importante e sim o poeta fantástico que ele foi”, adianta-se.
Para não esquecer os grandes
“Esse ano completa 30 anos da morte do Drummond e, por isso, escolhemos homenageá-lo. É uma preocupação nossa começar a falar novamente em autores importantes do passado que correm o risco de ficar esquecidos. Com essa correria da internet a molecada está dispersa demais. Então, quando fazemos uma festa literária damos a oportunidade de inserir esses autores no contexto de vida dessas crianças para que elas possam, ao menos ter uma ideia de quem foram e o que fizeram esses escritores”, pontua o coordenador da festa, cuja abertura conta com participação do professor, escritor e contador de histórias Francisco Gregório Filho. Logo em seguida os Meninos de Minas, grupo de formação musical composto por crianças itabiranas, se apresentam no Centro Cultural onde a associação estende seu projeto pelos outros 361 dias do ano, na vizinha Rio Novo.
“No primeiro ano a população da cidade tinha curiosidade, mas os mais humildes tinham receio de se aproximar. Como a tenda sempre foi aberta e sempre incentivamos nas escolas, fazendo trabalhos com as crianças durante o ano, conseguimos quebrar uma cisma inicial. Hoje todo mundo quer participar, assistindo a programação e também se candidatando para ajudar para que a festa seja cada vez melhor”, comenta Carlos Oscar.
“Precisamos transformar essa FliMinas num grande espetáculo porque é a forma de interiorizar a cultura. Tem a Flip (no interior do Rio de Janeiro), mas ela acaba sendo elitizada. Quem precisa se aculturar não tem condições de ir à Flip. Quando trazemos um evento como a FliMinas, com uma programação rica e gratuita, temos uma forma de dar oportunidade a quem não teria condições de sair de suas cidades.”
Com olhos para o que está logo ao lado e também para o que se esconde por detrás das montanhas mineiras, o evento reúne autores, pesquisadores e contadores juiz-foranos e também nomes atuantes em outras regiões do país. Numa paisagem diversificada, nomes bastante conhecidos na região como os de Dalila Roufi, Leonardo Cunha, Marisa Timponi, Artur Laizo, Magda Trece, dividem espaço com autores como o paulistano Oscar Nestarez e sua ficção de horror, ou, ainda, como a sergipana radicada no Rio de Janeiro Tina Correia, que lança sua estreia literária “Essa menina – de Paris a Paripiranga” (Alfaguara).
Argentina vivendo no Brasil desde os 7, a escritora Andrea Viviana Taubman conta um pouco sobre sua produção voltada para o universo infantil, como o simpático “Rosa Formosa” (Paulus). Luciana Fróes e Renata Monti, jornalistas d’O Globo, lançam, no domingo, seu “Tô frito” (Record).
Destaque na programação, a mesa “Literatura da ditadura” reúne três escritoras que, sob ângulos distintos, retrataram o espinhoso momento político e social brasileiro: Daniela Arbex com seu “Cova 312” (Geração Editorial), Cristina Chacel e “Seu amigo esteve aqui” (Zahar) e Marília Guimarães com “Habitando o tempo” (LiberArs). Mediando o debate que acontece na tarde do sábado estará o jornalista e colunista de O Globo Ancelmo Gois.
Conhecidos pelo Clube da Esquina, os compositores Márcio Borges, Murilo Antunes e Telo Borges ministram oficina de criação, na sexta e no sábado. Com cantores como Thiago Miranda e grupos como o Eminência Parda, a programação musical da festa vai da música regional ao reggae, passando pelo rock, pelo samba, frevo e maracatu. Agigantado, o evento revela o potencial agregador dos Cavaleiros da Cultura, que em menos de uma década de existência conseguiram modificar o cenário de Rio Novo e região.
Para ocupar outros espaços
“Apesar de ter muitos parceiros, precisaríamos de muito mais. É difícil trabalhar com educação e cultura no Brasil”, lamenta Carlos Oscar, para logo demonstrar seu comprometimento com o que chama de missão. “Achavam que eu tinha alguma outra intenção, mas não tenho. Talvez o legado que eu vá deixar seja esse, de ter dedicado parte de minha vida aos trabalhos de incentivo à leitura. Tenho uma ambição muito grande porque em 2010, quando estávamos programando a cavalgada para Brasília pedi ao meu avô para projetar uma sede para nossa associação. Ele até brincou: ‘Está animado mesmo, né?!’. Um dia ele me chamou para fazer a sede do Cavaleiros da Cultura e começou a desenhar”, recorda-se Carlos Oscar, que na época ponderou sobre a necessidade de criação de um projeto de fácil desenvolvimento.
“Ele disse que iria projetar uma coisa em módulos. Eu, na minha ignorância, achei que ele fosse fazer um projeto que me permitisse construir aos poucos. A ideia dele, genial como sempre, não era de módulos de construção, mas de módulos de associação, com uma sede em Rio Novo, outra no Norte de Minas e por aí vai, ampliando o trabalho dos cavaleiros. No fundo, talvez tivesse um pouquinho daquela história dos CIEPs, no Rio de Janeiro”, conta o neto de Niemeyer, que projetou, a pedido do antropólogo Darcy Ribeiro, os Centros Integrados de Educação Pública, com ensino integral, descontinuados após os governos de Leonel Brizola.
Partilhando da crença do avô de que a cultura é um dos mais potentes veículos de transformação, Carlos Oscar coordena um projeto que ambiciona ser impactante. “O importante é o camarada ter acesso à leitura, gostar de ler, porque a leitura é um vício e é preciso se acostumar a ler para que tenha o hábito. Precisamos mostrar que o livro é muito mais gostoso. Não podemos brigar com a internet, mas precisamos achar uma forma de incentivar as nossas crianças a pegar em livros”, defende o coordenador, chamando atenção também para outra ambição, de que o projeto seja o maior do estado, capaz de comunicar com a Minas de Norte a Sul. “Minas não é palavra montanhosa,/ É palavra abissal/ Minas é dentro e fundo”, escreve o homenageado Drummond.